Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, foi exonerado do cargo na madrugada de ontem. Por que diabo uma pasta que passou dez meses sob o comando de um general-interventor e autodeclarado gênio da logística precisaria de um diretor de logística? Responda quem souber. Talvez Carlos Wizard saiba. Só que não diz. Não à CPI do Genocídio, como se viu na sessão de ontem. Gente ligada ao atual governo é assim: quando não mente, omite. Em alguns casos, talvez seja melhor. Já tivemos no Planalto um exterminador do plural, uma criatura bizarra que tartamudeava coisas ininteligíveis num idioma igualmente bizarro (ainda que com um quê da língua de Camões) e agora um que, calado, é um poeta, taokey?
Lula usou o “eu não sabia” nos escândalos do Mensalão
e do Petrolão. Citando-o, o tucano Eduardo Azeredo repetiu o
bordão antes de ser condenado e preso no processo do Mensalão do PSDB
mineiro. Dilma reincidiu na citação quando alegou que não tinha ideia de
que os aliados plantavam bananeira dentro dos cofres da Petrobras. Repetido
agora no escândalo da vacina, o “não tenho como saber” consolida-se como
uma espécie de código. Quando ele aparece, a plateia já sabe que está diante de
mais um desses episódios em que políticos capazes de tudo pedirão ao país que
passe a enxergá-los como seres incapazes de todo.
De acordo com o que contou o bolsonarista Luis Miranda
à CPI do Genocídio, o nome de Ricardo Barros
escorreu dos lábios do presidente quando este ouviu o relato sobre as
maracutaias da Covaxin. Portanto, Bolsonaro sabia. E mesmo que
não soubesse, desqualificou-se pelo que deixou de fazer depois que soube, sinalizando
que seu compromisso com a ética cabe embaixo do tapete.
Primeiro, Bolsonaro mandou o secretário-geral da
Presidência ameaçar as testemunhas e tentou transformar a PF e a CGU
em órgãos de intimidação aos irmãos Miranda. Depois, mudou a
ladainha do “até hoje não houve nenhuma denúncia de corrupção nesse governo”
para “não é possível controlar o que acontece em todos os ministérios”. Sua
confissão ao deputado Luis Miranda mostra que ele conhece perfeitamente
as tramoias que estão em curso. Não se trata apenas da rachadinha do
primogênito, que o capitão quer abafar, mas de negociatas operadas pelo Centrão,
que foi comprado a peso de ouro (com dinheiro do contribuinte) para apoiá-lo e
evitar seu impeachment.
Com seu telefonema ao premier da Índia, Bolsonaro deixou
claro que estava envolvido pessoalmente em dar celeridade no processo de
aprovação da vacina Covaxin. Se, como tudo indica, a compra não era
de interesse público, mas de terceiros, houve crime de advocacia
administrativa, mais conhecido por tráfico de influência. Se, também
como tudo indica, havia grave suspeita de ilegalidade na compra da vacina, Bolsonaro
descumpriu sua obrigação de tomar uma providência, o que configura crime de
prevaricação. Se, ainda como tudo indica, em vez de comunicar à PF, ele
comunicou a terceiros, o crime é de vazamento de informação sigilosa —
havendo mesmo indícios de organização criminosa. Ao ameaçar testemunhas, Onyx Lorenzoni cometeu
crime de intimidação e obstrução de justiça. Ao fazê-lo em nome do
presidente, o fato de não ter sido denunciado nem demitido faz de Bolsonaro
cúmplice do ato delituoso. E se o capitão recebeu (ou receberia) qualquer tipo
de compensação pela compra da vacina, ou por avisar à quadrilha de que a
maracutaia foi descoberta, ele praticou crimes de corrupção passiva e organização
criminosa.
São todos crimes comuns, passíveis de denúncia pela Procuradoria-Geral
da República ao Supremo Tribunal Federal. Independentemente
de Bolsonaro ser ou não culpado, o simples fato de ter se colocado
na posição de suspeição em que ora se encontra configura crime de
responsabilidade, passível de impeachment pelo Congresso. Fosse o
Brasil um país civilizado, o afastamento do chefe do Executivo seria
inexorável. Como nosso país não passa de uma republiqueta de bananas, a queda
do capitão, tantas vezes considerada como certa, ainda não aconteceu. Resta saber
o que acontecerá se ele continuar desafiando a lei da gravidade.
Não bastasse a indiana Covaxin, surge agora a
negociação suspeita para a aquisição do imunizante chinês do laboratório CanSino.
Bolsonaro, naturalmente, não tinha como saber. Como tampouco consegue explicar
os depósitos do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da
primeira-dama. No comando de uma organização familiar com fins lucrativos, o morubixaba
da aldeia convive com filhos encrencados, afaga suspeitos do porte de Ricardo
Salles, acomoda prontuários nas lideranças do governo no Senado e na Câmara,
e assim por diante.
Bolsonaro não tem discurso para se contrapor à avalanche de
denúncias de corrupção descortinadas pelo G7 do Senado, a despeito do
jus sperniandi de dois ou três senadores governistas. Ficam cada vez mais
evidentes as semelhanças entre a CPI do Genocídio e a dos Correios,
que puxou os fios do Mensalão nos anos 2000 e mudou a percepção dos
governos petistas. Agora, no entanto, a infâmia é ainda maior.
Além de obstar a adoção de medidas para salvar vidas, Bolsonaro
transformou as verbas emergenciais em balcão de negócios para quadrilhas. Na
última terça-feira, ele postou um vídeo enaltecendo a “honestidade” de seu
ministério. Nessa penúltima impostura, deixou de citar Ricardo Salles,
Pazuello e demais crias do bolsonarismo que agora lutam para
escapar da cadeia. Ações patéticas com essa e tantas outras são reações de
desespero vindas de um governo que se decompõe a olhos vistos à luz da pororoca
de denúncias, evidências, provas, e
testemunhos que alcançam diretamente o Palácio do Planalto.
Na última terça-feira, o semideus togado e “dono” informal
do STF asseverou que o país “naturalizou” o impeachment, e que é preciso “zelar
para que o remédio não mate o doente”. Prefiro não comentar. Mas não
custa relembrar que o
governo FHC deixou duas heranças malditas para a posteridade, uma das
quais foi a famigerada PEC da reeleição. A outra tem nome, CPF e assento
na mais alta corte de justiça desta banânia.
Com Josias de Souza e Ricardo Rangel