domingo, 20 de junho de 2021

A LIRA DOS 20 ANOS, A LIRA DE NERO, A VERDADE, A FÁBULA, QUEIROGA, ARTHUR LIRA E POR AÍ AFORA

 

Lira dos Vinte Anos” é uma antologia póstuma de poesias de Álvaro de Azevedo (1831-1852). Já “Lira” é um instrumento musical de cordas semelhante à harpa e à cítara. Dizem que Nero dedilhava a sua durante o Grande Incêndio de Roma. Outra versão dá conta de que o último imperador romano da dinastia júlio-claudiana cantava enquanto a cidade ardia, e outra, ainda, de que ele estava fora da cidade e, ao saber do ocorrido, mandou abrir os jardins de seu palácio para acolher os desabrigados.

Como se vê, não é de hoje que um fato pode ter diversas versões (ou narrativas, como se passou a dizer de uns tempos a esta parte). Do alto de sua insignificância, este que vos escreve costuma dizer que todo fato tem pelo menos três versões: a sua, a minha e a verdadeira. Até porque não existe verdade absoluta. 

Pode-se dizer a verdade mentindo e mentir dizendo a verdade. É tudo uma questão de ponto de vista. Conta-se que Fidel Castro, questionado sobre a penúria na "Pérola do Caribe" forçar universitárias a se prostituírem para sobreviver, respondeu que a situação na ilha era tão boa que até as prostitutas eram universitárias.

Um conto árabe compilado por Malba Tahan (a quem eu já me referi nesta postagem) dizia que, num determinado reino, havia dois palácios. Um, feito de mármore branco, chamava-se Palácio da Verdade; o outro, feito de granito escuro, chamava-se Palácio da Mentira

Certa vez, o sultão desafiou um mágico estrangeiro a citar um caso que não pudesse ser verdade nem mentira. Se exprimisse uma verdade, o mágico seria preso no Palácio da Verdade; se fosse uma mentira, a prisão se daria no Palácio da Mentira. Sem pestaneja, o mágico afirmou: 

— Rei! Vou ficar preso no Palácio da Mentira!” 

Para aplicar a pena, cabia ao sultão verificar se afirmação do mágico era verdadeira ou falsa. Mas o detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que ela não era nem uma coisa nem outra

Tomando-se a assertiva como verdadeira, o mágico teria de ser preso no Palácio da Verdade. Mas aí sua afirmação deixaria de ser verdadeira, pois ele havia declarado que ficaria preso no Palácio da Mentira. Por outro lado, supondo que a resposta exprimisse uma mentira, o desfiado não poderia ser levado para o Palácio da Mentira, posto que isso transformaria sua afirmação em uma verdade.

Como hoje é domingo, vão duas pelo preço de uma:

Quando criou a mulher, Deus criou também a Fantasia. Certo dia, a Verdade cobriu sua formosura com um véu claro e transparente e resolveu visitar o palácio do Sultão. Ao ver aquela linda mulher quase nua, o chefe dos guardas perguntou:

— Quem és?

— Sou a Verdade – respondeu ela. — E quero falar com vosso amo e senhor.

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir (cargo equivalente ao de primeiro-ministro).

— A Verdade quer penetrar neste palácio? Jamais! Se a Verdade aqui entrasse seria a perdição, a desgraça de todos nós. Dize-lhe que uma mulher seminua não entra aqui — respondeu o vizir.

Bem mandado, o chefe dos guardas voltou e disse à Verdade:

 Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender nosso Califa.

A Verdade se afastou lentamente do grande palácio, mas... Quando criou a mulher, Deus criou também a Obstinação. Assim, a Verdade se cobriu com um couro como os que usavam os pastores e bateu novamente à porta do palácio. Ao ver aquela mulher grosseiramente vestida, o chefe dos guardas perguntou:

— Quem és?

— Sou a Acusação — respondeu ela, em tom severo. — E quero falar com vosso amo e senhor.

