Em menos de 60 minutos, dois novos escândalos pularam no colo do presidente. O deputado e ex-aliado Luís Miranda relatou a à revista Crusoé que, depois de alertar Bolsonaro de que havia um esquema de corrupção em curso no Ministério da Saúde, recebeu de Ricardo Barros uma proposta milionária para calar a boca. (Perguntinha desagradável: quem contou a Barros que Miranda estava fora de controle e precisava de um calaboca?)
O cabo da PM de Minas Gerais Luiz Dominguetti, que se
apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply,
contou à Folha que foi achacado por Roberto Dias, diretor de
logística do Ministério da Saúde, quando tentava negociar doses da vacina AstraZeneca.
Segundo o primeiro, o segundo exigiu propina de um dólar para cada vacina que
comprasse. O diretor é uma das pessoas de quem o outro Miranda, servidor
do Ministério da Saúde, disse ter recebido pressão indevida para efetuar
pagamento antecipado (e irregular) referente à Covaxin. Dias foi
indicado para o ministério por Barros — e foi demitido sem qualquer
explicação).
O depoimento de Dominguetti foi, até agora, o mais
estapafúrdio da CPI. E olha que já teve muito depoimento estapafúrdio. O
policial militar pretendia vender ao Ministério da Saúde 400 milhões de doses de
uma vacina que o mundo inteiro queria e ninguém tinha. Mesmo sendo um policial
da ativa, ouviu uma proposta de corrupção sem dar voz de prisão em flagrante ao
criminoso. E a narrativa ficou mais esquisita ainda quando, em plena CPI,
o policial apresentou uma gravação incriminando — falsamente — os irmãos Miranda,
responsáveis pela denúncia do outro esquema bilionário que inclui Roberto
Dias. A perplexidade foi geral: afinal, Dominguetti queria denunciar o
governo ou defende-lo? A testemunha tem boa fé ou foi plantada para
desqualificar os Miranda e proteger o governo? Nesse caso, por que
denunciou Dias?
A própria tropa de choque do governo parece ter ficado
atordoada. Ainda pela manhã, Flávio Bolsonaro dizia que a denúncia de Dominguetti
era “fantasiosa”, mas, no início da tarde, já defendia a testemunha. Quando
ficou claro para todos que a prova contra os Miranda era de araque, a
tropa passou a atacar a testemunha.
Curiosamente, apesar de o comportamento de Dominguetti
ser estapafúrdio, a denúncia contra Dias, em si, é perfeitamente crível:
o denunciante sabe precisar perfeitamente todos os detalhes das circunstâncias
em que Dias lhe pediu a propina. O que não é crível é que um cabo
estivesse fazendo uma venda bilionária de um produto que ninguém no mundo
tinha. Muito mais razoável é que seu encontro com Dias tenha sido uma
armadilha para fornecer a Pazuello o pretexto perfeito para se livrar de
um funcionário que o general queria demitir desde setembro, mas que o governo,
a pedido do Centrão, não permitia.
Barros está no olho do lamaçal, digo, do furacão. O
que está acontecendo confirma uma das leis do universo: quando alguém muito
poderoso está no chão, forma-se fila para lhe chutar a cara. Sobretudo quando
esse alguém não é muito querido. Tanto Barros quanto Bolsonaro
estão no chão. E a fila está se formando com uma velocidade impressionante
Bolsonaro precisa se livrar rapidamente de Barros,
que é um homem poderoso, controla muitos votos na Câmara e é um dos cardeais do
Centrão. Parafraseando Vinícius de Moraes, o presidente, sem o Centrão,
não é ninguém. Se ficar próximo a seu líder na Câmara, o chefe do Executivo
pode cair; caso se afaste, pode cair do mesmo jeito. A cada momento que passa,
a relação entre os dois mais se parece com que Dilma, a inolvidável,
tinha com Eduardo Cunha, o inesquecível.
Bolsonaro mandou e Pazuello obedeceu: entrou
em campo para matar no peito e livrar o chefe da acusação de prevaricação. Já
demissionário, o obelisco da logística disse que determinou a seu segundo na
pasta, coronel Élcio Franco, que apurasse se havia alguma
irregularidade. O subordinado apurou, nada encontrou, e todos deram o assunto
por encerrado. Beleza.
O presidente tinha a obrigação de comunicar à Polícia
Federal ou ao Ministério Público; se comunicou a Pazuello,
considerado suspeito pelo denunciante, continua culpado de prevaricação, mas
passa a ser suspeito e obstrução de justiça e eventual cúmplice. Pazuello
também cometeu crime de prevaricação, e se torna suspeito de falsidade
ideológica e obstrução de justiça. E continua suspeito de participação no
esquema. E Franco, corroborando a conversa fiada do ex-chefe, também
comete prevaricação e vira suspeito de falsidade ideológica e obstrução e
justiça. E continua suspeito de estar no esquema. Em suma: quanto mais se
debatem tentando escapar da rede, mais se enredam.
Quem são essas pessoas? Como vivem? O que comem? Ninguém
achou que seria boa ideia conversar com o denunciante. Ninguém apresentou
tampouco um ofício, um memorando, um email, um zap, enfim, nenhum documento que
comprovasse sua narrativa. Mentirosos compulsivos contando uma história
inverossímil, sem provas, com cinco dias de atraso e esperando que o respeitável
público acredite em sua palavra.
Uma hipótese aventada para explicar o comportamento de Dominguetti
é que agora, no calor da denúncia dos Miranda, o governo possa ter
acreditado que se Dias sofresse nova denúncia e Bolsonaro
imediatamente o demitisse, demonstrando seu compromisso com o combate a corrupção
— pausa para as gargalhadas — e debelaria a crise. Assim, teria determinado a policial
militar, bolsonarista entusiasmado, que fizesse a denúncia e, de quebra,
incriminasse Luís Miranda com uma prova falsa. (Ambas as ideias são
completamente descerebradas, mas o governo está em pânico, produzindo ideias
descerebradas quase todo dia).
Seja qual for a explicação, está dando tudo errado. A
denúncia de Dominguetti foi um desastre para o governo, a falsa denúncia
contra Luís Miranda foi desmascarada em minutos e transformou o desastre
em catástrofe. Enfim, o depoimento foi uma confusão, e ainda há muitas lacunas a
preencher, mas a crise piorou. O governo sai com a imagem de ter plantado uma
testemunha. E o resultado líquido da sessão será uma acareação com Dominguetti,
Cristiano Alberto Carvalho, representante da Davati (a empresa
que, supostamente, tinha as vacinas para vender), os ex-funcionários do
Ministério da Saúde Roberto Dias, Marcelo Blanco e Alexandre
Martinelli, os três suspeitos de corrupção. Ficou um pouco mais difícil
para Arthur Lira manter o impeachment na gaveta.
A conferir.