Em meados de julho, diante de perspectiva de derrota, deputados governistas manobraram para adiar a votação da PEC 135/19 na Comissão Especial da Câmara. O que não evitou a derrota. Na noite da última quinta-feira, o substitutivo apresentado pelo relator, deputado Filipe Barros, foi rejeitado por 23 votos a 11.
Além de incluir no relatório a obrigatoriedade de uma
contagem pública e manual dos votos impressos, Barros definira que a
futura lei sobre a execução e o procedimento de votação teria aplicação
imediata (normalmente, as mudanças em regras eleitorais só entram em vigor
quando aprovadas um ano antes do pleito; nos moldes propostos pelo relator, a
nova lei valeria já para as eleições de 2022).
A derrota não muda o fato de que os insistentes e reiterados ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas plantou a semente da dúvida em parte da população. O Instituto Ideia Big Data constatou que o percentual de pessoas que "confiam muito" no sistema atual caiu de 42% em outubro de 2018 para 27% em maio deste ano, e o dos não confiam cresceu de 22% para 33%. Demais disso, a discussão serviu para ofuscar as denúncias de corrupção que pairam sobre o governo e o próprio presidente e ajudar a mobilizar os bolsonaristas de raiz. O fato de Bolsonaro perder a batalha do momento poderá lhe ser útil em 2022.
Segundo a jornalista Malu Gaspar, um integrante do Centrão
definiu Bolsonaro como um "avatar", que brada contra a urna
eletrônica e prega a liberdade e democracia nas redes sociais e para sua claque
amestrada, ao passo que o presidente de verdade bajula o Centrão com cargos e rapapés, aceita pagar um fundo eleitoral de R$ 4 bilhões para
alimentar o mesmo sistema que diz combater e endossa ameaças
de militares à realização das eleições de 2022.
Uma coisa é certa: estamos assistindo ao primeiro round de
uma luta que vai pelo menos até 2022. Estava marcada para as 18h desta sexta-feira
uma reunião da Comissão para analisar um novo parecer, que pode inclusive
recomendar o arquivamento da PEC. Mais cedo, o deputado-réu Arthur
Lira — que acontece de ser presidente da Câmara e unha-e-carne com o
capitão enquanto isso for conveniente para o Centrão — disse que a PEC
pode ser analisada pelo Plenário mesmo se for
derrotada no colegiado. Segundo ele, "comissões especiais não são
terminativas, são opinativas, então sugerem o texto, mas qualquer recurso ao
Plenário pode ser feito".
Quando eu concluí esta postagem, ainda não havia como saber
se a Comissão realmente se reuniu e como votou o novo parecer. Se houver alguma
informação relevante, farei um aditamento a posteriori. Dito isso, encerro com
um texto lapidar de Dora Kramer:
O destino é um moleque travesso. Já pregou muitas peças ao
Brasil e agora pode pegar de jeito o presidente da República, que repetidas
vezes ameaça o Brasil de não ter eleições em 2022 se não for feita a sua
vontade de acoplar papel às urnas eletrônicas. Tantas Jair Bolsonaro fez
que acabou se expondo ao risco de tornar-se inelegível.
A depender do desenrolar do inquérito do TSE, pode não haver
eleição mesmo, mas para ele. Já o direito — no nosso país transmutado em dever
pelo voto obrigatório — do eleitorado está garantido. Primeiro, porque isso não
depende da vontade do presidente. Segundo, porque assim dita a Constituição.
Terceiro, porque não há condições objetivas de se impedir a realização do
pleito.
Por fim, mas não menos importante, há um obstáculo
intransponível: a quantidade de gente que vive de votos. São 513 deputados, 81
senadores, 27 governadores, 1 059
deputados estaduais, 5 568
prefeitos e 57 000
vereadores.
Isso sem contar os candidatos a presidente, os respectivos
vices, considerando só os beneficiários diretos, pois existe um enorme
contingente de brasileiros envolvidos no processo de votação, fiscalização e
apuração, todos integrantes do universo de quase 150 milhões de eleitores do
país.
Como se vê, uma parada indigesta a ser enfrentada pelo chefe
do governo e seu cercadinho amigo. Jair Bolsonaro não será moderado por
ninguém. Não foi pelos militares, não será pelo Centrão. É um imoderado
por natureza. Ocorre que as circunstâncias o obrigaram a fazer inflexão em
direção à política e, se com os militares há sempre o fantasma do golpe, com os
políticos o caso é diferente.
Eles não gostam de manobras radicais que solapem as
liberdades por completo, notadamente a de votar, pois é do voto que vivem. Em
ditaduras, políticos são meros coadjuvantes. Nas democracias estão no comando.
Sob estreita vigilância da sociedade, o que não lhes assegura controle
absoluto, mas o papel da política em regimes de liberdade é de protagonista. Às
vezes para o mal, mas no conceito do estado de direito, para o bem.
Esse é um ponto, mas não o único. Concorre também para a
fragilidade da ofensiva em prol da reconfiguração do Estado brasileiro à imagem
e semelhança de doutrina regressiva, a volatilidade das pautas. Reivindicações
que mudam — nas manifestações de rua, inclusive — ao sabor de circunstâncias e
conveniências.
Antes de Sergio Moro virar inimigo, a turma defendia
o pacote anticrime proposto pelo então ministro da Justiça. Tema arquivado
depois de Moro sair do governo atirando. Passou-se, então, a atacar o STF,
ímpeto arrefecido com medidas judiciais contra militantes mais agressivos. O
furor contra o Congresso sumiu assim que Bolsonaro chegou-se ao Centrão,
bem como reduziram-se os pedidos de intervenção militar com a investigação
sobre os atos antidemocráticos.
A chegada das vacinas e as evidências dos erros do
presidente na gestão da pandemia tiraram da agenda a tentativa de
desqualificação do programa nacional de imunização, que põe o Brasil à frente
de muitos países desenvolvidos, assim como ocorre com o sistema eletrônico de
votação, ora em contestação.
O voto impresso foi o que sobrou. E o que provocou a mais
robusta reação verbal e material da Justiça. No escopo da investigação aberta
no TSE há três pontos já devidamente estabelecidos: propaganda eleitoral
extemporânea, abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação
social. Os dois últimos bem desenhados na utilização de estruturas públicas
para disseminar desinformação. Há, portanto, potencial considerável para que no
lugar de Bolsonaro subtrair direitos aos brasileiros fique ele mesmo sem
direito à eleição.
DEFEITO DE FÁBRICA: O que esperar de um homem que
obriga o filho de 17 anos de idade a disputar uma eleição contra a própria mãe?
Foi o que fez Bolsonaro em 2000 quando pôs o filho Carlos para
tirar votos da ex-mulher Rogéria, candidata à Câmara Municipal do Rio de
Janeiro. Nada muito diferente há de esperar do mesmo homem que, para pontuar
críticas às restrições sanitárias, agrediu a memória de Bruno Covas ao
se referir ao prefeito de São Paulo vítima de câncer em maio último como “o
outro que morreu, fechou São Paulo e foi ao Maracanã”.