"Quem decide as eleições são vocês",
disse o capitão a sua claque de apoiadores. "Não vai ser um
ou dois ministros do STF que vão decidir o destino de uma nação.
Quem tem legitimidade além do presidente (da República) é o Congresso Nacional",
lecionou o mandatário. No dia seguinte, ele promoveu mais
uma motociata, desta feita no Distrito Federal.
Esses eventos — que já aconteceram em São Paulo (SP), Rio de
Janeiro (RJ), Chapecó (SC), Porto Alegre (RS), Presidente Prudente (SP) e
Florianópolis (SC) — transformaram-se em verdadeiros comícios. No de sábado, integrantes
do Movimento Brasil Livre saíram às ruas de São Paulo para
convocar as pessoas a participar dos atos pró-impeachment marcados para 12
de setembro. Lideradas pelo MBL e pelo Vem Pra Rua, essas
manifestações ganharam o reforço de um movimento chamado “Há um
caminho”, que defende a construção de uma terceira via na
corrida presidencial de 2022.
Ainda na noite de sábado, em conversa com apoiadores no chiqueirinho
defronte ao Alvorada, o chefe do Executivo foi questionado sobre o movimento. "Quem
é você? Veio de onde? Qual movimento você representa? É do MBL?", peguntou Boslonaro. O homem negou. O capitão ironizou: “Não vou nem dormir
hoje. MBL junto com PT, PCdoB, PSOL, cada vez fazem um movimento que tem menos
gente. E outra, você pergunta para aqueles caras e eles dizem ‘só sei que estou
aqui ganhando R$ 50’, mais nada.”
Em 2018, por absoluta falta de opção, entregamos o comando
do país a um candidato que, mais adiante, reconheceria
expressamente jamais ter sido talhado para o cargo. Da feita que as
consequências vêm depois, era impossível prever, àquela altura, que a
emenda seria pior que o soneto. Em outras palavras, libertamos da garrafa um efrite
(ou ifrit)
megalômano e ávido por poder, que desde a posse vem fazendo para o país aquilo
que afirmou recentemente ter
feito para a CPI do Genocídio. Em suma, de cagada em cagada o cagão esmerdeia
o lema chauvinista e enjoadinho que associou à sua campanha: "Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos".
Observação: O slogan "Brasil acima de tudo",
criado durante a ditadura militar pelo grupo de paraquedistas
nacionalistas Centelha Nativista, inspirou o bordão adotado
por Bolsonaro — que foi paraquedista no exército — talvez
porque fosse acintoso demais usar seu verdadeiro lema: O CLÃ BOLSONARO E SUA
PERPETUAÇÃO NO PODER ACIMA DE QUALQUER COISA".
Em pouco mais de dois anos e meio de mandato, Bolsonaro
tenta comprovar a estapafúrdia teoria de que a melhor maneira de superar uma
crise é criando outra, de preferência maior. Diante da mais recente — e a mais
expressiva crise entre Poderes desde a redemocratização do Brasil, há 36 anos —,
o Judiciário, depois de muito relutar, passou a tratar o chefe do Executivo
como uma ameaça à democracia.
Vinte e quatro dias depois de convidar Bolsonaro para
uma "reunião pacificadora entre os chefes dos três Poderes", o presidente do STF cancelou o encontro. "O respeito mútuo entre as instituições e seus integrantes é condição sine qua non para o diálogo, e as ofensas e ataques aos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes atingem
o Supremo por inteiro", disse Luiz Fux.
Em mais uma evidência de que percorre a conjuntura a procura
de encrenca, o inquilino do Palácio do Planalto reagiu à novidade chamando Fux
de desinformado. "Deixar bem claro, ministro Fux: na minha palavra
aqui não tem nenhum ataque ao Supremo Tribunal Federal, zero. Se o senhor não
tiver alguém para te informar do que eu falo aqui, eu lamento",
afirmou Bolsonaro na live da última quinta-feira, que aproveitou para reiterar os
conceitos desairosos em relação a Barroso e Moraes e achincalhar
o sistema eleitoral.
Fux parece ter aprendido que o caso de Bolsonaro
não é de tranquilizante, como supunha, mas de camisa de força. Chamou para uma
conversa o procurador-geral Augusto Aras — que deve o cargo ao chefe do Executivo e nada acha contra ele porque se recusa a investigá-lo. Pela
Constituição, cabe ao PGR converter em denúncia as provas que o Supremo
colecionar contra Bolsonaro nos inquéritos estrelados por ele.
Além de acordar o STF e o TSE, as ameaças do
ex-capitão à democracia despertaram pedaços representativos da sociedade.
Centenas de empresários, banqueiros, economistas e líderes religiosos
subscrevem desde a última quarta-feira um manifesto em defesa do sistema
eleitoral brasileiro, que começou em versão impressa e ganha adesões na
internet. O texto realça o óbvio: o Brasil enfrenta uma crise sanitária, social
e econômica de grandes proporções. Anota que o futuro mais próspero só será
possível se for escorado na estabilidade democrática. Algo que depende da
realização de eleições e da aceitação de seus resultados por todos os
envolvidos. O manifesto sustenta que a Justiça Eleitoral brasileira é
uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Declara que todos confiam na Justiça
Eleitoral e no atual sistema de votação eletrônico.
