segunda-feira, 14 de junho de 2021

O PODER, OS PODEROSOS E O QUE SE PODE FAZER


Em entrevista reproduzida pela BBC Brasil, o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza disse que os militares voltaram ao poder para ficar, com ou sem Bolsonaro. Segundo ele, os 17 generais que formam o Alto Comando do Exército (dos quais 15 exercem cargos na Esplanada dos Ministérios ou em estatais, autarquias e órgãos de fiscalização) formaram um “Partido Militar” para eleger o ex-capitão, e assim chegar ao poder sem ruptura institucional. 

O grupo teria começado a se articular no início da década passada, em parte pelo fato do país ser governado, então, por uma ex-guerrilheira. E foram eles que procuraram Bolsonaro, não o contrário (um registo do encontro está no canal no YouTube de Carlos Bolsonaro).

A candidatura do hoje presidente foi cuidadosamente planejada para disfarçar o envolvimento do grupo. Na escolha do vice, por exemplo, falou-se em Magno Malta, no príncipe Luiz Philippe de Orléans e Bragança e na advogada Janaína Paschoal. Mas a única dúvida era se seria o general Augusto Heleno ou o general Hamilton Mourão — devido à idade do primeiro, optou-se pelo segundo.

Pimentel atuou junto com Santos Cruz em 2016, supervisionando um grupo de trabalho do Estado Maior do Exército que era orientado pelo general, que já havia passado para a reserva e mais adiante, assumiu um cargo no primeiro escalão do Governo do capitão, no qual permaneceu por sete meses, até ser demitido devido a ataques de Carlos Bolsonaro e apoiadores do presidente. “Talvez o Mourão passe para o segundo turno, talvez seja o Santos Cruz”, especula o coronel. “Mas o Partido Militar vai estar no segundo turno no ano que vem.” 

O general Santos Cruz disse à reportagem que não quer comentar sobre as “divagações” de seu ex-subordinado, e o Exército e o Planalto não retornaram o contato da emissora.

Observação: Sobre a motociata do capetão, Santos Cruz assim se pronunciou:  “A mentalidade anarquista do presidente age para destruir e desmoralizar as instituições, e banalizar o desrespeito pessoal, funcional e institucional. Junto com seguidores extremistas, alimenta um fanatismo que certamente terminará em violência.” Talvez fosse bom lhe dar ouvidos.

Pimentel diz ainda que a ida de Pazuello para o Ministério da Saúde foi um erro de cálculo do Partido Militar: “Tentaram fazer uma publicidade da capacidade do Exército brasileiro de resolver problemas, pensando que os números iam cair, e quem estaria à frente do ministério seria um general da ativa vendido como ‘o rei da logística’.”

A pandemia se agravou e Pazuello deixou o ministério muito criticado e é alvo de investigação por causa do colapso do sistema de saúde em Manaus. Ainda assim, virou secretário do presidente e discursou num ato em apoio a seu governo. Na avalição do coronel, a decisão do Exército de não punir Pazuello comprova a politização das Forças Armadas. “Ficou estranha essa decisão, porque com indisciplina não se transige. É a base da instituição.”

No sábado 12, o presidente promoveu outra “motociata” e foi multado pelo governo de São Paulo por desrespeitar as leis sanitárias do Estado. Como se não bastassem as aglomerações produzidas pelo comício, o capitão transgrediu a lei ao andar numa moto com a placa oculta. Adulterar placas, lembra o jornalista Guilherme Amado, viola o Código Penal, que prevê pena de três a seis anos de reclusão, além de multa, a quem comete esse tipo de infração. 

Observação: Durante a manifestação bolsonarista, um motociclista perdeu o controle, caiu e acabou derrubando outros participantes. Uma pessoa ficou deitada no asfalto esperando atendimento médico. Ao contrário dos índices de aprovação de sua gestão, o presidente — que vestia uma jaqueta bordada com seu retrato eu usava um capacete com a inscrição “presidente Bolsonaro” — não caiu.

