domingo, 1 de agosto de 2021

A CANOA FURADA

Tem governo que, para ser ruim, precisa melhorar muito. E pode-se dizer o mesmo de certos governantes. No entanto, políticos não brotam nos gabinetes por geração espontânea. Se estão lá, é porque foram eleitos; se foram eleitos, é porque alguém votou neles. Assim, permito-me parafrasear o general João Batista Figueiredo  que, entre outras idiossincrasias, preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo: "um povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar".

O escritor e poeta José Nêumanne Pinto escreveu em O Globo que "Bolsonaro nunca foi inteligente nem razoável", e que "não era de esperar de quem sequer administrou carrinho de pipoca em porta de cinema a competência de gestão de um Carlos Lacerda". E mais: "Bolsonaro surpreende pela incapacidade de entender que, na gestão pública, deve haver limites para tudo, inclusive para a mais rematada burrice, como a que ele pratica e professa".

Peço vênia ao ilustre jornalista para discordar in partibus de suas ponderações. A meu ver, Bolsonaro pode ser — e é! — tosco, estúpido, ególatra, mitômano e lunático, mas, de burro, não tem nem o apelido: no Exército, de onde foi expelido por tentar explodir bombas em quartéis e academias, o capitão era chamado de "cavalão".

Bolsonaro sempre balizou sua atuação política em assuntos caros aos fardados, tanto como vereador — pelo PDC, de 1989 a 1991 — quanto como deputado federal — de 1991 a 2018. Nesse entretempo, foi filiado a 8 partidos — PDC, PP (duas vezes), PPR, PPB, PTB, PFL, PSC e PSL. Entretanto, a despeito de sua apagada atuação parlamentar, o futuro "mito dos bolsomínions" sonhava com o Palácio do Planalto.

A postura beligerante e a vocação inata para criar e explorar polêmicas garantiram ao inexpressivo deputado do baixo clero um sem-número de admiradores e detratores país afora. Suas falas, postagens e vídeos fidelizaram os desalentados antipetistas, e com o recrudescimento da crise econômica e o avanço da Lava-Jato, seu número de eleitores saltou de 120 mil, em 2010, para 464 mil, em 2014, quando Bolsonaro foi reeleito para o sétimo mandato consecutivo e se tornou o terceiro deputado federal mais votado do país (só para constar: Tiririca teve 1,3 milhão de votos em 2010 e cerca de 1 milhão em 2014). Foi então que ele resolveu pôr em prática seu ambicioso projeto de poder.

Em abril de 2014, o capitão disse ao jornal O GLOBO que pretendia disputar a Presidência e que a página "Jair Bolsonaro Presidente 2014", criada no Facebook por "militantes da direita e apoiadores", já contava com mais de 12 mil seguidores (na época, o perfil oficial do deputado na rede social tinha mais de 340 mil admiradores). 

Bolsonaro começou a aparecer nas pesquisas com 4% das intenções de voto em 2015, subiu para 7% em 2016 e para 15% no ano seguinte, a despeito da pecha de sectário e sua notória falta de conhecimento em relação a temas importantes para alguém que aspirava a comandar o país levou-o a modular o discurso e terceirizar a elaboração de propostas em algumas áreas cruciais. Faltou combinar com Ciro Nogueira — presidente do PP —, que sempre fugia do assunto.

Após a reeleição de Dilma, a inolvidável, Bolsonaro trocou o PP pelo PSC, que também lhe negou legenda para disputar a Presidência. Em 2017, ele finalmente compreendeu que teria mais chances numa sigla menor, e depois de flertar com o nanico PEN, acabou filiando-se ao PSL. E o resto é história recente.

Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletavam do Estado havia décadas foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 

Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média, o adepto das práticas da baixa política e amigo de milicianos foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 

Para obter o apoio das Forças Armadas, o ex-militar agressivo e falastrão, que foi enxotado da corporação por indisciplina e subordinação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.

Uma vez eleito e empossado, Bolsonaro obrigou Moro a reverter uma nomeação, tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um superintendente da PF, esnobou seu projeto contra a corrupção e, vendo que o ex-juiz não cumpriria a missão de blindar sua prole (*), fê-lo engolir dúzias de sapos e beber toda a água da lagoa. O auxiliar fingia que não via, tentava negociar, mas acabou abandonando a canoa para salvar o prestígio que ainda lhe restava.

(*) Em três casamentos, o presidente que acabou com a Lava-Jato porque “não tem mais corrupção no governo teve quatro filhos e uma filha. Desses, somente Laura, que tem 11 anos, não é alvo de investigações. Afora o célebre caso de Zero Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro, que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como o Congresso e o Supremo.

Bolsonaro desautorizou Guedes incontáveis vezes, interferiu em seu ministério, sabotou seus projetos e, com o Centrão, enterrou de vez a agenda econômica. Em vez de aprender com Mandetta, Moro e Teich como sair da canoa antes de ela virar, o superministro de fancaria espelhou-se em Pazuello e virou uma espécie de dublê de bonifrate e zero à esquerda.

Já as Forças Armadas, cujo comportamento irrepreensível ao longo das últimas três décadas desfez a imagem negativa associada aos 21 anos de ditadura, corre o risco de tornar a perder a admiração e o reconhecimento dos brasileiros. Alguns fardados de alta patente parecem ter desaprendido que, num governo civil, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não devem obediência cega ao "comandante-em-chefe" e tampouco é seu papel salvar o presidente de turno. Sua lealdade maior é com o país. É já passou da hora de os militares desembarcarem dessa canoa furada.