O chefe dos guardas voltou a consultar o grão-vizir, que lhe disse, aterrorizado:

— A Acusação quer entrar neste palácio? Não! Jamais! O que seria de mim, de todos nós se a Acusação aqui entrasse? A perdição, a desgraça. Dize-lhe que uma mulher vestida como um zagal não pode falar com nosso amo e senhor.

Voltou o chefe dos guardas com a proibição e disse à Verdade:

— Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar com nosso amo e senhor.

Mas, ao criar a mulher, Deus criou também o Capricho. Vestiu-se então a Verdade com riquíssimos trajes, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto com um manto diáfano de seda e voltou à porta do palácio. Ao ver aquela encantadora mulher, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

— Sou a Fábula — disse ela em tom meigo e mavioso. — E quero falar com vosso amo e senhor.

O chefe dos guardas correu a falar com o grão-vizir:

— Senhor, uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor.

— Como ela se chama? — perguntou o vizir.

— Chama-se a Fábula — respondeu o chefe dos guardas.

— A Fábula! – exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste palácio. Pois que entre. E que cem formosas escravas a recebam com flores e perfumes! Quero que a Fábula tenha o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!

E assim, sob a forma de Fábula, a Verdade finalmente conseguiu sua audiência com o glorioso califa. 

Se você substituir “fábula” por “narrativa”, entenderá o porquê desta (não tão breve) introdução.

Uma matéria publicada no site da Reuters trouxe a seguinte manchete: “Queiroga contraria dados e diz que vacinas não têm todas as evidências científicas.” Logo abaixo, o texto diz: “O ministro da Saúde contrariou dados de pesquisas científicas que comprovam a eficácia das vacinas contra Covid que estão sendo aplicadas no Brasil ao afirmar que os imunizantes não têm todas as evidências científicas, concordando com declaração recente do presidente Jair Bolsonaro, que voltou a questionar as vacinas.”

ObservaçãoCom vacinação lenta, baixa adesão às medidas de isolamento social e sem políticas nacionais de testagem em massa, o Brasil atingiu neste sábado, 19, a marca de 500.022 mortes pelo vírus maldito. Do início do ano até agora, o país registrou o maior número de mortes por Covid entre todas as nações do mundo. O epidemiologista e professor Pedro Hallal afirma que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse adotado medidas para controlar a pandemia.

Na coletiva de imprensa que concedeu na última sexta-feira, Queiroga negou que Bolsonaro questione a eficácia das vacinas. Segundo o ministro, o presidente diz que “não se tem todas as evidências das vacinas”, e que “os pesquisadores precisam ainda responder alguns questionamentos”. 

Diante disso, poder-se-ia dizer que a manchete deu mais ênfase à versão do que ao fato propriamente dito. Mais adiante, porém, o dublê “desmilitarizado e mais científico” do general Pesadelo acrescentou: “O presidente Bolsonaro fala que não se tem todas as evidências científicas da vacina, e aí se interpreta que ele está questionando as vacinas. Tem que se questionar tudo, e não se tem todas as evidências científicas mesmo não” (grifamos).

O grifo é meu, mas a conclusão fica por conta do(a) leitor(a). 

Para concluir, segue a transcrição do que Dora Kramer escreveu, em sua coluna, na edição de VEJA desta semana:

O Brasil enfrenta problemas graves para todo tipo de (des)gosto — sanitário, político, econômico, social e energético —, que requerem a mobilização de diversos setores. Uns com maior êxito e presença, outros com menor eficácia, menos visibilidade ou poder de influência, mas cada qual fazendo a sua parte na medida das respectivas possibilidades.

