segunda-feira, 9 de agosto de 2021

ACABOU, PORRA!

Durante seu enésimo comício em Santa Catarina, minutos antes de ser homenageado com a Ordem da Machadinha — comenda máxima do Comando do Corpo de Bombeiros Voluntários de Joinville —, Bolsonaro referiu-se ao presidente do TSE como "aquele filho da puta do Barroso". O vídeo foi prontamente apagado do Facebook do mandatário, mas a ação não foi rápida o bastante para impedir que a cena viralizasse nas redes sociais.

"Quem decide as eleições são vocês", disse o capitão a sua claque de apoiadores. "Não vai ser um ou dois ministros do STF que vão decidir o destino de uma nação. Quem tem legitimidade além do presidente (da República) é o Congresso Nacional", lecionou o mandatário. No dia seguinte, ele promoveu mais uma motociata, desta feita no Distrito Federal.

Esses eventos — que já aconteceram em São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Chapecó (SC), Porto Alegre (RS), Presidente Prudente (SP) e Florianópolis (SC) — transformaram-se em verdadeiros comícios. No de sábado, integrantes do Movimento Brasil Livre saíram às ruas de São Paulo para convocar as pessoas a participar dos atos pró-impeachment marcados para 12 de setembro. Lideradas pelo MBL e pelo Vem Pra Rua, essas manifestações ganharam o reforço de um movimento chamado Há um caminho, que defende a construção de uma terceira via na corrida presidencial de 2022.

Ainda na noite de sábado, em conversa com apoiadores no chiqueirinho defronte ao Alvorada, o chefe do Executivo foi questionado sobre o movimento. "Quem é você? Veio de onde? Qual movimento você representa? É do MBL?", peguntou Boslonaro. O homem negou. O capitão ironizou: Não vou nem dormir hoje. MBL junto com PT, PCdoB, PSOL, cada vez fazem um movimento que tem menos gente. E outra, você pergunta para aqueles caras e eles dizem ‘só sei que estou aqui ganhando R$ 50’, mais nada.”

Em 2018, por absoluta falta de opção, entregamos o comando do país a um candidato que, mais adiante, reconheceria expressamente jamais ter sido talhado para o cargo. Da feita que as consequências vêm depois, era impossível prever, àquela altura, que a emenda seria pior que o soneto. Em outras palavras, libertamos da garrafa um efrite (ou ifrit) megalômano e ávido por poder, que desde a posse vem fazendo para o país aquilo que afirmou recentemente ter feito para a CPI do Genocídio. Em suma, de cagada em cagada o cagão esmerdeia o lema chauvinista e enjoadinho que associou à sua campanha: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Observação: O slogan "Brasil acima de tudo", criado durante a ditadura militar pelo grupo de paraquedistas nacionalistas Centelha Nativista, inspirou o bordão adotado por Bolsonaro — que foi paraquedista no exército — talvez porque fosse acintoso demais usar seu verdadeiro lema: O CLÃ BOLSONARO E SUA PERPETUAÇÃO NO PODER ACIMA DE QUALQUER COISA".

Em pouco mais de dois anos e meio de mandato, Bolsonaro tenta comprovar a estapafúrdia teoria de que a melhor maneira de superar uma crise é criando outra, de preferência maior. Diante da mais recente — e a mais expressiva crise entre Poderes desde a redemocratização do Brasil, há 36 anos —, o Judiciário, depois de muito relutar, passou a tratar o chefe do Executivo como uma ameaça à democracia.

Vinte e quatro dias depois de convidar Bolsonaro para uma "reunião pacificadora entre os chefes dos três Poderes", o presidente do STF cancelou o encontro. "O respeito mútuo entre as instituições e seus integrantes é condição sine qua non para o diálogo, e as ofensas e ataques aos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes atingem o Supremo por inteiro", disse Luiz Fux.

Em mais uma evidência de que percorre a conjuntura a procura de encrenca, o inquilino do Palácio do Planalto reagiu à novidade chamando Fux de desinformado. "Deixar bem claro, ministro Fux: na minha palavra aqui não tem nenhum ataque ao Supremo Tribunal Federal, zero. Se o senhor não tiver alguém para te informar do que eu falo aqui, eu lamento", afirmou Bolsonaro na live da última quinta-feira, que aproveitou para reiterar os conceitos desairosos em relação a Barroso e Moraes e achincalhar o sistema eleitoral.

Fux parece ter aprendido que o caso de Bolsonaro não é de tranquilizante, como supunha, mas de camisa de força. Chamou para uma conversa o procurador-geral Augusto Aras — que deve o cargo ao chefe do Executivo e nada acha contra ele porque se recusa a investigá-lo. Pela Constituição, cabe ao PGR converter em denúncia as provas que o Supremo colecionar contra Bolsonaro nos inquéritos estrelados por ele.

