O depoente de ontem na CPI do Genocídio foi o coronel reformado Élcio Franco, imediato de Pazuello entre junho de 2020 e março passado, enquanto o general-vassalo servia de preposto ao capitão-suserano no ministério da Saúde. Para evitar polêmicas, ele trocou broche com a imagem de uma caveira atravessada por uma faca por outro com apenas um punhal.
Em sua fala inicial, Franco, que atualmente é assessor especial da Casa Civil da Presidência, prestou solidariedade às famílias das mais de 570 vítimas fatais da Covid e defendeu que tese divulgada em várias oportunidades pelo presidente Jair Bolsonaro de que a atuação do Ministério da Saúde durante a pandemia foi limitada em razão da decisão do STF. “Coube ao Ministério da Saúde apoiar os entes federados em medidas e ações planejadas, como a elaboração de ferramentas de gestão; à união, disponibilizar recursos às secretarias de saúde estaduais e municipais; aos estados e municípios, executar ações de atenção à saúde”, disse o depoente.
Observação: Vale lembrar que essa tese já foi refutada pelo STF, que não proibiu o Executivo federal de agir para conter a disseminação do vírus.
Franco afirmou que a cloroquina adquirida pelo
Ministério da Saúde em 2020 foi para o “programa antimalária” e não para
ser usada no tratamento contra o coronavírus. “Durante a nossa gestão,
não ocorreu aquisição de cloroquina para o ano de 2020 para o combate à Covid”,
disse o ex-secretário. “Porém, identificamos que, para atender ao
programa antimalária do primeiro semestre, em 30 de abril de 2020 foi assinado
um termo aditivo ao TED com a Fiocruz no valor de 50 mil reais, visando a
aquisição desse fármaco para entrega posterior. Enfatizo que é para o programa
antimalária.”
Questionado sobre a demora na compra da CoronaVac,
concretizada apenas em janeiro, ele repetiu o discurso de Pazuello,
de que as declarações de Bolsonaro — que chegou a afirmar que a “vachina
do Doria” não seria comprada — não impactaram as tratativas e que as
conversas não foram interrompidas. A versão é contrária à apresentada pelo
diretor do Butantan, que afirmou à CPI que as negociações
“pararam” depois da fala do presidente. Confrontado, disse que Dimas Covas
teve “uma percepção diferente” da dele.
Franco negou que houvesse uma orientação oficial do
Ministério da Saúde para que a população fosse tratada precocemente contra
a Covid, mas defendeu que o diagnóstico precoce de qualquer
doença é a melhor medida preventiva. Questionado sobre o caso específico do
coronavírus, disse ser favorável, desde que em comum acordo entre médico e
paciente, e que a Medida Provisória 1.565 editada pelo governo tratava
de questões não farmacológicas de prevenção, como “uso de máscaras, etiqueta
respiratória, higienização das mãos com álcool e sabão, higienização de
superfícies, optar por ambientes ventilados e manter distância de segurança
entre as pessoas”. Mas negou que o chamado “gabinete paralelo” de
orientações sobre o combate à pandemia teve qualquer influência sobre a
pasta. Também negou conhecer Luciano Dias, Paolo Zanotto e Carlos
Bolsonaro (quanto ao filho do presidente, ele reconheceu que conhece de
nome, mas afirmou que jamais teve contato ou ciência do comparecimento dele em
reunião com a Pfizer).
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues, ponderou que as investigações mostraram que 53 emails da companhia ficaram sem resposta. Franco respondeu que a empresa mandava um ofício e reiterava três ou quatro vezes no mesmo dia, que um vírus que invadiu o sistema do Ministério atrapalhou na resposta de apenas uma proposta, entre os dias 5 e 12 de novembro, já que a caixa de entrada dele ficou inoperante, que houve um atraso nos estudos de fase 3 da vacina, e que eles garantiam que teriam aprovação do FDA em outubro, mas isso só aconteceu em dezembro. “Tudo isso levou a atrasos”, declarou. Perguntado sobre qual foi a orientação do ex-ministro da Saúde e do presidente sobre a aquisição de vacinas, Franco disse que a ordem era “comprar o maior número de doses possível”. Então tá.
Para saber mais sobre o depoimento, confira a checagem do site Fato ou Fake.
Dito isso, passo ao assunto do dia.
Ao pedir o arquivamento
do inquérito que trata atos antidemocráticos patrocinados por apoiadores de
Jair Bolsonaro, o procurador-geral, Augusto Aras, procurou
emparedar o Supremo e acabou sendo posto contra a parede pelo ministro Alexandre
de Moraes, relator da ação. Aras apostou na jurisprudência segundo a
qual o STF acata aquele tipo de pedido, mas a contraofensiva de Moraes,
ao determinar a quebra de sigilo das investigações e pedir explicações que
fundamentem a solicitação, expôs a PGR a um constrangimento.
