Segundo os ensinamentos da Igreja, anjos são entidades espirituais que “fazem o meio-de-campo” entre os mortais e o Criador. Eles não nascem, não morrem nem se reproduzem. Até porque são seres assexuados — daí usarmos a expressão “discutir o sexo dos anjos” quando aludimos a questões eminentemente acadêmicas (cujo debate não produz resultados práticos).
A quem interessar possa, a divisão dos anjos em nove coros foi citada pela Bíblia, mas quem colocou ordem no mundo angelical foi São Tomás de Aquino, que o classificou em três esferas e determinou as características e funções de cada um dos coros (no livro Suma Teológica, escrito entre 1265 e 1273).
Podemos dizer que a CPI do Genocídio discute o sexo dos
anjos quando ela se debruça sobre o uso de Cloroquina, Hidroxicloroquina
e assemelhados no tratamento da Covid. Até porque isso é matéria vencida; a ineficácia
chapada desses fármacos já foi decretada pela ciência. O que precisa ser
focado, salvo melhor juízo, são as ações e omissões do governo federal no
enfrentamento da pandemia e, paralelamente, a malversação do dinheiro público pelo
Ministério da Saúde e pelos gestores estaduais e municipais. Ou eram. Na noite de ontem, ao final da sessão, o foco da Comissão tornou-outro. Mas vamos por partes.
Na última quinta-feira, o epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador da Universidade Federal de
Pelotas (RS), e a médica Jurema Werneck, representante do Movimento Alerta, forneceram
evidências de que o número de vítimas do vírus maldito poderia ter sido bem
menor se o Executivo e outras autoridades públicas tivessem seguido a ciência. Não
foi exatamente uma revelação, visto que os fatos falam por si. Bastaria analisá-los
desapaixonadamente — isto é, sem se deixar influenciar por questões político-ideológicas
— para chegar à mesma conclusão dos eminentes pesquisares, e atribuir as
responsabilidades pelo “genocídio” a quem de direito.
Em sua coluna
no jornal O Globo, Merval Pereira faz especulações interessantes
sobre o fato de a demissão
de Ricardo Salles ter ocorrido no mesmo dia em que a compra “nebulosa”
da vacina indiana colocaram o governo numa sinuca de bico (quando a bola
com que se joga fica encostada à caçapa, sem ângulo para bater nas outras bolas,
donde o uso metafórico dessa expressão para definir uma situação sem saída).
Empenhado em defender Bolsonaro, o ministro Onyx Lorenzoni “atirou no mensageiro” ao imputar ao deputado federal Luis Miranda o crime de denunciação
caluniosa, e ao servidor do Ministério da Saúde e irmão do deputado, Luis
Ricardo Miranda, o crime de prevaricação. Rompido com o governo e ameaçado
de processo, Luiz Miranda, que até então jogava no time do Planalto, ora
se junta a ala de desafetos, como antes dele Gustavo Bebianno,
Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Santos Cruz e tantos
outros.
Aos membros da CPI interessa desvendar o suposto esquema de corrupção que está por trás da dos detalhes, digamos, pouco ortodoxos da compra da vacina indiana — mais um imbróglio desmente a narrativa de que “não existe corrupção neste governo”.
Suspeitas de rachadinha no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro não faltam. Na presidência, o capitão se tornou alvo de um inquérito por “suposta” interferência na Polícia Federal (que caminha a passo de lesma desde a aposentadoria do decano Celso de Mello). De seus cinco filhos, só a caçula — Laura, de11 anos — não é alvo de investigações.
Afora o célebre caso de Zero Um/Queiroz, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro (que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações em prol do fechamento do Congresso e do Supremo).
Bolsonaro sempre disse ser um “defensor da família”, mas acabou demonstrando que falava de sua própria família. Não vou esperar foderem a minha família ou amigo para trocar “alguém da segurança”, disse o presidente na fatídica reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, referindo-se ao comandante da PF e ao MP do Rio de Janeiro, que já estava nos calcanhares dos filhos Flávio e Carlos.
O ora ex-ministro Ricardo Salles responde a denúncias de conluio com madeireiros para exportação de madeira
extraída ilegalmente na Amazônia. Dois delegados da PF que investigaram
a ilegalidade do carregamento de madeira foram removidos de suas funções, mas
as investigações continuam (o inquérito será remetido para a primeira
instância, já que Salles perdeu a prerrogativa do foro privilegiado ao ser exonerado).
