Ao ser incluído pelo ministro Alexandre de Moraes no
rol de investigados do inquérito sobre fake news, Bolsonaro se
torna uma espécie de delinquente em série, enquadrado em 11 crimes diferentes. Mesmo
assim, o capitão não baixa a crista. Diz que Moraes não o intimida, que
o inquérito é ilegal, e que vai acabar reagindo fora das "quatro linhas
da Constituição", como ele gosta de dizer.
Escorre pelos subterrâneos de Brasília um melado que, se não
for contido, pode resultar em crise institucional. Para desassossego dos
bolsonaristas, Moraes será o presidente do TSE e comandante da
sucessão de 2022. Na visão do magistrado, o presidente realiza um passeio pelo
Código Penal e pela Lei de Segurança Nacional, além de flertar
cotidianamente com o crime de responsabilidade. Moraes se absteve de
mencioná-lo porque o papel de julgador cabe à Câmara, não ao Supremo.
Atual presidente do TSE, o ministro Luis Roberto Barroso já
informou que Bolsonaro namora esse crime — que leva ao impeachment — ao
conspirar contra a legitimidade do sistema eleitoral eletrônico e colocar em
dúvida a realização das eleições de 2022.
Ninguém disse ainda — talvez por pena, quem sabe por
estupefação —, mas Bolsonaro tornou-se um cliente de caderneta dos
tribunais superiores de Brasília. No total, já responde a seis processos: três
no Supremo, onde correm os inquéritos sobre fake news,
aparelhamento da Polícia Federal e a suspeita de prevaricação no caso da
vacina Covaxin; outros três no TSE, onde tramitam o recém-aberto
inquérito das mentiras sobre urnas eletrônicas e um par de pedidos de cassação
da chapa Bolsonaro-Mourão.
Alheio aos riscos, o presidente se comporta como se fosse
invulnerável. Mas quem lida com tantos fios desencapados, por mais potente que
seja o seu sistema de blindagem, não está livre de ter o mandato eletrocutado.
O matrimônio com o Centrão evoluiu para o estágio do
patrimônio no instante em que o capitão, eleito como político antissistema,
entregou as chaves de sua Casa Civil ao sistêmico senador Ciro Nogueira.
Na cerimônia em que o parlamentar centrista se apossou da "alma" do
governo, a tropa do Centrão, chamada de "escória" por Bolsonaro
em 2018, tomou de assalto os salões do Planalto. O novo ministro apresentou-se
como "amortecedor" de um presidente que, cercado pelo Judiciário,
precisa de para-choques. Enfraquecido, o capitão pagará um preço alto pela
"governabilidade" que lhe foi oferecida pelo Centrão — mais
uma fatura que será será quitada pelos contribuintes.
A formalização do relacionamento do presidente com o Centrão
foi celebrada numa festança realizada na casa do ministro Fábio Faria. O
grupo tinha razões para celebrar. Enxerga no derretimento do governo uma
oportunidade a ser aproveitada. Horas antes, Bolsonaro fora incluído no
rol de investigados do inquérito sobre fake news, passando portanto a estrelar
meia dúzia de processos. A despeito do cerco, sua insolência dobrou a aposta
numa entrevista à rádio Jovem Pan:
"Não vai ser o inquérito, agora na mão do senhor
querido Alexandre de Moraes, para tentar me intimidar. Ou o próprio, lamento, o
TSE tomar certas medidas para investigar, me acusar de atos antidemocráticos...
Eu posso errar, tenho direito a criticar, mas não estamos errados."
Bolsonaro chamou de ilegal o inquérito sobre notícias falsas
— aberto por Dias Toffoli, então presidente do Supremo, sem ouvir
o MPF — e ameaçou reagir fora dos limites da Constituição. O processo
"está dentro das quatro linhas da Constituição?", indagou. E
ele mesmo respondeu: "Não está." O complemento como que
embalou os brindes erguidos pelo centrão na festa noturna que se seguiu à posse
de Nogueira: "Então, o antídoto para isso também não é dentro
das quatro linhas da Constituição", declarou Bolsonaro. "Aqui
ninguém é mais macho do que ninguém".
A valentia do capitão elevará o preço do apoio dos coronéis
da tropa da "escória". Bolsonaro avalia que pode comprar
brigas à vontade porque tem o Centrão. Engano. Agora, o Centrão é
que tem o presidente. Bem pago, oferecer-lhe-á a ilusão de que preside; desatendido,
fechará a conta.
