terça-feira, 22 de junho de 2021

ACREDITE... SE PUDER


De acordo com o Estadão, a TV Brasil — a “emissora traço” que Bolsonaro prometeu extinguir durante a campanha — planeja incluir na sua grade de programação um telejornal que irá exibir apenas “boas notícias. O Antagonista atribuiu a paternidade dessa ideia extraordinária ao “ministro da Propaganda” Fábio Faria, que negou ter participado da reunião e acusou o Estadão de propagar fake news (de fake news os bolsonaristas entendem).

Na última terça-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto, Fábio Faria defendeu o uso da TV pública para combater “narrativas erradas”. “Que a verdade possa chegar onde o povo quer ouvir. A gente, infelizmente, muitas vezes, é obrigado a ficar combatendo fake news, perdendo tempo, deixando de trabalhar, deixando de fazer os nossos deveres aqui para desmistificar as notícias enganosas. Vamos levar a verdadeira comunicação para o restante do País”, disse o genro do Homem do Baú.  

Resumo da ópera: enquanto o número de vítimas fatais da Covid ultrapassa meio milhão, os luminares palacianos querem levar ao telespectador fatos “leves” sobres saúde, comportamento e entretenimento. O nome do folhetim já está definido — “Bom de Ver”. As gravações do piloto já foram feitas, embora a data da estreia ainda não tenha sido definida.

Bolsonaro e sua trupe são críticos da cobertura da imprensa sobre a pandemia e defendem um noticiário que se concentre no número de curados. Mortes pela doença, inflação, desemprego, aumento da pobreza, nada disso é pauta. O general-chefe da Casa Civil costuma reclamar que “só tem caixão” na TV, interpretando à sua maneira o papel daquele que mata o mensageiro portador de más notícias.

Observação: Em 1707, quando voltava triunfante para a Grã-Bretanha após derrotar os franceses no Mediterrâneo, a frota comandada pelo almirante britânico Clowdisley Shovell adentrou denso nevoeiro. O imediato garantiu que estavam numa rota segura rumo à Península Britânica, mas outro marujo disse que, segundo seus cálculos, eles estavam em rota de colisão com um arquipélago de 150 minúsculas ilhas a sudoeste da Inglaterra. Shovell não só rejeitou a informação do marinheiro como mandou enforcá-lo. Resultado: os navios se espatifaram nas ilhas encobertas pelo nevoeiro e cerca de dois mil homens se afogaram.

A divulgação de fake news — prática contra a qual o ministro das Comunicações ora se insurge — tem sido o norte, o sul, o leste e o oeste deste espúrio desgoverno. O próprio presidente teve vídeos retirados do ar pelo Facebook e pelo Google sob a alegação de que propagava informações falsas ou sem comprovação — e por conta disso o governo prepara um decreto para limitar a atuação das redes sociais no Brasil.

No STF, um inquérito investiga a disseminação de fake news por parte da récua bolsonarista. No Congresso, uma CPI apurara a participação de nomes ligados ao Palácio do Planalto na produção desse tipo de conteúdo. Na última terça-feira, a Associação Brasileira de Imprensa pediu ao MPF que investigue o uso do canal público para divulgação pessoal do presidente — o motivo foi a transmissão de um culto religioso que teve a participação do Messias que não faz milagres.

O plano de investir na TV pública como um contraponto ao noticiário da pandemia contraria a promessa de campanha de Bolsonaro de privatizar a “emissora traço” (*), passando a EBC para a iniciativa privada. A estatal chegou a ser incluída no Programa de Parcerias de Investimentos, mas a ideia nunca saiu do papel.

Mudando da emissora traço (*) para a CNN Brasil, o jornalista Rafael Colombo pediu para deixar o quadro “Liberdade de Opinião  após atritos com o comentarista Alexandre Garcia. Segundo a Folha, o apresentador, que já havia tido divergências de opinião ao vivo com Garcia, pedira para não interagir mais com o bolsonarista, mas foi convencido a ficar. A gota d’água foi a divulgação da notícia de que Garcia lucrou com fake news sobre a pandemia. A CNN Brasil informou que a saída de Colombo do programa é “uma das novidades programadas pela emissora e que em breve, divulgará mais informações”.

