Os judeus cobrem os espelhos de casa durante o período de shivah. Bolsonaro,
enlutado por antecipação pela reeleição (que está prestes a cair do telhado), cobriu
os espelhos do Alvorada e do Planalto e vê na imprensa (notadamente na Rede
Globo) a imagem do culpado por suas mazelas. No início do ano passado,
quando o coronavírus ainda engatinhava, o profético jornal americano Washington
Post o “elegeu” pior
líder mundial no enfrentamento à Covid; dias atrás, a ONG Repórteres sem Fronteiras o incluiu na
seleta confraria dos “predadores
da liberdade de imprensa”, na boa companhia do príncipe herdeiro
saudita Mohammed bin Salman, do presidente sírio Bashar Al-Assad,
do líder da revolução iraniana Ali Khamenei e dos presidentes Nicolás
Maduro (Venezuela), Miguel Diaz-Canel (Cuba), Vladimir Putin
(Rússia) e Xi Jinping (China), entre outros sacripantas.
Não fosse o empenho da récua de baba-ovos que apoia o “mito” de fancaria nas redes sociais e os perfis falsos criados pelo “gabinete
do ódio” — antro de geradores de fake news e destruidores de
reputações, mas que o pai do líder dessa caterva qualifica de “nascedouro
da verdade” —, o rugido em defesa do capetão produziria um silêncio
ensurdecedor. O que nos leva de volta à CPI, cujos desdobramentos vêm
corroendo a imagem já carcomida do governo. Governo esse onde, como
leitor deve estar lembrado, não
existe uma única denúncia de corrupção. Tanto é assim que o capetão-negação sepultou a maior operação anticorrupção da história
desta banânia depois de se servir dela se eleger em 2018.
A cada sessão da Comissão surge um novo candidato ao Troféu
Pinóquio de Ouro. Na terça-feira, a servidora Regina Célia Oliveira deu um show de interpretação. Mas faltou-lhe verve na atuação e veracidade nas respostas. Com uma expressão que alternava entre enfado e desconforto, a depoente usou e abusou do depoente “nem sim, nem não, muito pelo contrário”. Isso quando
não era acometida da mesma amnésia seletiva que vitimou seus antecessores. Para
além da informação de que Roberto Ferreira Dias foi
alertado sobre o preço acima do praticado em outros contratos, pouco se
aproveitou das desinformações declinadas pela fiscal do contrato da compra
da Covaxin.
Ontem, voltou à Comissão o também servidor Roberto Dias, que foi
exonerado do cargo de diretor do Departamento de Logística da Saúde depois
de ser acusado pelo policial militar Luiz Paulo Dominguetti de pedir
propina numa negociação envolvendo a compra de 400 milhões de doses da
vacina da AstraZeneca. Dias também foi acusado de pressionar
o servidor Luis Ricardo Miranda para agilizar a negociata bilionária ora
investigada pela CPI e pelo MPF, PF e
TCU. (O contrato foi
suspenso devido a atipicidades — tais como a celeridade anormal no
processo e a intermediação de uma empresa que, juntamente com outras coligadas,
vende
de parafuso a foguete para órgãos públicos.)
O imbróglio é tão surreal quanto os depoimentos e os
próprios depoentes. O cabo Dominguetti, que nas horas vagas trocava a
farda pela maleta de mascate, é um bom exemplo. É estarrecedor que esse indivíduo tenha sido recebido no Ministério da Saúde para discutir um negócio (negociata?) bilionária envolvendo a compra de 400 milhões de doses de uma vacina cuja demanda mundial a AstraZeneca
— a exemplo das demais farmacêuticas que produzem vacinas contra a Covid
— não consegue atender.
Quando a merda subiu à tona, soube-se Dominguetti foi
afastado das funções que exercia no aeroporto da Pampulha, na capital mineira, por “não corresponder ao perfil necessário de atuação no referido órgão” e
transferido para o batalhão de Alfenas, no sul do Estado. Que responde a processos por aluguel atrasado e compra de um carro
financiado cujas parcelas e multas de trânsito deixou de pagar (além de dar
sumiço no veículo). Seu nome aparecem em outras trinta e tantas ações
judiciais.
Enfim, esse policial/mascate achou de oferecer vacinas a um governo que, por um capricho idiota do dono da patética esferográfica Bic, cancelou
a compra de 46 milhões de doses da SinoVac/Butantan e deixou sem resposta
pelo
menos dez emails com ofertas (tanto de 30 milhões como de 70 milhões de
doses) da Pfizer. Que, perguntado sobre o motivo de não ter
dado voz de prisão a Roberto Dias quando este lhe pediu propina de US$
1 por dose, disse ser um simples cabo, e havia na mesa um
superior hierárquico (o tenente-coronel do Exército Marcelo Blanco, que
atua no Ministério da Saúde).
Observação: Depois que a Davati desmentiu que Dominguetti tivesse poder “para negociar ou alterar a oferta em nome da empresa”, o deputado Luis Miranda disse que vem “recebendo uma nova denúncia a cada hora”. Dominguetti disse que representou a Davati apenas com um “contrato de boca”, informal, “um acordo de cavalheiros”. Durante a oitiva, ele deu a entender que o próprio Miranda teria negociado também a compra de vacinas, mas a história foi desmentida na própria sessão, quando os senadores comprovarem que o áudio exibido pelo policial não só fora gravado no ano passado como também estava fora de contexto.
A conturbada sessão de ontem teve bate-bocas, trocas de acusações entre integrantes do G7 e senadores bolsonaristas e uma cachoeira de mentiras e meias-verdades, mas evidenciou que nem a versão do depoente nem os argumentos da tropa de choque do governo resistem à luz detergente dos fatos.
O relator investiu na quantidade em detrimento da qualidade das perguntas que fez ao depoente, mas as intervenções da
senadora Simone Tebet foram (mais uma vez) cirúrgicas. É uma pena o MDB ter
preterido a parlamentar sul-mato-grossense em prol da candidatura de Rodrigo
Pacheco à presidência do Senado. Enfim, são águas passadas, e águas passadas
não movem moinhos.
A fala de Dominguetti revelou que existem duas facções no Ministério da Saúde (que, nunca
é demais lembrar, o ministro-interventor general Pazuello não só militarizou
como transformou em cabide de fardas para os amigos do chefe). Resta saber se a
disputa entre a ala dos assessores indicados politicamente (liderada pelo próprio Roberto Dias) e a dos militares (comandada pelo
então secretário-executivo Élcio Franco) era meramente política, se um lado
havia descoberto a participação do outro lado em irregularidades, ou se ambas pegavam em lanças visando assumir o controle do “suposto” esquema de corrupção.
Roberto Dias tentou jogar nas costas do desafeto Élcio Franco toda a responsabilidade pela negociação da compra de vacinas e negou ter cobrado propina ou pressionado Luís Ricardo Miranda a assinar uma licença de importação da Covaxin com procedimentos ilegais. Perguntado sobre o motivo de ter se reunido com representante da Davati e participado das negociações da Covaxin — já que a responsabilidade pelos contratos não era dele, e sim da facção rival —, respondeu que só participou de “conversas iniciais” e repetiu que os contratos eram fechados pela secretaria executiva.
Agora a cereja do bolo: Antes de encerrar a sessão, o presidente da CPI deu voz de prisão a Roberto Dias. A advogada do depoente ainda tentou argumentar que seu cliente estava lá desde cedo prestando as informações, mas o senador Omar Aziz foi irredutível: “Ele vai ser recolhido pela polícia do Senado, deixei chances para ele desde a manhã, mas ele está mentido”.