Toda campanha eleitoral tem um quê de teatro. A
teatralização da sucessão de 2018 viveu um momento inusitado quando Bolsonaro
criticou o então rival tucano por encostar a candidatura no Centrão.
"Obrigado, Geraldo Alckmin, por ter unido a escória da política
brasileira", declarou o capitão, que agora admite que sua
"alma" sempre foi do Centrão, apenas cuspia num prato em que o
grupo não permitiu que ele comesse. Na semana anterior, frustrara-se a
tentativa de firmar aliança com o PL. Planejava-se fazer do então
senador Magno Malta o vice de Bolsonaro. Mas o ex-presidiário e
mensaleiro Valdemar Costa Neto, dono do PL, preferiu se entender
com Alckmin.
Mandachuva do PP, legenda que frequentou o topo do
ranking de encrencados da Lava-Jato, o agora ministro Ciro Nogueira,
ele próprio um cliente de caderneta da operação anticorrupção, também cedeu o
tempo de propaganda eleitoral do seu partido para o tucano Alckmin.
Nesta quarta-feira, Valdemar era uma das estrelas da posse de Ciro.
Há três anos, o general Augusto Heleno cantarolava na
convenção em que Bolsonaro tornou-se candidato ao Planalto pelo PSL:
"Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão..." Na invasão
do Centrão à sede do governo, o fardado trocou um animado dedo de prosa
com dois coronéis da desonestidade: o novo colega Ciro e o presidente da
Câmara Arthur Lira. A cena teve uma aparência de rendição.
No DNA do Centrão está gravada a expressão "é
dando que se recebe". Retirada da oração de São Francisco,
passou a simbolizar uma prática profana: a exigência de vantagens — lícitas e,
sobretudo, ilícitas — em troca de apoio político no Legislativo. Quem lançou a
moda foi o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), do PMDB de
São Paulo. Robertão, como era conhecido na intimidade, inaugurou a
facção franciscana do fisiologismo em março de 1988. Na época, o Congresso
Constituinte discutia a prorrogação do mandato do então presidente José
Sarney para cinco anos. Foi dando que Sarney recebeu. A moda perdura
até agora.
No intervalo de três décadas, o vocábulo
"governabilidade" ganhou um sentido gangsterístico. Virou um outro
nome para corrupção. Serve de álibi para que políticos invadam os cofres
públicos. A anomalia marcou todos os governos desde a redemocratização. Ganhou
escala industrial sob Lula e Dilma. Imaginou-se que a Lava-Jato
encurralaria o pedaço mais arcaico da política. Em maio de 2016, quando tomou
posse, Michel Temer disse, em discurso: "A moral pública será
permanentemente buscada" no meu governo. Afirmou que a Lava-Jato,
"referência" no combate à corrupção, teria "proteção contra
qualquer tentativa de enfraquecê-la."
As palavras do vampiro do Jaburu viraram pó. Ou lama.
Candidato, Bolsonaro enrolou-se na bandeira da Lava-Jato. Eleito,
levou para sua equipe Sergio Moro, símbolo da força-tarefa de Curitiba.
Hoje, Moro foi reduzido à condição de um ex-juiz cuja atuação nos
processos contra Lula foi sentenciada como "suspeita" pelo
mesmo Supremo que processa Bolsonaro depois de devolver o
ex-presidiário do PT ao jogo eleitoral de 2022, lavando-lhe a ficha
suja.
Seis anos de combate à corrupção fizeram do Brasil o local
ideal no mapa para o surgimento de um país eticamente renovado. Imoralidade não
falta. Ao sedimentar seu relacionamento com o centrão sem levar à vitrine nada
que se pareça com interesse público, Bolsonaro escancara sua
fragilidade. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro declara guerra
ao mundo. Em sua penúltima incursão, guerreia contra a estabilidade da
democracia. Pela lógica, um governante que derrete deveria buscar aliados e
evitar brigas. Mas a única lógica que Bolsonaro conhece é a lógica do
confronto.
Essa obsessão pela guerra tem suas raízes nos 28 anos de exercício de mandato parlamentar. O problema é que, na Câmara, o custo do destempero e dos xingamentos de Bolsonaro limitava-se ao desperdício de verbas públicas com o pagamento do seu contracheque e com as rachadinhas proporcionadas pela estrutura administrativa do seu gabinete. Na Presidência da República, o custo é mais alto. O Centrão faz festa porque sabe que, nesse tipo de conjuntura, não perde por esperar. Ganha!
Com Josias de Souza