O Supremo Tribunal Federal num empenho diuturno para barrar ofensivas antidemocráticas, o Ministério Público e a Polícia Federal em luta contra interferências “de cima”, organizações sociais mobilizando-se para minorar a situação de brasileiros vulneráveis, governadores e prefeitos envolvidos numa saudável corrida em prol da vacinação, o Senado montando na CPI o quebra-cabeça do desmazelo governamental na gestão da pandemia e a oposição mergulhada nas articulações para enfrentar Jair Bolsonaro em 2022.

Diante disso, a Câmara dos Deputados faz o quê? Discute mudanças nas regras político-eleitorais, entre as quais a instituição do voto impresso para conferência do resultado obtido nas urnas eletrônicas. E esse é apenas um entre os vários itens de uma agenda regressiva que o presidente da Câmara, Arthur Lira — patrocinador maior da iniciativa —, chama de reforma política.

Na pauta do atraso estão também restrições à atuação da Justiça Eleitoral, o afrouxamento das regras de inelegibilidade tornadas mais severas na Lei da Ficha Limpa, a volta das doações empresariais, a revogação do fim das coligações proporcionais, a redução das exigências para o desempenho eleitoral dos partidos para acesso ao fundo público de financiamento e horário no rádio e na televisão, além da adoção de um sistema chamado “distritão”, que, segundo especialistas, fortalece as cúpulas, mas enfraquece a estrutura das legendas.

Até por representarem um retrocesso em relação a alguns avanços obtidos ao longo dos últimos anos, várias dessas medidas em discussão já foram rejeitadas anteriormente pelo STF (voto impresso, em 2013 e 2020, e financiamento empresarial, em 2015) e pelo próprio Congresso (“distritão”, em 2015 e 2019).

Não que o atual sistema seja perfeito. Longe disso. São inúmeras as distorções a serem corrigidas para uma adaptação aos tempos modernos do funcionamento dos partidos, da forma como se elegem parlamentares e até de uma configuração de governos que permitisse a interrupção de mandatos por caminho menos traumático que o impeachment.

Muito haveria a ser discutido para levar a cabo um processo de aperfeiçoamento. Por exemplo, a retomada do debate sobre a adoção do parlamentarismo, mas de maneira séria e consistente, e não da forma açodada e referida apenas nas circunstâncias do momento, como já aconteceu nas duas vezes (em 1963 e 1993) em que plebiscitos deram vitória ao presidencialismo.

Outro ponto que poderia ser enfrentado, mas é convenientemente ignorado, diz respeito ao voto facultativo, que nas pesquisas recebe apoio crescente da população. A obrigatoriedade assegura reserva de mercado aos partidos e aos políticos.

Também pela defesa das respectivas conveniências é que suas excelências não abordam uma questão de interesse do contribuinte: o excesso de dinheiro público para financiar as legendas. Hoje, os valores dos fundos eleitoral e partidário somam quase 3 bilhões de reais e vão além disso se contabilizada a renúncia fiscal das emissoras em decorrência da veiculação do horário eleitoral, que de gratuito só tem o nome (mais detalhes na postagem que publiquei em 30 de outubro de 2020).

Nada disso é contemplado na dita reforma ora em exame na Câmara. Isso porque a ideia não é reformar nem melhorar coisa alguma, mas tentar ajustes em causa própria. Uma espécie de “se colar, colou”, cuja posição de carro-chefe foi agora assumida pela história do voto impresso no gentil patrocínio do deputado Lira em prol do delírio persecutório de Jair Bolsonaro.

A intenção do presidente da República e seus parceiros nessa empreitada, que, se exitosa, custaria ao bolso do público 2 bilhões de reais, não é conferir confiança à apuração dos votos, mas disseminar a desconfiança sobre o resultado da próxima eleição.

É ingenuidade acreditar que cedendo a esse desejo retira-se do presidente o pretexto para contestar o produto das urnas e assim ficará tudo bem. Não ficará, porque o temor não é a fraude. Vem da consciência de que a paga das pragas rogadas diariamente ao país pode ser a derrota eleitoral.

Bom domingo a todos.