De acordo com o Estadão, a TV Brasil — a “emissora traço” que Bolsonaro prometeu extinguir durante a campanha — planeja incluir na sua grade de programação um telejornal que irá exibir apenas “boas notícias”. O Antagonista atribuiu a paternidade dessa ideia extraordinária ao “ministro da Propaganda” Fábio Faria, que negou ter participado da reunião e acusou o Estadão de propagar fake news (de fake news os bolsonaristas entendem).
Na última terça-feira, em cerimônia no Palácio do Planalto, Fábio
Faria defendeu o uso da TV pública para combater “narrativas erradas”.
“Que a verdade possa chegar onde o povo quer ouvir. A gente,
infelizmente, muitas vezes, é obrigado a ficar combatendo fake news, perdendo
tempo, deixando de trabalhar, deixando de fazer os nossos deveres aqui para
desmistificar as notícias enganosas. Vamos levar a verdadeira comunicação para
o restante do País”, disse o genro do Homem do Baú.
Resumo da ópera: enquanto o número de vítimas fatais da Covid ultrapassa meio milhão, os luminares palacianos querem levar ao telespectador fatos “leves” sobres saúde, comportamento e entretenimento. O nome do folhetim já está definido — “Bom de Ver”. As gravações do piloto já foram feitas, embora a data da estreia ainda não tenha sido definida.
Bolsonaro e sua trupe são críticos da cobertura da
imprensa sobre a pandemia e defendem um noticiário que se concentre no número
de curados. Mortes pela doença, inflação, desemprego, aumento da pobreza, nada
disso é pauta. O general-chefe da Casa Civil costuma reclamar que “só tem
caixão” na TV, interpretando à sua maneira o papel daquele que mata o
mensageiro portador de más notícias.
Observação: Em 1707, quando voltava triunfante
para a Grã-Bretanha após derrotar os franceses no Mediterrâneo, a frota
comandada pelo almirante britânico Clowdisley Shovell adentrou denso
nevoeiro. O imediato garantiu que estavam numa rota segura rumo à Península
Britânica, mas outro marujo disse que, segundo seus cálculos, eles estavam em
rota de colisão com um arquipélago de 150 minúsculas ilhas a sudoeste da
Inglaterra. Shovell não só rejeitou a informação do marinheiro como
mandou enforcá-lo. Resultado: os navios se espatifaram nas ilhas encobertas
pelo nevoeiro e cerca de dois mil homens se afogaram.
A divulgação de fake news — prática contra a qual o
ministro das Comunicações ora se insurge — tem sido o norte, o sul, o leste e o
oeste deste espúrio desgoverno. O próprio presidente teve vídeos retirados do
ar pelo Facebook e pelo Google sob a alegação de que propagava
informações falsas ou sem comprovação — e por conta disso o governo prepara um
decreto para limitar a atuação das redes sociais no Brasil.
No STF, um inquérito investiga a disseminação de fake
news por parte da récua bolsonarista. No Congresso, uma CPI apurara
a participação de nomes ligados ao Palácio do Planalto na produção desse tipo
de conteúdo. Na última terça-feira, a Associação Brasileira de Imprensa
pediu ao MPF que investigue o uso do canal público para divulgação
pessoal do presidente — o motivo foi a transmissão de um culto religioso que
teve a participação do Messias que não faz milagres.
O plano de investir na TV pública como um contraponto ao
noticiário da pandemia contraria a promessa de campanha de Bolsonaro de
privatizar a “emissora traço” (*), passando a EBC para a iniciativa
privada. A estatal chegou a ser incluída no Programa de Parcerias de
Investimentos, mas a ideia nunca saiu do papel.
Mudando da emissora traço (*) para a CNN Brasil,
o jornalista Rafael Colombo pediu para deixar o quadro “Liberdade
de Opinião” após atritos com o comentarista Alexandre
Garcia. Segundo a Folha, o apresentador, que já havia tido
divergências de opinião ao vivo com Garcia, pedira
para não interagir mais com o bolsonarista, mas foi convencido a ficar.
