sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O CAPITÃO MULTI INVESTIGADO E FORA DE CENTRO

 

Ao ser incluído pelo ministro Alexandre de Moraes no rol de investigados do inquérito sobre fake news, Bolsonaro se torna uma espécie de delinquente em série, enquadrado em 11 crimes diferentes. Mesmo assim, o capitão não baixa a crista. Diz que Moraes não o intimida, que o inquérito é ilegal, e que vai acabar reagindo fora das "quatro linhas da Constituição", como ele gosta de dizer.

Escorre pelos subterrâneos de Brasília um melado que, se não for contido, pode resultar em crise institucional. Para desassossego dos bolsonaristas, Moraes será o presidente do TSE e comandante da sucessão de 2022. Na visão do magistrado, o presidente realiza um passeio pelo Código Penal e pela Lei de Segurança Nacional, além de flertar cotidianamente com o crime de responsabilidade. Moraes se absteve de mencioná-lo porque o papel de julgador cabe à Câmara, não ao Supremo. Atual presidente do TSE, o ministro Luis Roberto Barroso já informou que Bolsonaro namora esse crime — que leva ao impeachment — ao conspirar contra a legitimidade do sistema eleitoral eletrônico e colocar em dúvida a realização das eleições de 2022.

Ninguém disse ainda — talvez por pena, quem sabe por estupefação —, mas Bolsonaro tornou-se um cliente de caderneta dos tribunais superiores de Brasília. No total, já responde a seis processos: três no Supremo, onde correm os inquéritos sobre fake news, aparelhamento da Polícia Federal e a suspeita de prevaricação no caso da vacina Covaxin; outros três no TSE, onde tramitam o recém-aberto inquérito das mentiras sobre urnas eletrônicas e um par de pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

Alheio aos riscos, o presidente se comporta como se fosse invulnerável. Mas quem lida com tantos fios desencapados, por mais potente que seja o seu sistema de blindagem, não está livre de ter o mandato eletrocutado.

O matrimônio com o Centrão evoluiu para o estágio do patrimônio no instante em que o capitão, eleito como político antissistema, entregou as chaves de sua Casa Civil ao sistêmico senador Ciro Nogueira. Na cerimônia em que o parlamentar centrista se apossou da "alma" do governo, a tropa do Centrão, chamada de "escória" por Bolsonaro em 2018, tomou de assalto os salões do Planalto. O novo ministro apresentou-se como "amortecedor" de um presidente que, cercado pelo Judiciário, precisa de para-choques. Enfraquecido, o capitão pagará um preço alto pela "governabilidade" que lhe foi oferecida pelo Centrão — mais uma fatura que será será quitada pelos contribuintes.

A formalização do relacionamento do presidente com o Centrão foi celebrada numa festança realizada na casa do ministro Fábio Faria. O grupo tinha razões para celebrar. Enxerga no derretimento do governo uma oportunidade a ser aproveitada. Horas antes, Bolsonaro fora incluído no rol de investigados do inquérito sobre fake news, passando portanto a estrelar meia dúzia de processos. A despeito do cerco, sua insolência dobrou a aposta numa entrevista à rádio Jovem Pan:

"Não vai ser o inquérito, agora na mão do senhor querido Alexandre de Moraes, para tentar me intimidar. Ou o próprio, lamento, o TSE tomar certas medidas para investigar, me acusar de atos antidemocráticos... Eu posso errar, tenho direito a criticar, mas não estamos errados."

Bolsonaro chamou de ilegal o inquérito sobre notícias falsas — aberto por Dias Toffoli, então presidente do Supremo, sem ouvir o MPF — e ameaçou reagir fora dos limites da Constituição. O processo "está dentro das quatro linhas da Constituição?", indagou. E ele mesmo respondeu: "Não está." O complemento como que embalou os brindes erguidos pelo centrão na festa noturna que se seguiu à posse de Nogueira: "Então, o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição", declarou Bolsonaro. "Aqui ninguém é mais macho do que ninguém".

A valentia do capitão elevará o preço do apoio dos coronéis da tropa da "escória". Bolsonaro avalia que pode comprar brigas à vontade porque tem o Centrão. Engano. Agora, o Centrão é que tem o presidente. Bem pago, oferecer-lhe-á a ilusão de que preside; desatendido, fechará a conta.