(*) Em fevereiro, de acordo com o relatório nacional da Kantar Ibope Media, a TV Brasil registrou 0,17 ponto de audiência na faixa das 6h às 5h59. Não contente em ficar (bem) atrás de Globo, Record, SBT, Band e RedeTV!, a deficitária rede estatal conseguiu perder para Viva (0,25), Multishow (0,2), SporTV (0,18), Discovery Kids (0,18) e Cartoon Network (0,18). Com a exibição da tal novela bíblica, a emissora registrou picos históricos de audiência (para quem beira o traço desde sua fundação, em 2007). O site da EBC festeja “patamar recorde de audiência em São Paulo”.

Duas pesquisas recentes mostram que a impopularidade de Bolsonaro se consolidou: o levantamento feito pela Exame/Ideia indica que 49% dos entrevistados desaprovam o governo; na pesquisa XP/Ipespe, esse índice foi um ponto percentual maior. Ambas mostram que a desaprovação do governo vem crescendo de forma consistente e ininterrupta desde outubro do ano passado, quando estava em 31%.

As razões são óbvias. Além dos mais de 500 mil mortos em razão da pandemia, o que por si só deveria bastar para arruinar a imagem de qualquer presidente, há uma aflitiva lentidão na vacinação, fruto da incompetência criminosa do governo, como vem mostrando com clareza a CPI do Genocídio. A pesquisa XP/Ipespe apurou que apenas 5% dos entrevistados dizem que “com certeza” não vão se vacinar, enquanto 88% disseram que ou já se vacinaram ou pretendem se vacinar. Esse é seguramente um dos aspectos que minam a popularidade de Bolsonaro, mas decerto não é o único.

Outro tema sensível abordado na pesquisa XP/Ipespe foi a corrupção, que Bolsonaro se jacta de ter liquidado em seu governo. O levantamento mostra que, em novembro de 2018, após a vitória eleitoral de Bolsonaro, 56% dos entrevistados, confiando nas ruidosas promessas do presidente eleito, esperavam que a corrupção fosse diminuir nos seis meses seguintes, enquanto apenas 17% imaginavam que fosse aumentar. Já na mais recente pesquisa, 46% disseram crer que a corrupção vai aumentar, enquanto apenas 16% entendem que vai diminuir.

Isso significa que a percepção de corrupção no País cresceu junto com a impopularidade do presidente, e não parece ser mera coincidência. As inúmeras suspeitas envolvendo a primeira-família, de rachadinhas ao uso da máquina pública para fins privados, contradizem frontalmente o discurso saneador do capetão. Hoje, quem está com Bolsonaro corre o risco de ser visto como corrupto.

Tal percepção é implacável, mesmo para os que têm boa imagem nacional. A pesquisa XP/Ipespe mostra que as Forças Armadas — de longe a instituição que inspira maior respeito entre os brasileiros — vêm perdendo a confiança dos cidadãos desde que se permitiram envolver com um governo tão nocivo para o País. O levantamento mostra que, em dezembro de 2018, pouco antes da posse de Bolsonaro, 70% dos brasileiros diziam confiar nas Forças Armadas; hoje, essa confiança caiu para 58%.

Se a má companhia bolsonarista prejudica uma instituição tão respeitada, o estrago para os já desmoralizados partidos e políticos que dão sustentação ao pior governo da história é muito maior. E o preço desse apoio será cada vez mais salgado: a pesquisa Exame/Ideia mostra que 52% dos entrevistados concordam com a realização de manifestações contra o governo.

Coube a Bolsonaro o duvidoso mérito de demonstrar que o atual sistema de governo não funciona. O perigo do desenho de um sistema que opõe o vencedor de uma eleição plebiscitária (portanto, uma figura forte) a um Parlamento fracionado e com baixa representatividade (o sistema proporcional de voto brasileiro garante a desproporção) já vinha sendo apontado há anos. Nem era preciso esperar a chegada de uma caricatura de homem de Estado como o atual presidente.

Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos — sistema de governo e sistema político-partidário — é, ao mesmo tempo, causa e consequência da profunda crise atual.

A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória — sequer com uma candidatura viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de reforma política.

Desse cenário surgiu também a proposta do semipresidencialismo, que vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência, significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo primeiro-ministro, mas o presidente eleito diretamente permanece no posto.