A gota d’água foi a divulgação da notícia de que Garcia
lucrou com fake news sobre a pandemia. A CNN Brasil informou
que a saída de Colombo do programa é “uma das novidades
programadas pela emissora” e que “em breve,
divulgará mais informações”.
(*) Em fevereiro, de acordo com o relatório nacional da Kantar Ibope Media,
a TV Brasil registrou 0,17 ponto de audiência na faixa das 6h às 5h59.
Não contente em ficar (bem) atrás de Globo, Record, SBT, Band
e RedeTV!, a deficitária rede estatal conseguiu perder para Viva
(0,25), Multishow (0,2), SporTV (0,18), Discovery Kids
(0,18) e Cartoon Network (0,18). Com a exibição da tal novela
bíblica, a emissora registrou picos
históricos de audiência (para quem beira o traço desde sua
fundação, em 2007). O site da EBC festeja “patamar
recorde de audiência em São Paulo”.
Duas pesquisas recentes mostram que a impopularidade de Bolsonaro
se consolidou: o levantamento feito pela Exame/Ideia indica que 49%
dos entrevistados desaprovam o governo; na pesquisa XP/Ipespe, esse
índice foi um ponto percentual maior. Ambas mostram que a desaprovação
do governo vem crescendo de forma consistente e ininterrupta desde outubro do
ano passado, quando estava em 31%.
As razões são óbvias. Além dos mais de 500 mil mortos em
razão da pandemia, o que por si só deveria bastar para arruinar a imagem de
qualquer presidente, há uma aflitiva lentidão na vacinação, fruto da
incompetência criminosa do governo, como vem mostrando com clareza a CPI do Genocídio.
A pesquisa XP/Ipespe apurou que apenas 5% dos entrevistados dizem
que “com certeza” não vão se vacinar, enquanto 88% disseram que ou
já se vacinaram ou pretendem se vacinar. Esse é seguramente um dos aspectos
que minam a popularidade de Bolsonaro, mas decerto não é o único.
Outro tema sensível abordado na pesquisa XP/Ipespe
foi a corrupção, que Bolsonaro se jacta de ter liquidado em seu governo.
O levantamento mostra que, em novembro de 2018, após a vitória eleitoral de Bolsonaro,
56% dos entrevistados, confiando nas ruidosas promessas do presidente
eleito, esperavam que a corrupção fosse diminuir nos seis meses seguintes,
enquanto apenas 17% imaginavam que fosse aumentar. Já na mais recente
pesquisa, 46% disseram crer que a corrupção vai aumentar, enquanto
apenas 16% entendem que vai diminuir.
Isso significa que a percepção de corrupção no País cresceu
junto com a impopularidade do presidente, e não parece ser mera coincidência.
As inúmeras suspeitas envolvendo a primeira-família, de rachadinhas ao uso da
máquina pública para fins privados, contradizem frontalmente o discurso saneador
do capetão. Hoje, quem está com Bolsonaro corre o risco de ser visto
como corrupto.
Tal percepção é implacável, mesmo para os que têm boa imagem
nacional. A pesquisa XP/Ipespe mostra que as Forças Armadas — de
longe a instituição que inspira maior respeito entre os brasileiros — vêm
perdendo a confiança dos cidadãos desde que se permitiram envolver com um
governo tão nocivo para o País. O levantamento mostra que, em dezembro de 2018,
pouco antes da posse de Bolsonaro, 70% dos brasileiros diziam
confiar nas Forças Armadas; hoje, essa confiança caiu para 58%.
Se a má companhia bolsonarista prejudica uma instituição tão
respeitada, o estrago para os já desmoralizados partidos e políticos que dão
sustentação ao pior governo da história é muito maior. E o preço desse apoio
será cada vez mais salgado: a pesquisa Exame/Ideia mostra que 52%
dos entrevistados concordam com a realização de manifestações contra o governo.