Ao dar acesso público ao conteúdo do que foi até agora
apurado, o ministro torna mais difícil à procuradoria justificar a motivação
para o arquivamento. Ainda mais diante da posição da Polícia Federal em
favor da continuidade das investigações. O lance de Alexandre de Moraes
dá margem a tomadas de um de duas atitudes: simplesmente não atender ao que
pede a procuradoria ou decidir pela abertura de outro inquérito também sobre os
atos antidemocráticos.
Augusto Aras procurou se preservar ao não assinar a
solicitação, deixando a tarefa para o vice procurador Humberto Jacques de
Medeiros, mas não conseguiu mascarar o que hoje é a missão à qual se dedica
em tempo integral: agradar ao presidente da República de modo a assegurar
sua recondução ao cargo a partir de setembro próximo. Vale lembrar que
a função do Ministério Público é defender a sociedade, cuja situação é a
de vítima quando em jogo está o respeito aos ditames constitucionais da
democracia.
Conforme eu adiantei na postagem anterior, o segundo
depoimento de Marcelo Queiroga à CPI do Genocídio mostrou que no
ministério da Saúde ainda vigora o lema de Eduardo Pazuello: um
manda, outro obedece. A diferença entre ele e o antecessor é o verniz
científico que na atual conjuntura interessa ao presidente. Daí a “liberdade”
de que o ministro Queiroga dispõe para defender
o uso de máscaras, afirmar a ineficácia da cloroquina no combate ao vírus e
advogar com veemência a vacinação como a hoje única forma eficaz de
enfrentar a pandemia.
Tudo isso compõe a “persona jurídica” que Bolsonaro
encarna em seus pronunciamentos oficiais e viagens de Estado, cujo
comportamento contrasta com a conduta do candidato à reeleição que ele acredita
o autorizar a agir como pessoa física dedicada a estimular seu eleitorado.
No que concerne à atuação de um ministro da Saúde em
situação de crise sanitária, Queiroga mostrou que o preço da
permanência no cargo é a eterna obediência. Deixou isso muito claro quando desmentiu
a si mesmo dizendo que foi dele a decisão de desistir da nomeação da médica
Luana Araújo para a secretaria recentemente criada para cuidar da
pandemia.
O ministro também não deixou dúvidas quanto à sua falta de
autonomia quando disse que não retirará a recomendação do uso da cloroquina
do site do ministério da Saúde, além
de confirmar sua submissão aos ditames presidenciais ao reconhecer que
mantém em sua equipe pessoas de cujas diretrizes profissionais discorda, mas
que seguem a filosofia de Bolsonaro.
Por fim, quem resumiu o estado de coisas foi o presidente da
CPI, senador Omar Aziz, ao dizer que se
o ministro não consegue nem convencer o presidente a não aglomerar, a usar
máscara e a se vacinar, não conseguirá convencer a população a adotar
as medidas corretas que defende em tese, mas na prática não consegue executar
onde seria essencial: no principal gabinete do Palácio do Planalto.
Mudando de um ponto a outro, o
auditor Alexandre Figueiredo Costa e Silva Marques inseriu no sistema do TCU um
estudo falso apontando que 50% das mortes atribuídas à Covid não
teriam sido provocadas pelo coronavírus às 18h30 do último domingo. Às 8h30 do
dia seguinte, Bolsonaro
já estava no chiqueirinho defronte ao Alvorada “denunciando” a existência do
dito relatório a seus apoiadores de todos os dias. Coincidências até
existem, mas nesse caso o que se evidencia é uma armação, uma encomenda senão
feita, mas compartilhada pelo presidente. Uma fraude cometida nas dependências
de um organismo do Estado (o TCU é estrutura ligada ao Congresso
Nacional) com a cumplicidade do chefe da nação.
Desmentido
pelo tribunal, Bolsonaro reconheceu o erro de tomar as
informações como se fossem oficiais, mas manteve no ar a desconfiança de que
haveria manipulação nas notificações de morte por parte de prefeitos e
governadores como forma de garantir maiores repasses de verbas federais a
estados e municípios. O TCU afastou
o funcionário, prometeu averiguar o ocorrido e, se for o caso, punir o
autor da fraude. Ficou faltando uma referência ao mandante — ou mandantes — do
crime, uma vez que Alexandre Marques é ligado aos filhos do presidente.
Resta saber se o auditor contará com proteção do Palácio do
Planalto semelhante à que foi dada ao general Eduardo Pazuello para
evitar punição no Exército.