Ricardo Kertzman anotou em sua coluna na ISTOÉ que não deixa de ser curioso o nome da motociata do capetão ser Acelera para Cristo

Cristo? Milhares de irresponsáveis se aglomerando e espalhando o novo coronavírus jamais seria obra Dele? O Motoqueiro Fantasma é um anti-herói do bem. Renascido do fogo do inferno, retorna à Terra para combater o mal. Já o amigão do Queiroz (aquele miliciano que entupiu a conta da primeira-dama com 90 mil reais em ‘micheques’) é o próprio demônio encarnado. Sua missão é destruir, ofender, promover o ódio e a discórdia e, claro, espalhar vírus e causar mortes. 

Em culto a si mesmo e à sua personalidade macabra, o devoto da cloroquina sequestra a imagem de Cristo e usurpa o cristianismo em causa própria. O rolê jamais foi para o mais pródigo dos filhos de Deus, e sim para o líder da seita fanática do bolsonarismo, que trajava uma camisa com sua própria foto e um elmo com seu próprio nome. Bolsonaro é tão lunático e tão psicopata que não me surpreenderia a equiparação a Cristo.

Certa feita, Lula, o meliante de São Bernardo, comparou-se a Deus. Essa espécie de gente acaba acreditando naquilo que seus devotos lhe oferecem, ou seja, a divindade sob forma humana (eu disse humana?). Mas, no final do dia, se deparam com a mediocridade e finitude que a imagem carcomida que o espelho atira em suas caras desavergonhadas.”

Bolsonaro cometeu diversos crimes de responsabilidade, mas é protegido por um “escudo político” que inclui até Lula, que prefere tentar derrota-lo nas urnas, avalia o professor de direito da Universidade de São Paulo Rafael Mafei, autor do livro Como Remover um Presidente — Teoria, história e prática do impeachment no Brasil

Em entrevista ao Estadão, Mafei afirma que o impeachment é um remédio amargo que deve ser reservado como último recurso para proteger o país de um presidente tirano ou criminoso que tenha conseguido vencer as eleições, mas vacilar na sua aplicação quando ele for indispensável pode ter efeitos trágicos para a democracia.

Uma das hipóteses emergenciais nas quais o uso desse instrumento seria necessário, segundo Mafei, é o exercício da Presidência por Jair Bolsonaro. Não há, segundo ele, nenhuma dúvida jurídica de que o presidente tenha cometido crimes de responsabilidade. Como exemplos, Mafei cita a violação ao direito à saúde no contexto da pandemia — que ficou ainda mais claro com os trabalhos da CPI do Genocídio — e o fato de o mandatário agir de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo ao usar o poder comunicacional de sua posição para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e a hostilidade entre instituições militares e civis. 

Cerca de 120 pedidos de impeachment dormitam placidamente sobre a mesa do deputado-réu Arthur Lira, que se elegeu presidente da Câmara com o apoio do chefe do Executivo e recursos do “orçamento paralelo” (ou “Tratoraço”, como queiram). Lira não dará andamento a nenhum deles (a exemplo de como fez seu antecessor) enquanto Bolsonaro mantiver seu “escudo político” de apoiadores e seus adversários acharem que a melhor solução é derrotá-lo nas urnas. Mas que respeito terão pelo TSE um presidente e uma matula de apoiadores que não têm o menor respeito pelo STF? (Falo do Supremo como instituição, porque a maioria dos togados... enfim, deixa pra lá).

Mafei apresenta em seu livro uma análise detalhada dos impeachments de Collor e Dilma. O primeiro serviu para o país estabelecer as regras do procedimento, mas teve um ar festivo, a despeito de o impeachment ser um grande trauma e ter um custo político enormeQuanto ao segundo, o escritor pondera que o termo “golpe”, como usado pelos apoiadores da petista, é inadequado para analisar o processo, mas que as ilegalidades cometidas pela ex-presidanta poderiam ter sido enfrentadas por meios menos traumáticos.

Remover do cargo um presidente descomprometido com as instituições, perigoso para a sobrevivência e para a integridade delas, e que não possa ser contido de outra maneira é, em última análise, permitir que o destino da democracia de um país fique rendido nas mãos de um tirano ou de um criminoso que tenha conseguido vencer as eleições. Deodoro da Fonseca, que foi o primeiro presidente do Brasil, vetou a Lei do Impeachment por achar que ela estava sendo trabalhada pelos seus adversários para depô-lo. Quando o Congresso derrubou seu veto, ele simplesmente dissolveu o Legislativo, como se o país ainda estivesse no Império e ele fosse o imperador. 