Coube a Bolsonaro o duvidoso mérito de demonstrar que
o atual sistema de governo não funciona. O perigo do desenho de um sistema que
opõe o vencedor de uma eleição plebiscitária (portanto, uma figura forte) a um
Parlamento fracionado e com baixa representatividade (o sistema proporcional de
voto brasileiro garante a desproporção) já vinha sendo apontado há anos. Nem
era preciso esperar a chegada de uma caricatura de homem de Estado como o atual
presidente.
Caricaturas às vezes ilustram um argumento, e a maneira como
Bolsonaro, em busca da reeleição, está negociando com uma agremiação
política de aluguel (das quais existem dezenas) serviu também para reiterar a
falência do sistema de partidos. A combinação do mau funcionamento de ambos —
sistema de governo e sistema político-partidário — é, ao mesmo tempo, causa e
consequência da profunda crise atual.
A amplitude da crise está levando elites pensantes no mundo
político, intelectual e empresarial à convicção de que as próximas eleições não
trarão uma solução, nem mesmo uma saída provisória — sequer com uma candidatura
viável de terceira via. Esse “não dá mais de jeito nenhum” é o grande
cenário de fundo para o que se discute no momento na Câmara em termos de
reforma política.
Desse cenário surgiu também a proposta do
semipresidencialismo, que vem da intersecção entre o mundo acadêmico do Direito
e o da política e envolve também ministros do STF. Na sua essência,
significa manter a atual figura do presidente da República como chefe de Estado
com a prerrogativa de nomear um primeiro-ministro (que não precisa ser
parlamentar nem eleito) que, por sua vez, teria de montar um gabinete de
ministros dependendo de maioria no Legislativo. O modelo é o que já existe na
França e em Portugal: sem maioria no Parlamento cai o governo chefiado pelo
primeiro-ministro, mas o presidente eleito diretamente permanece no posto.
A ideia do semipresidencialismo agora lançada em debate
público embute duas constatações realistas e uma forte dose de esperança. Ela
assume, corretamente, que nunca funcionará o atual sistema presidencialista
pelo qual o chefe do Executivo começa o governo buscando maioria no Legislativo
num sistema político-partidário fracionado e pouco representativo. E assume
ainda, corretamente, que a “cultura política” brasileira precisa da figura
forte do presidente (que continuaria chefe das Forças Armadas e da
diplomacia) e não comportaria um parlamentarismo puro.
A esperança é a de que a necessária redução do número de
partidos — elemento essencial em qualquer reforma política — se daria na medida
em que surgissem dois grandes blocos no Legislativo: o da “situação” e o da
“oposição”. Alteração como a introdução do voto distrital misto ajudaria, mas
não seria precondição para o semipresidencialismo.
A ideia em debate assume também, realisticamente, que não há
perspectiva de ampla reforma política com as atuais forças em jogo no
Legislativo e, de qualquer maneira, só valeria a partir de 2026. Mas não seria —
e aí há um involuntário componente de ironia política — tão radical diante do
que já acontece.
De fato, Bolsonaro divide a chefia de governo não com
um, mas com dois primeiros-ministros, os presidentes da Câmara e do Senado.
Já o Centrão pode ser descrito como uma “federação” de partidos de
situação com uma notável diferença em relação à proposta do
semipresidencialismo: no sistema de governo atual o presidente é seu refém. Ou
seja, no semipresidencialismo, Bolsonaro não precisaria ter medo de
impeachment. Sem embargo dos defeitos ou vantagens desse tipo de ideia, o
principal mérito político no momento está em forçar um debate para além dos
sistemas de governo e político-partidário atuais, dentro dos quais não se
vislumbra saída para a crise permanente.
