A sessão de ontem da CPI do Genocídio contou com a presença do epidemiologista Pedro
Hallal, pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (RS), e da médica Jurema
Werneck, representante do Movimento Alerta. Eles participam de diferentes
estudos segundo os quais mortes causadas pela doença poderiam ter sido evitadas se o Executivo e outras autoridades públicas tivessem seguido a ciência e incentivado o uso de máscaras e a adoção de medidas de
distanciamento social.
A audiência ocorreu em meio a revelações sobre possíveis irregularidades no caso Covaxin, que se tornaram alvo da CPI e do Ministério Público. De acordo com dados do TCU, o fármaco indiano foi o imunizante mais caro negociado pelo governo federal: R$ 80,70 a unidade, valor quatro vezes maior que o da vacina da Fiocruz, a AstraZeneca.
No início de junho, a Anvisa aprovou, com restrições, a importação excepcional de 4 milhões de doses da Covaxin para utilização sob condições específicas determinadas pela agência. O contrato foi firmado entre o Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos, que é a única intermediária que não possui vínculo com a indústria de vacinas. Um levantamento feito pelo TCU mostra que o contrato da Covaxin foi o que teve um desfecho mais rápido. Ao todo, o Ministério da Saúde levou 97 dias para fechar o acordo, enquanto o contrato com a Pfizer, por exemplo, levou 330 dias.
Os senadores querem entender por que o governo federal priorizou a compra desse imunizante, que contou com a atuação direta do presidente Bolsonaro. De acordo com o blog de Gerson Camarotti, integrantes da cúpula da CPI receberam a informação que Bolsonaro foi alertado pessoalmente sobre irregularidades na compra da vacina. No último domingo, em entrevista à GloboNews, o relator da Comissão, Renan Calheiros, afirmou que são muitos os fatos atípicos que precisam ser investigados.
“Foi a única aquisição que teve um telefonema do presidente da República para o primeiro-ministro indiano, indicando a preferência do Brasil pela aquisição da Covaxin com todos esses problemas. Além do mais, foram colocados na Câmara dos Deputados, naquele projeto de lei que autorizou aquisição de vacinas pela iniciativa privada, por empresários, a possibilidade de compra da Covaxin”, destacou o senador.
Em depoimento ao MPF, o servidor Luis Ricardo Fernandes Miranda, irmão do deputado Luiz Miranda, disse que recebeu
“pressão atípica” para a compra da Covaxin por parte de superiores de dentro da
Saúde. Em
entrevista ao
O servidor afirmou também que era pressionado constantemente por Alex Marinho, coordenador da área, que apresentou a Bolsonaro suas suspeitas sobre o contrato e que mostrou ao presidente um material que comprovaria pedido de “pagamento por fora” para importação de três lotes com doses perto da data de vencimento. O mandatário teria se comprometido a acionar a Polícia Federal, mas tudo indica que ele nada fez.
A procuradora da República no Distrito Federal, Luciana Loureiro, responsável pelas investigações, apontou há indícios de crime e enviou a investigação para a área de combate ao crime e à improbidade administrativa. O Ministério da Saúde declarou que ainda não fez nenhum pagamento e que a consultoria jurídica da pasta está analisando o caso. Todos os prazos fixados para a chegada da vacina se esgotaram sem que nenhuma dose tenha sido entregue. Para um presidente da República que se gaba de não ser alvo de acusações de corrupção, há muito a explicar.
O sócio da Precisa Medicamentos, Francisco Emerson Maximiano, tinha depoimento marcado para quarta-feira (23), mas sua oitiva foi reagendada para a próxima semana depois que ele alegou estar cumprindo quarentena.
Maximiano é sócio de uma outra empresa, a Global, que,
segundo o MPF, “há pouco mais de três anos entabulou contrato para
venda de medicamentos ao Ministério da Saúde, mas não os entregou, causando
prejuízos a centenas de pacientes dependentes de medicamentos de alto custo e
prejuízo de mais de R$ 20 milhões ao erário”.