Um dia antes de se livrar de Salles (para afastar do
Planalto mais um denunciado por corrupção), Bolsonaro fez um elogio público
ao boiadeiro — a exemplo de como procedeu em relação a Pazuello,
o inimputável. A troca de seis por meia dúzia ficou ainda mais evidente no Meio
Ambiente, pois Joaquim Álvaro Pereira Leite, sucessor do passador de boiadas,
deve dar sequência à política mais voltada à produção que à proteção ambiental
(até porque quem apita é Bolsonaro; seus ministros só continuam
ministros se fazem o que ele manda).
Salles foi escanteado porque o Planalto não tem como de lidar com tantas denúncias de corrupção ao mesmo tempo. E o caso da Covaxin é chumbo grosso. Tanto que o presidente da CPI, senador Omar Aziz, disse que o depoimento dos irmãos Miranda “tem potencial para derrubar a República”.
Luis Ricardo, chefe de importação do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, relatou ao MPF e à imprensa ter sido pressionado para acelerar o processo de compra da Covaxin. A negociação está sob suspeita em razão do valor unitário das vacinas — US$ 15 cada —, e da participação de uma empresa intermediária.
Já o deputado Luis Miranda afirmou ter alertado
diretamente o presidente sobre as suspeitas. De acordo com
informações do jornal O Estado de São Paulo, Bolsonaro determinou à PF a
instauração de nenhum inquérito para apurar a compra da Covaxin.
Minutos após abrir a sessão de ontem, Aziz se reuniu
com Luis Miranda, a pedido do deputado, que chegou ao Senado vestindo um
colete à prova de balas. Pouco antes da abertura da sessão, o presidente da
comissão disse que o ministro Queiroga estava tentando atrapalhar as
investigações e pediu ao senador Renan Calheiros que incluísse as
obstruções no relatório da Comissão.
“Nós recebermos informações sobre 81 e-mails da
Pfizer. Soubemos pela imprensa que tiveram outros 20 e-mails que não chegaram à
essa CPI. Nós requisitamos informações vastas, diversas, sobre a atuação de
diversos personagens que estão sendo inquiridos e investigados no âmbito de
Comissão Parlamentar de Inquérito. As informações não chegam. Isso é
concretamente uma forma de obstrução aos trabalhos desta comissão”,
afirmou o vice-presidente da Comissão, senador Randolfe Rodrigues.
Paralelamente, o irmão do depoente, deputado Luis Miranda, reafirmou que teria pedido o encontro com Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no dia 20 de março, em que as suspeitas foram relatadas. O presidente teria citado o nome de um parlamentar, mas ele (o depoente) não se lembrava quem era o dito-cujo (ao final, a senadora Simone Tebet conseguiu extrair o nome do deputado: Ricardo Barros).
Luis Miranda disse ainda ter avisado Eduardo Pazuello sobre os indícios de irregularidades e ouvido do então ministro da Saúde que sabia que seria exonerado após não ceder à pressão de parlamentares para liberar “pixulé” para um grupo de deputados. Em sua despedida do ministério, Pazuello afirmou a integrantes da pasta que pressões políticas pesaram para sua saída — vídeos do discurso foram gravados e, posteriormente, revelados. Na ocasião, Pazuello chegou a citar que “todos quererem um pixulé no fim do ano”, sem explicar a quem se referia.
Resumo da ópera: documentos apontam que, em 16 dias, o Ministério da Saúde mudou de posição e deixou de exigir que a Covaxin estivesse na fase 3 de testes na Anvisa para iniciar o processo de compra da vacina. (Veja a cronologia.) Um dos pontos considerados suspeitos por Luis Ricardo foi o envolvimento da Madison Biotech, autora da “invoice”. No endereço informado pela empresa, em Cingapura, funciona em um escritório de contabilidade, o Sashi Kala Devi Associates. A Madison foi criada em 14 de fevereiro de 2020.
Pela manhã, antes da sessão, Bolsonaro disse que tinha “zero preocupação” com o depoimento dos irmãos Miranda. À tarde, porém, ao ser questionado sobre as negociações da vacina, o presidente se exaltou e voltou atacar a imprensa . Ele insultou a jornalista Victória Abel, da CBN, dizendo que ela deveria voltar para a faculdade e até “nascer de novo”. A CBN repudiou o tratamento agressivo do presidente à repórter.