Para muitos, a discussão em torno de normas futuras pode
parecer perda de tempo, utopia acadêmica ou impossibilidade política (ou a soma
disso tudo). Cabe então lembrar que só há duas resoluções de crises como a que
o Brasil enfrenta: a saída pela negociação, compromisso e algum tipo de
consenso, ou a saída pelo conflito. Bolsonaro aposta no conflito
O assassinato em público da Lava-Jato, a maior e mais
bem sucedida operação de combate à corrupção jamais vista na história da
justiça penal brasileira, é o pior crime contra o respeito às leis, o regime
democrático e as instituições que está sendo cometido no Brasil dos nossos
dias. O STF, os chefes da vida política e as elites, com a participação
ativa da esquerda e o apoio da mídia, escandalizam-se todos os dias contra os “atos
antidemocráticos”, os riscos de “ditadura” e todos os demais
fantasmas do gênero; fazem até processos e jogam gente na cadeia por conta
disso. Mas não dizem uma sílaba diante da licença praticamente oficial para
roubar o erário público que foi dada pelo próprio STF e as camadas
seguintes do Judiciário.
É isso, em português claro, que resultou da liquidação da Lava-Jato.
E isso — a decisão superior da justiça estabelecendo que as leis não valem para
os casos de corrupção — é a própria negação da ideia de democracia. Não
existe Estado de Direito onde o crime seja aceito, aprovado e incentivado,
como acontece hoje no Brasil por determinação da própria Justiça. E fim de
conversa.
Foi uma ilusão, ou um momento de estupidez, achar que a
decisão do STF que anulou todas as ações penais contra Lula — e
sua condenação em três instâncias pelos crimes de corrupção e lavagem de
dinheiro — iria parar nele. Como na história da árvore envenenada, que só pode
produzir frutos venenosos, o presente dado ao ex-presidente, ex-presidiário e
agora “ex-corrupto” contaminou imediatamente os processos de ladroagem que
existem debaixo dele. Resultado: condenações obtidas com base em provas
materiais, confissões dos criminosos, delações de comparsas e outros elementos
óbvios de culpa, estão sendo anulados para se adaptarem à decisão do STF
que desobrigou Lula de pagar pelos delitos que cometeu, segundo a
Justiça brasileira.
O STJ — e o resto do mecanismo Judiciário que se
pendura embaixo do STF — acaba de dar ao País um exemplo perfeito deste
processo de degeneração. Em setembro último, antes da supressão da Lava-Jato
pela ação combinada dos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes,
executivos da empreiteira de obras Queiroz Galvão foram condenados na 13ª
Vara Federal de Curitiba por corrupção, lavagem de dinheiro, cartel, fraude
e organização criminosa, no assalto em massa contra a Petrobras. Não houve como
escapar: a empresa tinha dado mais de R$ 5 milhões a políticos nomeados pelo
doleiro Alberto Youssef, figura central da Lava-Jato. Mas a
exemplo de Lula, que teve seus processos anulados porque o STF
decidiu que ele tinha sido julgado no lugar errado — Curitiba, em vez de São
Paulo, segundo descobriu o ministro Fachin — a Queiroz Galvão se
safou porque o STJ decidiu que seu caso deveria ser julgado na Justiça
Eleitoral, e não na Justiça Penal de Curitiba. Pronto: zera tudo.
É óbvio que continuará havendo histórias assim. A mensagem não poderia ser mais clara: seja lá qual for o governo, ou quem estiver na Presidência da República, contrate um time de advogados caros, separe uns bons milhões para os honorários (e outras despesas) e roube à vontade. Não tem a menor importância o fato de existir uma montanha de provas contra o ladrão. É só dizer à Justiça, depois da condenação, que você deveria ter sido processado na vara “A”, em vez da vara “B”, e correr para o abraço.
O melhor
de tudo é que os militantes das instituições democráticas não acham
absolutamente nada de errado com isso.
Com Willian Waak e J.R. Guzzo