Nesse contexto, o silêncio dos presidentes das duas Casas do
Congresso Nacional soa como omissão. Mas o Congresso produziu duas
manifestações que constrangem o senador Rodrigo Pacheco e o deputado Arthur
Lira. Numa, a cúpula da CPI do Genocídio no Senado divulgou nota
solidarizando-se com a reação de Fux. Noutra, mais eloquente, a comissão
especial que analisa na Câmara a mudança no sistema de votação brasileiro
rejeitou, por 23 votos a 11, o parecer que estabelecia o voto impresso.
Bolsonaro ainda se deu conta de que é ele quem está esticando a corda — e apertando o nó em torno do próprio pescoço. Forjado no conflito, o capitão troglodita é insensível a sutilizas — como o tapa com luvas de pelica que recebeu do ministro Barroso. Horas depois de ser xingado de filho da puta, o magistrado publicou no Twitter um post sugerindo uma dica literária — o clássico "O Alienista", de Machado de Assis, no qual o médico Simão Bacamarte interna uma cidade inteira até concluir que o louco era ele, e se trancar em seu hospício —, citando uma máxima do poeta gaúcho Mário Quintana — "Aquilo que falam de mim não me diz respeito" — e mencionando a música é "Fixação" — sucesso do Kid Abelha nos anos 80. Só faltou a voz de um locutor de rádio dizendo: "Luís Roberto dedica esta canção a Jair"
Bolsonaro sempre afrontou a democracia, mas subiu o
tom quando as pesquisas registraram um expressivo aumento na rejeição a
seu governo e o crescimento do favoritismo do ex-presidiário
"ex-corrupto" para as eleições de 2022. À camarilha de puxa-sacos que
bebe suas palavras no chiqueirinho armado defronte ao Alvorada, o alienado teve o desplante de dizer que não ofendeu nenhum ministro do Supremo, apenas "falou a ficha do senhor Barroso, defensor do terrorista Cesare Battisti,
favorável ao aborto, à liberação das drogas e à redução da idade para estupro
de vulnerável". E insistiu na falácia de que "só Deus o tira da cadeira de presidente".
Pelas últimas contas, 1558 pessoas e mais de 550 organizações
assinaram pedidos de impeachment do mandatário de turno. Foram enviados 132
documentos ao presidente da Câmara dos Deputados, sendo 78 pedidos originais, 7
aditamentos e 47 pedidos duplicados. Até agora, apenas 6 pedidos foram
arquivados ou desconsiderados. Os demais 126 pendem sobre a cabeça do capitão como
uma espécie de Espada
de Dâmocles.
O empresariado — que apoiou maciçamente Bolsonaro em
2018 — publicou recentemente um
manifesto em defesa da democracia, do TSE e do nosso
sistema eleitoral. O economista Edmar Bacha, um dos
formuladores do Plano Real e signatário do documento, disse ao Globo
que se
os ataques do presidente não cessarem o caminho é pressionar o Congresso a
abrir um processo de impeachment.
O problema é que a Constituição de 1988 atribuiu exclusivamente ao presidente da Câmara a incumbência de decidir o destino de pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo e não estabeleceu prazo para a tomada dessa decisão (mais detalhes sobre a tramitação de processos de impeachment nesta postagem).
Tramita na Câmara um projeto que, caso seja aprovado, o
ato contra o mandatário passará a tramitar quando 257 dos 513 apoiam a
abertura do processo. A questão é que cabe à Mesa Diretora dar-lhe
seguimento, e quem a comanda é o deputado-réu Arthur Lira — eleito
presidente da Casa com o apoio do Palácio do Planalto e recursos oriundos de um "suposto"
orçamento paralelo.
Diante da inércia cumplice (e ultrajante) do PGR e do presidente
da Câmara — que, como dito, devem seus cargos ao mandatário de fancaria —, as cortes
superiores vêm articulando um movimento coordenado para conter as ameaças às
eleições de 2022. O TSE decidiu por unanimidade abrir um inquérito
administrativo para investigar os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. Em
paralelo, o corregedor-geral da corte pediu a inclusão do capitão no "inquérito
das Fake News", que tramita no STF sob a relatoria do ministro Alexandre
de Moraes. Ato contínuo, todos os ex-presidentes do TSE desde 1988 —
aí incluídos nove dos atuais ministros do STF — assinaram um documento
em defesa da urna eletrônica. Dois dias depois, o corregedor-geral da Corte
Eleitoral pediu que as apurações do inquérito dos Atos Antidemocráticos
sejam incorporadas às investigações sobre ações ilegais da chapa Bolsonaro-Mourão.
Oxalá esse movimento do Judiciário mude realmente o jogo
institucional.