terça-feira, 6 de julho de 2021

CAI A CASA DA MÃE JOANA


Em menos de 60 minutos, dois novos escândalos pularam no colo do presidente. O deputado e ex-aliado Luís Miranda relatou a à revista Crusoé que, depois de alertar Bolsonaro de que havia um esquema de corrupção em curso no Ministério da Saúde, recebeu de Ricardo Barros uma proposta milionária para calar a boca. (Perguntinha desagradável: quem contou a Barros que Miranda estava fora de controle e precisava de um calaboca?)

O cabo da PM de Minas Gerais Luiz Dominguetti, que se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply, contou à Folha que foi achacado por Roberto Dias, diretor de logística do Ministério da Saúde, quando tentava negociar doses da vacina AstraZeneca. Segundo o primeiro, o segundo exigiu propina de um dólar para cada vacina que comprasse. O diretor é uma das pessoas de quem o outro Miranda, servidor do Ministério da Saúde, disse ter recebido pressão indevida para efetuar pagamento antecipado (e irregular) referente à Covaxin. Dias foi indicado para o ministério por Barros — e foi demitido sem qualquer explicação).

O depoimento de Dominguetti foi, até agora, o mais estapafúrdio da CPI. E olha que já teve muito depoimento estapafúrdio. O policial militar pretendia vender ao Ministério da Saúde 400 milhões de doses de uma vacina que o mundo inteiro queria e ninguém tinha. Mesmo sendo um policial da ativa, ouviu uma proposta de corrupção sem dar voz de prisão em flagrante ao criminoso. E a narrativa ficou mais esquisita ainda quando, em plena CPI, o policial apresentou uma gravação incriminando — falsamente — os irmãos Miranda, responsáveis pela denúncia do outro esquema bilionário que inclui Roberto Dias. A perplexidade foi geral: afinal, Dominguetti queria denunciar o governo ou defende-lo? A testemunha tem boa fé ou foi plantada para desqualificar os Miranda e proteger o governo? Nesse caso, por que denunciou Dias?

A própria tropa de choque do governo parece ter ficado atordoada. Ainda pela manhã, Flávio Bolsonaro dizia que a denúncia de Dominguetti era “fantasiosa”, mas, no início da tarde, já defendia a testemunha. Quando ficou claro para todos que a prova contra os Miranda era de araque, a tropa passou a atacar a testemunha.

Curiosamente, apesar de o comportamento de Dominguetti ser estapafúrdio, a denúncia contra Dias, em si, é perfeitamente crível: o denunciante sabe precisar perfeitamente todos os detalhes das circunstâncias em que Dias lhe pediu a propina. O que não é crível é que um cabo estivesse fazendo uma venda bilionária de um produto que ninguém no mundo tinha. Muito mais razoável é que seu encontro com Dias tenha sido uma armadilha para fornecer a Pazuello o pretexto perfeito para se livrar de um funcionário que o general queria demitir desde setembro, mas que o governo, a pedido do Centrão, não permitia.

Barros está no olho do lamaçal, digo, do furacão. O que está acontecendo confirma uma das leis do universo: quando alguém muito poderoso está no chão, forma-se fila para lhe chutar a cara. Sobretudo quando esse alguém não é muito querido. Tanto Barros quanto Bolsonaro estão no chão. E a fila está se formando com uma velocidade impressionante

Bolsonaro precisa se livrar rapidamente de Barros, que é um homem poderoso, controla muitos votos na Câmara e é um dos cardeais do Centrão. Parafraseando Vinícius de Moraes, o presidente, sem o Centrão, não é ninguém. Se ficar próximo a seu líder na Câmara, o chefe do Executivo pode cair; caso se afaste, pode cair do mesmo jeito. A cada momento que passa, a relação entre os dois mais se parece com que Dilma, a inolvidável, tinha com Eduardo Cunha, o inesquecível.

Bolsonaro mandou e Pazuello obedeceu: entrou em campo para matar no peito e livrar o chefe da acusação de prevaricação. Já demissionário, o obelisco da logística disse que determinou a seu segundo na pasta, coronel Élcio Franco, que apurasse se havia alguma irregularidade. O subordinado apurou, nada encontrou, e todos deram o assunto por encerrado. Beleza.

O presidente tinha a obrigação de comunicar à Polícia Federal ou ao Ministério Público; se comunicou a Pazuello, considerado suspeito pelo denunciante, continua culpado de prevaricação, mas passa a ser suspeito e obstrução de justiça e eventual cúmplice. Pazuello também cometeu crime de prevaricação, e se torna suspeito de falsidade ideológica e obstrução de justiça. E continua suspeito de participação no esquema. E Franco, corroborando a conversa fiada do ex-chefe, também comete prevaricação e vira suspeito de falsidade ideológica e obstrução e justiça. E continua suspeito de estar no esquema. Em suma: quanto mais se debatem tentando escapar da rede, mais se enredam.

Quem são essas pessoas? Como vivem? O que comem? Ninguém achou que seria boa ideia conversar com o denunciante. Ninguém apresentou tampouco um ofício, um memorando, um email, um zap, enfim, nenhum documento que comprovasse sua narrativa. Mentirosos compulsivos contando uma história inverossímil, sem provas, com cinco dias de atraso e esperando que o respeitável público acredite em sua palavra.

Uma hipótese aventada para explicar o comportamento de Dominguetti é que agora, no calor da denúncia dos Miranda, o governo possa ter acreditado que se Dias sofresse nova denúncia e Bolsonaro imediatamente o demitisse, demonstrando seu compromisso com o combate a corrupção — pausa para as gargalhadas — e debelaria a crise. Assim, teria determinado a policial militar, bolsonarista entusiasmado, que fizesse a denúncia e, de quebra, incriminasse Luís Miranda com uma prova falsa. (Ambas as ideias são completamente descerebradas, mas o governo está em pânico, produzindo ideias descerebradas quase todo dia).

Seja qual for a explicação, está dando tudo errado. A denúncia de Dominguetti foi um desastre para o governo, a falsa denúncia contra Luís Miranda foi desmascarada em minutos e transformou o desastre em catástrofe. Enfim, o depoimento foi uma confusão, e ainda há muitas lacunas a preencher, mas a crise piorou. O governo sai com a imagem de ter plantado uma testemunha. E o resultado líquido da sessão será uma acareação com Dominguetti, Cristiano Alberto Carvalho, representante da Davati (a empresa que, supostamente, tinha as vacinas para vender), os ex-funcionários do Ministério da Saúde Roberto Dias, Marcelo Blanco e Alexandre Martinelli, os três suspeitos de corrupção. Ficou um pouco mais difícil para Arthur Lira manter o impeachment na gaveta.

A conferir.