sábado, 7 de agosto de 2021

DEFEITO DE FÁBRICA


Em meados de julho, diante de perspectiva de derrota, deputados governistas manobraram para adiar a votação da PEC 135/19 na Comissão Especial da Câmara. O que não evitou a derrota. Na noite da última quinta-feira, o substitutivo apresentado pelo relator, deputado Filipe Barros, foi rejeitado por 23 votos a 11.

Além de incluir no relatório a obrigatoriedade de uma contagem pública e manual dos votos impressos, Barros definira que a futura lei sobre a execução e o procedimento de votação teria aplicação imediata (normalmente, as mudanças em regras eleitorais só entram em vigor quando aprovadas um ano antes do pleito; nos moldes propostos pelo relator, a nova lei valeria já para as eleições de 2022).

A derrota não muda o fato de que os insistentes e reiterados ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas plantou a semente da dúvida em parte da população. O Instituto Ideia Big Data constatou que o percentual de pessoas que "confiam muito" no sistema atual caiu de 42% em outubro de 2018 para 27% em maio deste ano, e o dos não confiam cresceu de 22% para 33%. Demais disso, a discussão serviu para ofuscar as denúncias de corrupção que pairam sobre o governo e o próprio presidente e ajudar a mobilizar os bolsonaristas de raiz. O fato de Bolsonaro perder a batalha do momento poderá lhe ser útil em 2022.

Segundo a jornalista Malu Gaspar, um integrante do Centrão definiu Bolsonaro como um "avatar", que brada contra a urna eletrônica e prega a liberdade e democracia nas redes sociais e para sua claque amestrada, ao passo que o presidente de verdade bajula o Centrão com cargos e rapapés, aceita pagar um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões para alimentar o mesmo sistema que diz combater e endossa ameaças de militares à realização das eleições de 2022.

Uma coisa é certa: estamos assistindo ao primeiro round de uma luta que vai pelo menos até 2022. Estava marcada para as 18h desta sexta-feira uma reunião da Comissão para analisar um novo parecer, que pode inclusive recomendar o arquivamento da PEC. Mais cedo, o deputado-réu Arthur Lira — que acontece de ser presidente da Câmara e unha-e-carne com o capitão enquanto isso for conveniente para o Centrão — disse que a PEC pode ser analisada pelo Plenário mesmo se for derrotada no colegiado. Segundo ele, "comissões especiais não são terminativas, são opinativas, então sugerem o texto, mas qualquer recurso ao Plenário pode ser feito". 

Quando eu concluí esta postagem, ainda não havia como saber se a Comissão realmente se reuniu e como votou o novo parecer. Se houver alguma informação relevante, farei um aditamento a posteriori. Dito isso, encerro com um texto lapidar de Dora Kramer:

O destino é um moleque travesso. Já pregou muitas peças ao Brasil e agora pode pegar de jeito o presidente da República, que repetidas vezes ameaça o Brasil de não ter eleições em 2022 se não for feita a sua vontade de acoplar papel às urnas eletrônicas. Tantas Jair Bolsonaro fez que acabou se expondo ao risco de tornar-se inelegível.

A depender do desenrolar do inquérito do TSE, pode não haver eleição mesmo, mas para ele. Já o direito — no nosso país transmutado em dever pelo voto obrigatório — do eleitorado está garantido. Primeiro, porque isso não depende da vontade do presidente. Segundo, porque assim dita a Constituição. Terceiro, porque não há condições objetivas de se impedir a realização do pleito.

Por fim, mas não menos importante, há um obstáculo intransponível: a quantidade de gente que vive de votos. São 513 deputados, 81 senadores, 27 governadores, 1059 deputados estaduais, 5568 prefeitos e 57000 vereadores.

Isso sem contar os candidatos a presidente, os respectivos vices, considerando só os beneficiários diretos, pois existe um enorme contingente de brasileiros envolvidos no processo de votação, fiscalização e apuração, todos integrantes do universo de quase 150 milhões de eleitores do país.

Como se vê, uma parada indigesta a ser enfrentada pelo chefe do governo e seu cercadinho amigo. Jair Bolsonaro não será moderado por ninguém. Não foi pelos militares, não será pelo Centrão. É um imoderado por natureza. Ocorre que as circunstâncias o obrigaram a fazer inflexão em direção à política e, se com os militares há sempre o fantasma do golpe, com os políticos o caso é diferente.

Eles não gostam de manobras radicais que solapem as liberdades por completo, notadamente a de votar, pois é do voto que vivem. Em ditaduras, políticos são meros coadjuvantes. Nas democracias estão no comando. Sob estreita vigilância da sociedade, o que não lhes assegura controle absoluto, mas o papel da política em regimes de liberdade é de protagonista. Às vezes para o mal, mas no conceito do estado de direito, para o bem.

Esse é um ponto, mas não o único. Concorre também para a fragilidade da ofensiva em prol da reconfiguração do Estado brasileiro à imagem e semelhança de doutrina regressiva, a volatilidade das pautas. Reivindicações que mudam — nas manifestações de rua, inclusive — ao sabor de circunstâncias e conveniências.

Antes de Sergio Moro virar inimigo, a turma defendia o pacote anticrime proposto pelo então ministro da Justiça. Tema arquivado depois de Moro sair do governo atirando. Passou-se, então, a atacar o STF, ímpeto arrefecido com medidas judiciais contra militantes mais agressivos. O furor contra o Congresso sumiu assim que Bolsonaro chegou-se ao Centrão, bem como reduziram-se os pedidos de intervenção militar com a investigação sobre os atos antidemocráticos.

A chegada das vacinas e as evidências dos erros do presidente na gestão da pandemia tiraram da agenda a tentativa de desqualificação do programa nacional de imunização, que põe o Brasil à frente de muitos países desenvolvidos, assim como ocorre com o sistema eletrônico de votação, ora em contestação.

O voto impresso foi o que sobrou. E o que provocou a mais robusta reação verbal e material da Justiça. No escopo da investigação aberta no TSE há três pontos já devidamente estabelecidos: propaganda eleitoral extemporânea, abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação social. Os dois últimos bem desenhados na utilização de estruturas públicas para disseminar desinformação. Há, portanto, potencial considerável para que no lugar de Bolsonaro subtrair direitos aos brasileiros fique ele mesmo sem direito à eleição.

DEFEITO DE FÁBRICA: O que esperar de um homem que obriga o filho de 17 anos de idade a disputar uma eleição contra a própria mãe? Foi o que fez Bolsonaro em 2000 quando pôs o filho Carlos para tirar votos da ex-mulher Rogéria, candidata à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Nada muito diferente há de esperar do mesmo homem que, para pontuar críticas às restrições sanitárias, agrediu a memória de Bruno Covas ao se referir ao prefeito de São Paulo vítima de câncer em maio último como “o outro que morreu, fechou São Paulo e foi ao Maracanã”.