Observação: Ao longo de seus 130 anos de história republicana, o Brasil teve 35 presidentes que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar do primeiro, foram de alguma maneira apeados do poder.

No caso de Collor, quando a situação começou a ficar insustentável, o parlamentarismo se apresentou com a alternativa, até porque a Constituição Cidadã, promulgada em meio à ressaca da ditadura militar, pavimentara o caminho para esse sistema de governo. Mas o plano não seguiu adiante, uma vez que Collor botou sua tropa de choque em campo para jogar pesado no Senado e derrotar a emenda parlamentarista.

Observação: art. 2º Título X, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispõe que: “no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País.” Mais adiante, a emenda nº 2, de 25 de agosto de 1992, antecipou o plebiscito para 21 de abril de 1993 e determinou que seus efeitos vigessem a partir de 1º de janeiro de 1995. Mas faltou combinar com os burros, e aí deu zebra — uma zebra que emprenhou e pariu o presidencialismo de coalizão (ou de cooptação, como queiram).

É importante salientar que, quando o impeachment de Collor começou a ser cogitado, o que se tinha era a lei de 1950 e o Brasil jamais havia vivenciado um impedimento de chefe do Executivo (nem mesmo de governador de Estado). Quando a Câmara aprovou a abertura do processo, o Senado não tinha ideia de como conduzi-lo, e assim coube ao Supremo esclarecer as regras do jogo. 

Num almoço que reuniu os então presidentes do STF e do Senado, o ministro Sydney Sanches entregou ao senador Mauro Benevides duas folhas com o rito do impeachment, escrito quase que integralmente pelo ministro Celso de Mello, e disse: “Se vocês seguirem isso aqui, nós não vamos interferir em nada”.

O processo que resultou na renúncia de Collor (que foi julgado culpado e inabilitado politicamente por 8 anos) foi como que uma micareta cívica. Mas o impeachment não só é um processo traumático como acarreta um custo político astronômico. Essa percepção é importante para evitar que se lance mão da medida em situações que não a exijam. Por outro lado, se ela for realmente indispensável, vacilar na sua aplicação pode ter efeitos trágicos para o país. Nos anos 1970, quando o então presidente norte-americano Richard Nixon renunciou para não ser cassado, um dos primeiros atos de Gerald Ford foi perdoar o antecessor para pôr uma pá de cal sobre o assunto.

Mafei diz não ter dúvidas de que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, sobretudo no contexto da pandemia. Segundo ele, dois crimes estão claramente configurados. O artigo sétimo da Lei do Impeachment tipifica como crime de responsabilidade violar, patentemente, qualquer direito social assegurado na Constituição — e a Constituição assegura o direito social à saúde. 

CPI tem evidenciado que o presidente claramente optou por sacrificar a saúde dos brasileiros e inviabilizar políticas essenciais no combate à pandemia, pois, se a economia fosse mal, sua reeleição estaria comprometida, mas se a saúde fosse mal e centenas de milhares de pessoas morressem (como de fato aconteceu), a culpa seria dos governadores e prefeitos. É por isso que Bolsonaro insiste na tese de que o STF o afastou do comando do gerenciamento da crise. Somada a seu discurso negacionista, essa falácia estimula seus apoiadores de raiz a demonizar qualquer um que defenda o distanciamento social (e, por extensão, do uso de máscaras e demais medidas preventivas). 

O segundo crime do capetão consiste na violação ao artigo 9º da Lei do Impeachment, no tocante a proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Bolsonaro falou muita bobagem em seus 28 anos de deputância, mas o que disse como deputado tem um impacto insignificante se comparado ao das aleivosias que ele regurgita como presidente

Observação: O dispositivo legal retrocitado visa justamente impedir que o chefe do Executivo use seu poder retórico e verbal para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e hostilidade entre instituições militares e instituições civis. Se o comportamento de Bolsonaro não viola a dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime precisa ser elidido da lei, posto que não existe e, portanto, não é possível cometê-lo.

