quinta-feira, 1 de julho de 2021

O QUE SERÁ O AMANHÃ, RESPONDA QUEM SOUBER


Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, foi exonerado do cargo na madrugada de ontem. Por que diabo uma pasta que passou dez meses sob o comando de um general-interventor e autodeclarado gênio da logística precisaria de um diretor de logística? Responda quem souber. Talvez Carlos Wizard saiba. Só que não diz. Não à CPI do Genocídio, como se viu na sessão de ontem. Gente ligada ao atual governo é assim: quando não mente, omite. Em alguns casos, talvez seja melhor. Já tivemos no Planalto um exterminador do plural, uma criatura bizarra que tartamudeava coisas ininteligíveis num idioma igualmente bizarro (ainda que com um quê da língua de Camões) e agora um que, calado, é um poeta, taokey? 

Voltando à sessão de ontem, tudo se resumiu a um solilóquio de alguns senadores, já que do depoente não se extraiu nada além de:“Afirmo aos senhores, com toda a veemência, que jamais tomei conhecimento de qualquer governo paralelo. Se, porventura esse suposto governo paralelo existiu – ou melhor, gabinete paralelo – eu jamais tomei conhecimento ou tenho qualquer informação a esse respeito”. Depois desse discurso de abertura, Pinóquio, digo, Wizard, acionou o modo "disco de vinil riscado" e se limitou a repetir ad nauseam: Me reservo ao direito de permanecer em silêncio”. Como a palavra de ordem é economizar energia, desliguei a TV e escrevi o seguinte:

A hipocrisia é apenas um outro nome para a virtude. Quando achincalhava Lula por dizer que não sabia das malfeitorias que proliferavam ao seu redor, Bolsonaro jamais imaginou que reagiria a um escândalo em seu governo — o Caso Covaxin — afirmando que “não tem como saber o que acontece nos ministérios”. Expressões como “eu não sabia” e a congênere “eu não tenho como saber” vão passando à história como lemas do Brasil dos escândalos. Serão lembradas quando, no futuro, quiserem recordar a época em que o país era comandado pelo cinismo.

Lula usou o “eu não sabia” nos escândalos do Mensalão e do Petrolão. Citando-o, o tucano Eduardo Azeredo repetiu o bordão antes de ser condenado e preso no processo do Mensalão do PSDB mineiro. Dilma reincidiu na citação quando alegou que não tinha ideia de que os aliados plantavam bananeira dentro dos cofres da Petrobras. Repetido agora no escândalo da vacina, o “não tenho como saber” consolida-se como uma espécie de código. Quando ele aparece, a plateia já sabe que está diante de mais um desses episódios em que políticos capazes de tudo pedirão ao país que passe a enxergá-los como seres incapazes de todo.

De acordo com o que contou o bolsonarista Luis Miranda à CPI do Genocídio, o nome de Ricardo Barros escorreu dos lábios do presidente quando este ouviu o relato sobre as maracutaias da Covaxin. Portanto, Bolsonaro sabia. E mesmo que não soubesse, desqualificou-se pelo que deixou de fazer depois que soube, sinalizando que seu compromisso com a ética cabe embaixo do tapete.

Primeiro, Bolsonaro mandou o secretário-geral da Presidência ameaçar as testemunhas e tentou transformar a PF e a CGU em órgãos de intimidação aos irmãos Miranda. Depois, mudou a ladainha do “até hoje não houve nenhuma denúncia de corrupção nesse governo” para “não é possível controlar o que acontece em todos os ministérios”. Sua confissão ao deputado Luis Miranda mostra que ele conhece perfeitamente as tramoias que estão em curso. Não se trata apenas da rachadinha do primogênito, que o capitão quer abafar, mas de negociatas operadas pelo Centrão, que foi comprado a peso de ouro (com dinheiro do contribuinte) para apoiá-lo e evitar seu impeachment.

Com seu telefonema ao premier da Índia, Bolsonaro deixou claro que estava envolvido pessoalmente em dar celeridade no processo de aprovação da vacina Covaxin. Se, como tudo indica, a compra não era de interesse público, mas de terceiros, houve crime de advocacia administrativa, mais conhecido por tráfico de influência. Se, também como tudo indica, havia grave suspeita de ilegalidade na compra da vacina, Bolsonaro descumpriu sua obrigação de tomar uma providência, o que configura crime de prevaricação. Se, ainda como tudo indica, em vez de comunicar à PF, ele comunicou a terceiros, o crime é de vazamento de informação sigilosa — havendo mesmo indícios de organização criminosa.  Ao ameaçar testemunhas, Onyx Lorenzoni cometeu crime de intimidação e obstrução de justiça. Ao fazê-lo em nome do presidente, o fato de não ter sido denunciado nem demitido faz de Bolsonaro cúmplice do ato delituoso. E se o capitão recebeu (ou receberia) qualquer tipo de compensação pela compra da vacina, ou por avisar à quadrilha de que a maracutaia foi descoberta, ele praticou crimes de corrupção passiva e organização criminosa.

São todos crimes comuns, passíveis de denúncia pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal. Independentemente de Bolsonaro ser ou não culpado, o simples fato de ter se colocado na posição de suspeição em que ora se encontra configura crime de responsabilidade, passível de impeachment pelo Congresso. Fosse o Brasil um país civilizado, o afastamento do chefe do Executivo seria inexorável. Como nosso país não passa de uma republiqueta de bananas, a queda do capitão, tantas vezes considerada como certa, ainda não aconteceu. Resta saber o que acontecerá se ele continuar desafiando a lei da gravidade.

Não bastasse a indiana Covaxin, surge agora a negociação suspeita para a aquisição do imunizante chinês do laboratório CanSino. Bolsonaro, naturalmente, não tinha como saber. Como tampouco consegue explicar os depósitos do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama. No comando de uma organização familiar com fins lucrativos, o morubixaba da aldeia convive com filhos encrencados, afaga suspeitos do porte de Ricardo Salles, acomoda prontuários nas lideranças do governo no Senado e na Câmara, e assim por diante.

Bolsonaro não tem discurso para se contrapor à avalanche de denúncias de corrupção descortinadas pelo G7 do Senado, a despeito do jus sperniandi de dois ou três senadores governistas. Ficam cada vez mais evidentes as semelhanças entre a CPI do Genocídio e a dos Correios, que puxou os fios do Mensalão nos anos 2000 e mudou a percepção dos governos petistas. Agora, no entanto, a infâmia é ainda maior.

Além de obstar a adoção de medidas para salvar vidas, Bolsonaro transformou as verbas emergenciais em balcão de negócios para quadrilhas. Na última terça-feira, ele postou um vídeo enaltecendo a “honestidade” de seu ministério. Nessa penúltima impostura, deixou de citar Ricardo Salles, Pazuello e demais crias do bolsonarismo que agora lutam para escapar da cadeia. Ações patéticas com essa e tantas outras são reações de desespero vindas de um governo que se decompõe a olhos vistos à luz da pororoca de denúncias, evidências, provas, e  testemunhos que alcançam diretamente o Palácio do Planalto.

Na última terça-feira, o semideus togado e “dono” informal do STF asseverou que o país “naturalizou” o impeachment, e que é preciso “zelar para que o remédio não mate o doente”. Prefiro não comentar. Mas não custa relembrar que o governo FHC deixou duas heranças malditas para a posteridade, uma das quais foi a famigerada PEC da reeleição. A outra tem nome, CPF e assento na mais alta corte de justiça desta banânia.

Com Josias de Souza e Ricardo Rangel