Bolsonaro repudia o voto eletrônico desde o tempo das cavernas. A despeito de ter sido eleito todas as vezes que disputou cargos públicos — as primeiras três (1988, 1990 e 1994) com voto impresso e as demais (1998, 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018) com urnas eletrônicas —, reclama sistematicamente de supostas fraudes. Em seus delírios, afirma que Aécio venceu Dilma em 2014 e que ele próprio derrotou Haddad no primeiro turno, em 2018.
No interminável discurso de abertura, Bolsonaro defendeu (mais uma vez) o uso de fármacos e tratamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid, criticou governadores e prefeitos, atacou o atual presidente do TSE e fez apologia à recriação do que chama de voto “auditável e democrático".
Das tais provas que corroborariam as alegadas fraudes, nem sombra. Foram exibidos apenas vídeos antigos pinçados da Web e teorias conspiratórias há muito desmentidas. A certa altura, num incomum arroubo de sinceridade (a hora do sim e um descuido do não), o "mito" reconheceu que não tinha provas, apenas indícios, mas complementou: "As provas você consegue com a somatória de indícios. Apresentamos um montão de indícios aqui".
Quem exibiu os "indícios" foi um "perito em segurança" identificado inicialmente como Eduardo. Ao final da live, soube-se tratar-se de Eduardo Gomes, que é coronel da reserva e assessor da Casa Civil. Segundo Bolsonaro, o verdadeiro "especialista" ficou com medo de se expor e passou as informações ao militar em questão.
Em meio à live, o TSE desmentiu pelo menos 18 acusações, valendo-se de textos — publicados no portal do próprio tribunal ao longo dos últimos anos — que comprovam serem falsos vídeos e boatos que circularam nas redes sociais questionando a segurança das urnas eletrônicas.
Ao fim e ao cabo, o patético
espetáculo confirmou as suspeitas de que as constantes acusações feitas
pelo chefe do Executivo e sua obsessão o pelo voto impresso não passam de uma
estratégia para
gerar desconfiança e servir de "plano B" em caso de
derrota em 2022.
Não houve fraude na eleição de 2014, como reconheceram tanto
o
candidato derrotado quanto o
próprio PSDB. Vergonhosa foi a absolvição da chapa Dilma/Temer em
2017— essa, sim, por
"excesso de provas" —, conquanto tenha servido para expor o
caráter que alguns membros da cúpula do Judiciário escondem sob as togas. E no
que diz respeito à alegada vitória de Bolsonaro sobre Haddad, é
fato que o capitão foi o candidato mais votado no primeiro turno, mas precisaria ter obtido 50% + 1 dos votos válidos para liquidar à vista, e ele só conseguiu 46.03%.
Causa estranheza que o Brasil continue sendo
"governado" por um clone mal ajambrado de do ex-presidente
norte-americano Donald Trump. A exemplo do psicopata de lá, o de cá
repete ad nauseam pequenas e grandes mentiras, jogando para um nicho
radicalizado de apoiadores que, a exemplo dos camarões, têm os intestinos na cabeça. O problema de lá foi resolvido — ainda que a
duras penas — com as eleições de novembro passado; quanto ao de cá, já passou da
hora de políticos sérios tomarem uma posição mais incisiva acerca do que ocorre
em Brasília.
Na cúpula do Judiciário, a reação ainda é tímida. O ministro Luiz Fux pretende responder a ameaças golpistas no discurso que fará na semana que vem, na reabertura dos trabalhos do Judiciário, mas a resposta é considerada serôdia por ala do Supremo. O magistrado insiste em pacificar a relação entre os Poderes, o que seria louvável não fosse o fato de Bolsonaro confundir bons modos e diplomacia com fraqueza e covardia. Radiante com seus 15 minutos trumpistas de fama e a repercussão entre seus apoiadores fiéis, sua alteza irreal deve encenar em breve seu próximo show, tudo com recursos públicos e transmissão ao vivo por canais oficiais do governo.
Igor Gielow escreveu na Folha que "o
fato de que ninguém
acredita muito no que o presidente berra não deveria significar
leniência" e que a live "proporcionou ao observador mais
distante uma condensação dos delírios, medos e táticas previsíveis que
Bolsonaro vem cozinhando de cercadinho em cercadinho nos últimos meses — um
roteiro golpista para a
eleição de 2022, contando com a certeza de que o Congresso
vai barrar o dito voto impresso.
Um dia após a live, o presidente da Câmara, Arthur Lira, disse não ver chances de a PEC do voto impresso ser aprovada na comissão especial da Casa. Ao comentar o assunto, Gilmar Mendes — o ora decano e desde sempre "dono" informal do STF — disse considerar que essa discussão sobre o voto impresso "esconde algum tipo de intenção subjacente que não é boa". O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, defendeu em seu perfil no Twitter, que "já passou da hora" de se impor um limite à postura "golpista e conspiratória" de Bolsonaro e cobrou a adoção de medidas por parte do STF, da Câmara e do Senado: "Se não fizeram isso agora, quando decidirem fazer, será tarde demais. Todos que se acham protegidos hoje podem ser as próximas vítimas".
Bolsonaro não aceitará as eleições e reza por uma "insurreição
à la Capitólio" para impor, com
a ajuda presumida por ele das Forças Armadas, algum tipo de ruptura. Falta
combinar com a realidade. Ainda que não seja desprezível o encontro de visões dos militares e do presidente, mesmo os oficiais mais bolsonaristas sabem que, se algo assim
ocorresse, o Brasil seria expelido do sistema internacional, com efeitos
econômicos e sociais devastadores para o país.
O Centrão, a quem o "presidente" entregou
"a alma" do governo, deve ter pensamentos semelhantes, ainda
que pareça crer, como os militares acreditaram antes dele, que poderá controlar
o temperamento irascível do presidente — ao menos o suficiente para se fartar
das benesses orçamentárias de sua posição de força. Essas ponderações podem
afastar o risco de cenários totalmente sombrios, mas é ingenuidade supor que o
tecido institucional passará incólume por tais provações.