Bolsonaro é um criminoso político que desafia o impeachment escudando-se em seus apoiadores e no fato de seus adversários insistirem em derrotá-lo nas urnas. A estes, cumpre lembrar que a prudência recomenda não ferir quem não se pode matar. Atores políticos que já estiveram no círculo de proximidade do presidente hoje se bate pelo impeachment — caso de Alexandre Frota, Kim Kataguiri e Joice Hasselmann, entre outros —, mas para isso seria preciso que todos se unissem e que o impeachment em si fosse o “plano A”.

Derrotar Bolsonaro nas urnas vai muito além de fazer campanha e apurar o resultado das urnas. Ele já deixou isso evidente ao fazer eco à falácia trumpista de fraude eleitoral e ao insistir no restabelecimento do voto impresso no Brasil (detalhe: nos EUA ainda se utilizam cédulas). Demais disso, já cuidou de aparelhar a PF, a Abin, a PGR, a AGU, a CGU, o Ministério da Saúde, as presidências da Câmara e do Senado e as Forças Armadas.

Observação: Quem não se lembra do motim da PM do Ceará, do descumprimento da Polícia Civil do RJ às restrições impostas pelo STF a operações em comunidades, da ação truculenta da PM pernambucana, que disparou balas de borracha contra manifestantes que saíram às ruas para protestar contra o governo, entre tantos outros exemplos?

A derrota de Bolsonaro nas urnas (que seria providencial, mormente se o candidato vitorioso fosse outro que não certo ex-presidente ex-presidiário e “ex-corrupto”) pode dar azo a uma batalha campal, uma situação caótica muito mais grave que a invasão do Capitólio pela caterva trumpista em 6 de janeiro passado. Alguém deveria dizer isso a Lula, Leite, Doria e a quem mais tencione disputar a presidência em 2022, até porque a janela de oportunidade do impeachment vai se fechando conforme o início oficial da disputa se aproxima.

Bolsonaro se preocupa apenas em proteger a filharada, acirrar sua militância e fazer campanha pela reeleição — embora o fim da reeleição tenha sido uma de suas principais promessas de campanha em 2018 — e nem se dá ao trabalho de fingir que respeitará o resultado das urnas se vier a ser derrotado em 2022. Repete ad nauseam que não confia no processo porque, em 2018, sua vitória no primeiro turno não foi reconhecida, como relembrou na semana passada ao discursar para lideranças evangélicas em Anápolis (GO). Mas a pergunta que não quer calar é: se tem mesmo provas, por que ele não as apresenta? Se havia mesmo um plano para roubar sua eleição, como explicar sua vitória no segundo turno? 

Numa das vezes em que tratou dessa acusação, o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do TSE, lamentou que o Brasil não é mesmo um país para amadores, lembrando a famosa máxima de Tom Jobim. “Só aqui o ganhador reclama de fraude”, disse o magistrado. 

Em sua carreira política, Bolsonaro venceu oito eleições consecutivas, sendo seis delas já no esquema de voto digital. Mas coerência nunca foi mesmo o forte do presidente, assim como as análises precisas sobre eventos importantes ocorridos na história do Brasil. Fraudes existiam em abundância no passado das velhas cédulas de papel, problema que foi eliminado com as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é constantemente avalizada por auditorias internas e organismos internacionais. “É como voltar aos tempos do orelhão”, disse Barroso.

Essa insistência dos bolsonaristas em praticar o terraplanismo eleitoral serve como tentativa diversionista em meio à atual crise de popularidade do governo, e não passaria de mais uma aleivosia do lunático inquilino de turno do Planalto se não servisse de combustível para movimentos antidemocráticos. Não por acaso, insuflados pelo seu líder, os bolsomínions ameaçam armar um circo semelhante, avisando que não vão reconhecer o resultado do pleito de 2022 sem a impressão do voto. E o mito mitômano lhes dá corda: “Lula só ganha na fraude”.

Como salientou Mauricio Lima na Carta ao Leitor publicada na edição impressa de VEJA desta semana, não bastasse o custo estimado em R$ 2 bilhões de reais para a adaptação do atual sistema, a medida abre uma perigosa brecha para a judicialização das eleições, com o potencial surgimento de hordas de derrotados exigindo nos tribunais a recontagem dos votos. Em meio a tantos problemas da atualidade, tudo de que o Brasil não precisa é ser assombrado por fantasmas do passado.