Além de acordar o STF e o TSE, as ameaças do ex-capitão à democracia despertaram pedaços representativos da sociedade. Centenas de empresários, banqueiros, economistas e líderes religiosos subscrevem desde a última quarta-feira um manifesto em defesa do sistema eleitoral brasileiro, que começou em versão impressa e ganha adesões na internet. O texto realça o óbvio: o Brasil enfrenta uma crise sanitária, social e econômica de grandes proporções. Anota que o futuro mais próspero só será possível se for escorado na estabilidade democrática. Algo que depende da realização de eleições e da aceitação de seus resultados por todos os envolvidos. O manifesto sustenta que a Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Declara que todos confiam na Justiça Eleitoral e no atual sistema de votação eletrônico.

Nesse contexto, o silêncio dos presidentes das duas Casas do Congresso Nacional soa como omissão. Mas o Congresso produziu duas manifestações que constrangem o senador Rodrigo Pacheco e o deputado Arthur Lira. Numa, a cúpula da CPI do Genocídio no Senado divulgou nota solidarizando-se com a reação de Fux. Noutra, mais eloquente, a comissão especial que analisa na Câmara a mudança no sistema de votação brasileiro rejeitou, por 23 votos a 11, o parecer que estabelecia o voto impresso.

Bolsonaro ainda se deu conta de que é ele quem está esticando a corda — e apertando o nó em torno do próprio pescoço. Forjado no conflito, o capitão troglodita é insensível a sutilizas — como o tapa com luvas de pelica que recebeu do ministro Barroso. Horas depois de ser xingado de filho da puta, o magistrado publicou no Twitter um post sugerindo uma dica literária — o clássico "O Alienista", de Machado de Assis, no qual o médico Simão Bacamarte interna uma cidade inteira até concluir que o louco era ele, e se trancar em seu hospício —, citando uma máxima do poeta gaúcho Mário Quintana — "Aquilo que falam de mim não me diz respeito" — e mencionando a música é "Fixação" — sucesso do Kid Abelha nos anos 80. Só faltou a voz de um locutor de rádio dizendo: "Luís Roberto dedica esta canção a Jair"

Bolsonaro sempre afrontou a democracia, mas subiu o tom quando as pesquisas registraram um expressivo aumento na rejeição a seu governo e o crescimento do favoritismo do ex-presidiário "ex-corrupto" para as eleições de 2022. À camarilha de puxa-sacos que bebe suas palavras no chiqueirinho armado defronte ao Alvorada, o alienado teve o desplante de dizer que não ofendeu nenhum ministro do Supremo, apenas "falou a ficha do senhor Barroso, defensor do terrorista Cesare Battisti, favorável ao aborto, à liberação das drogas e à redução da idade para estupro de vulnerável". E insistiu na falácia de que "só Deus o tira da cadeira de presidente".

Pelas últimas contas, 1558 pessoas e mais de 550 organizações assinaram pedidos de impeachment do mandatário de turno. Foram enviados 132 documentos ao presidente da Câmara dos Deputados, sendo 78 pedidos originais, 7 aditamentos e 47 pedidos duplicados. Até agora, apenas 6 pedidos foram arquivados ou desconsiderados. Os demais 126 pendem sobre a cabeça do capitão como uma espécie de Espada de Dâmocles.

O empresariado — que apoiou maciçamente Bolsonaro em 2018 — publicou recentemente um manifesto em defesa da democracia, do TSE e do nosso sistema eleitoral. O economista Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real e signatário do documento, disse ao Globo que se os ataques do presidente não cessarem o caminho é pressionar o Congresso a abrir um processo de impeachment. 

O problema é que a Constituição de 1988 atribuiu exclusivamente ao presidente da Câmara a incumbência de decidir o destino de pedidos de impeachment contra o chefe do Executivo e não estabeleceu prazo para a tomada dessa decisão (mais detalhes sobre a tramitação de processos de impeachment nesta postagem). 

Tramita na Câmara um projeto que, caso seja aprovado, o ato contra o mandatário passará a tramitar quando 257 dos 513 apoiam a abertura do processo. A questão é que cabe à Mesa Diretora dar-lhe seguimento, e quem a comanda é o deputado-réu Arthur Lira — eleito presidente da Casa com o apoio do Palácio do Planalto e recursos oriundos de um "suposto" orçamento paralelo. 

Diante da inércia cumplice (e ultrajante) do PGR e do presidente da Câmara — que, como dito, devem seus cargos ao mandatário de fancaria —, as cortes superiores vêm articulando um movimento coordenado para conter as ameaças às eleições de 2022. O TSE decidiu por unanimidade abrir um inquérito administrativo para investigar os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. Em paralelo, o corregedor-geral da corte pediu a inclusão do capitão no "inquérito das Fake News", que tramita no STF sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Ato contínuo, todos os ex-presidentes do TSE desde 1988 — aí incluídos nove dos atuais ministros do STF — assinaram um documento em defesa da urna eletrônica. Dois dias depois, o corregedor-geral da Corte Eleitoral pediu que as apurações do inquérito dos Atos Antidemocráticos sejam incorporadas às investigações sobre ações ilegais da chapa Bolsonaro-Mourão.

Oxalá esse movimento do Judiciário mude realmente o jogo institucional.