A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista pelo qual o chefe do Executivo começa o governo buscando maioria no Legislativo num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro.

A esperança é a de que a necessária redução do número de partidos — elemento essencial em qualquer reforma política — se daria na medida em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo: o da “situação” e o da “oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas não seria precondição para o semipresidencialismo.

A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no Legislativo e, de qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria — e aí há um involuntário componente de ironia política — tão radical diante do que já acontece.

De fato, Bolsonaro divide a chefia de governo não com um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado. Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de situação com uma notável diferença em relação à proposta do semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou seja, no semipresidencialismo, Bolsonaro não precisaria ter medo de impeachment. Sem embargo dos defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se vislumbra saída para a crise permanente.

Para muitos, a discussão em torno de normas futuras pode parecer perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou a soma disso tudo). Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que o Brasil enfrenta: a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de consenso, ou a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito

O assassinato em público da Lava-Jato, a maior e mais bem sucedida operação de combate à corrupção jamais vista na história da justiça penal brasileira, é o pior crime contra o respeito às leis, o regime democrático e as instituições que está sendo cometido no Brasil dos nossos dias. O STF, os chefes da vida política e as elites, com a participação ativa da esquerda e o apoio da mídia, escandalizam-se todos os dias contra os “atos antidemocráticos”, os riscos de “ditadura” e todos os demais fantasmas do gênero; fazem até processos e jogam gente na cadeia por conta disso. Mas não dizem uma sílaba diante da licença praticamente oficial para roubar o erário público que foi dada pelo próprio STF e as camadas seguintes do Judiciário.

É isso, em português claro, que resultou da liquidação da Lava-Jato. E isso — a decisão superior da justiça estabelecendo que as leis não valem para os casos de corrupção — é a própria negação da ideia de democracia. Não existe Estado de Direito onde o crime seja aceito, aprovado e incentivado, como acontece hoje no Brasil por determinação da própria Justiça. E fim de conversa.

Foi uma ilusão, ou um momento de estupidez, achar que a decisão do STF que anulou todas as ações penais contra Lula — e sua condenação em três instâncias pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro — iria parar nele. Como na história da árvore envenenada, que só pode produzir frutos venenosos, o presente dado ao ex-presidente, ex-presidiário e agora “ex-corrupto” contaminou imediatamente os processos de ladroagem que existem debaixo dele. Resultado: condenações obtidas com base em provas materiais, confissões dos criminosos, delações de comparsas e outros elementos óbvios de culpa, estão sendo anulados para se adaptarem à decisão do STF que desobrigou Lula de pagar pelos delitos que cometeu, segundo a Justiça brasileira.

O STJ — e o resto do mecanismo Judiciário que se pendura embaixo do STF — acaba de dar ao País um exemplo perfeito deste processo de degeneração. Em setembro último, antes da supressão da Lava-Jato pela ação combinada dos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes, executivos da empreiteira de obras Queiroz Galvão foram condenados na 13ª Vara Federal de Curitiba por corrupção, lavagem de dinheiro, cartel, fraude e organização criminosa, no assalto em massa contra a Petrobras. Não houve como escapar: a empresa tinha dado mais de R$ 5 milhões a políticos nomeados pelo doleiro Alberto Youssef, figura central da Lava-Jato. Mas a exemplo de Lula, que teve seus processos anulados porque o STF decidiu que ele tinha sido julgado no lugar errado — Curitiba, em vez de São Paulo, segundo descobriu o ministro Fachin — a Queiroz Galvão se safou porque o STJ decidiu que seu caso deveria ser julgado na Justiça Eleitoral, e não na Justiça Penal de Curitiba. Pronto: zera tudo.

É óbvio que continuará havendo histórias assim. A mensagem não poderia ser mais clara: seja lá qual for o governo, ou quem estiver na Presidência da República, contrate um time de advogados caros, separe uns bons milhões para os honorários (e outras despesas) e roube à vontade. Não tem a menor importância o fato de existir uma montanha de provas contra o ladrão. É só dizer à Justiça, depois da condenação, que você deveria ter sido processado na vara “A”, em vez da vara “B”, e correr para o abraço. 

O melhor de tudo é que os militantes das instituições democráticas não acham absolutamente nada de errado com isso.

Com Willian Waak e J.R. Guzzo