Também na quarta-feira a CPI aprovou a convocação e quebra do sigilo telefônico, telemático fiscal e bancário do tenente-coronel Alex Marinho. No início da noite, em um pronunciamento no Palácio do Planalto, o ministro Onyx Lorenzoni negou as suspeitas de irregularidades, acusou os irmãos Miranda de calúnia e má-fé e disse que Bolsonaro determinou à Polícia Federal que investigue as atividades dos dois, e não as irregularidades do contrato, além de pedir à PGR a abertura de uma investigação contra eles, por denunciação caluniosa e fraude processual. Os jornalistas que acompanharam a fala não puderam fazer perguntas. Diante da troca de acusações, cabe agora ao servidor e ao deputado provarem as denúncias feitas ao Ministério Público e ao jornal O Globo. E ao governo provar que as informações e documentos apresentados por eles são falsos.
A cúpula da CPI reagiu fortemente às ameaças do governo e disse que é uma clara tentativa de interferência e coação. Em entrevista à GloboNews, o senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da Comissão, afirmou que o governo tenta criar uma cortina de fumaça para desviar o foco da investigação e criticou a atitude: “A resposta do governo é investigar quem denunciou.”
Também à GloboNews, o relator da comissão, Renan Calheiros, acusou Onyx de tentar intimidar testemunhas e interferir em investigação de outro poder. Disse que a CPI vai convocar o ministro a depor: “Nós temos que levar isso adiante, sem aceitar de forma nenhuma qualquer tipo de coação, de intimidação. Isso verdadeiramente não pode acontecer, de modo que mais uma vez eu queria deixar claro para o Brasil e para a comissão parlamentar de inquérito também que nós não aceitamos a coação do secretário-geral da Presidência da República. Vamos convocá-lo imediatamente e desde logo adiantamos que se continuarem as ameaças, as intimidações, a coação à testemunha, a tentativa de interferir na investigação, nós vamos requisitar a prisão do secretário-geral da Presidência da República, para preservar a necessidade e levarmos adiante a investigação e, com isso, darmos as respostas que o povo brasileiro cobra de todos nós.”
A julgar pelo que se sabe até agora, é impossível não estabelecer alguma semelhança com o caso que levou ao escândalo do mensalão. Lá como cá, a acusação inicial partiu de um aliado do governo que afirmou ter alertado o presidente da República sobre a ocorrência de irregularidades. No governo lulista, a denúncia do então deputado Roberto Jefferson dava conta do pagamento de “mesadas” a partidos e parlamentares para garantir apoio ao governo Lula. Na ocasião, o petebista alegou ter alertado o presidente sobre o que ocorria. Agora, a denúncia parte do deputado Luís Miranda, da base de apoio do governo, e de seu irmão, funcionário do Ministério da Saúde, que vinha sendo pressionado por seus superiores para apressar os trâmites do contrato.
Lula foi avisado do que estava acontecendo e não
tomou nenhuma providência, como Bolsonaro faz agora. A diferença é
que, no caso do petista, não havia indicação de que ele tivesse interferido
pessoalmente (aliás, o ex-presidente ex-condenado e agora “ex-corrupto” sempre
foi mestre em “tirar
a castanha com a mão do gato”). Já Bolsonaro interferiu
diretamente na trama, usou seu cargo para acelerar um processo eivado de
irregularidades e um órgão federal para liberar a vacina — tudo gira em torno
dele.
A Covaxin pode se tornar para o capitão o que o Fiat Elba foi para Collor em 1992. Tudo depende do que os irmãos Miranda revelarão à CPI. O detalhe — e o diabo mora nos detalhes — é que não se trata de ilações, de meros eventos a partir dos quais pode-se inferir que o presidente estivesse na ponta. Trata-se de documentos que comprovam que ele participou pessoalmente da negociação.
De duas, uma: ou o Palácio do Planalto tem uma história muito bem contada e comprovada para desmontar a denúncia, ou Bolsonaro estará no centro de um escândalo de corrupção capaz de abalar as estruturas do governo.