Toda campanha eleitoral tem um quê de teatro. A teatralização da sucessão de 2018 viveu um momento inusitado quando Bolsonaro criticou o então rival tucano por encostar a candidatura no Centrão. "Obrigado, Geraldo Alckmin, por ter unido a escória da política brasileira", declarou o capitão, que agora admite que sua "alma" sempre foi do Centrão, apenas cuspia num prato em que o grupo não permitiu que ele comesse. Na semana anterior, frustrara-se a tentativa de firmar aliança com o PL. Planejava-se fazer do então senador Magno Malta o vice de Bolsonaro. Mas o ex-presidiário e mensaleiro Valdemar Costa Neto, dono do PL, preferiu se entender com Alckmin.

Mandachuva do PP, legenda que frequentou o topo do ranking de encrencados da Lava-Jato, o agora ministro Ciro Nogueira, ele próprio um cliente de caderneta da operação anticorrupção, também cedeu o tempo de propaganda eleitoral do seu partido para o tucano Alckmin. Nesta quarta-feira, Valdemar era uma das estrelas da posse de Ciro.

Há três anos, o general Augusto Heleno cantarolava na convenção em que Bolsonaro tornou-se candidato ao Planalto pelo PSL: "Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão..." Na invasão do Centrão à sede do governo, o fardado trocou um animado dedo de prosa com dois coronéis da desonestidade: o novo colega Ciro e o presidente da Câmara Arthur Lira. A cena teve uma aparência de rendição.

No DNA do Centrão está gravada a expressão "é dando que se recebe". Retirada da oração de São Francisco, passou a simbolizar uma prática profana: a exigência de vantagens — lícitas e, sobretudo, ilícitas — em troca de apoio político no Legislativo. Quem lançou a moda foi o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996), do PMDB de São Paulo. Robertão, como era conhecido na intimidade, inaugurou a facção franciscana do fisiologismo em março de 1988. Na época, o Congresso Constituinte discutia a prorrogação do mandato do então presidente José Sarney para cinco anos. Foi dando que Sarney recebeu. A moda perdura até agora.

No intervalo de três décadas, o vocábulo "governabilidade" ganhou um sentido gangsterístico. Virou um outro nome para corrupção. Serve de álibi para que políticos invadam os cofres públicos. A anomalia marcou todos os governos desde a redemocratização. Ganhou escala industrial sob Lula e Dilma. Imaginou-se que a Lava-Jato encurralaria o pedaço mais arcaico da política. Em maio de 2016, quando tomou posse, Michel Temer disse, em discurso: "A moral pública será permanentemente buscada" no meu governo. Afirmou que a Lava-Jato, "referência" no combate à corrupção, teria "proteção contra qualquer tentativa de enfraquecê-la."

As palavras do vampiro do Jaburu viraram pó. Ou lama. Candidato, Bolsonaro enrolou-se na bandeira da Lava-Jato. Eleito, levou para sua equipe Sergio Moro, símbolo da força-tarefa de Curitiba. Hoje, Moro foi reduzido à condição de um ex-juiz cuja atuação nos processos contra Lula foi sentenciada como "suspeita" pelo mesmo Supremo que processa Bolsonaro depois de devolver o ex-presidiário do PT ao jogo eleitoral de 2022, lavando-lhe a ficha suja.

Seis anos de combate à corrupção fizeram do Brasil o local ideal no mapa para o surgimento de um país eticamente renovado. Imoralidade não falta. Ao sedimentar seu relacionamento com o centrão sem levar à vitrine nada que se pareça com interesse público, Bolsonaro escancara sua fragilidade. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro declara guerra ao mundo. Em sua penúltima incursão, guerreia contra a estabilidade da democracia. Pela lógica, um governante que derrete deveria buscar aliados e evitar brigas. Mas a única lógica que Bolsonaro conhece é a lógica do confronto.

Essa obsessão pela guerra tem suas raízes nos 28 anos de exercício de mandato parlamentar. O problema é que, na Câmara, o custo do destempero e dos xingamentos de Bolsonaro limitava-se ao desperdício de verbas públicas com o pagamento do seu contracheque e com as rachadinhas proporcionadas pela estrutura administrativa do seu gabinete. Na Presidência da República, o custo é mais alto. O Centrão faz festa porque sabe que, nesse tipo de conjuntura, não perde por esperar. Ganha!

Com Josias de Souza