Esvaiu-se no nascedouro a penúltima tentativa de sedar a oratória radioativa de Bolsonaro. A chegada do Centrão ao Planalto, marcada pela posse do senador Ciro Nogueira na chefia da Casa Civil, coincidiu com a explosão de uma crise sem precedentes entre o Executivo e o Legislativo. Coisa jamais vista nos 36 anos que se seguiram à redemocratização do Brasil.
Ao discursar na cerimônia de posse como se quisesse
convencer o país de que exerceria na chefia da Casa Civil o papel de
"amortecedor" do presidente da República, o senador estava, no fundo,
pedindo ao brasileiro que fizesse como ele: se fingisse de bobo pelo bem da
democracia.
Ciro sempre soube que o maior excesso que um aliado
de Bolsonaro pode cometer é o de moderação. Na Câmara, ao informar que
levará ao plenário a proposta sobre voto impresso, já rejeitada na comissão
especial que cuidou do tema, o deputado-réu Arthur Lira potencializou a
sensação de que o objetivo do Centrão é mesmo o de transformar o Brasil
numa nação de bobos coniventes.
Sob refletores, Lira alegou que decidiu ouvir o
plenário para colocar um ponto final numa polêmica que já "foi longe
demais". Entre quatro paredes, o deputado reconhece que a emenda do voto
impresso deve ser rejeitada em termos definitivos. E admite que as crises que o
capitão fabrica, por intermináveis, conduzem apenas a dois tipos de ponto: o de
exclamação e o de interrogação.
Lira teve a delicadeza de avisar previamente a Bolsonaro
sobre os movimentos que realizaria na Câmara. A despeito disso, o presidente
manteve a língua em riste no último sábado. De passagem por Florianópolis (SC),
reiterou os ataques a ministros do Supremo e voltou a brandir a falsa
tese segundo a qual a urna eletrônica sem impressora é inconfiável.
Bolsonaro declarou que seus desafetos querem definir
o resultado da sucessão de 2022 "no tapetão", favorecendo o
"ladrão de nove dedos", como se refere a Lula.
Discursando para devotos que o acompanharam em mais um de seus passeios de
motocicleta, vociferou: "Quem decide as eleições são vocês. Não são
meia dúzia [de pessoas] dentro de uma sala secreta que vão contar e decidir
quem ganhou as eleições. Não vão ser um ou dois ministros do Supremo Tribunal
Federal que vão decidir o destino de uma nação."
Dá-se de barato que Bolsonaro não remodelará o
discurso diante de um provável revés no plenário da Câmara. Ciro Nogueira
e Arthur Lira são correligionários. Ambos pertencem ao PP,
partido ao qual Bolsonaro já foi filiado em duas ocasiões.
No período em que conviveram com o capitão no Congresso, os
coronéis do Centrão aprenderam que o personagem prefere virar a mesa a
sentar-se em torno dela para negociar suas pretensões. Político jeitoso, dono
de estilo acomodatício, Ciro disse no discurso de posse na Casa Civil
que utilizaria sua vocação amortecedora para "estabilizar" o governo
e "diminuir as tensões". Rebatizou-se: "Meu nome é
temperança, meu sobrenome tem de ser equilíbrio."
Temperança e equilíbrio são vocábulos que rimam com
conciliação. Portanto, são palavras inconciliáveis com Bolsonaro, cujo
nome de batismo é conflito e o sobrenome, crise. Horas depois do discurso
conciliatório do seu novo chefe da Casa Civil, o presidente ameaçou numa
entrevista desobedecer a decisões do STF, agindo fora dos limites das "quatro
linhas da Constituição". Algo que levou o presidente da Corte, Luiz
Fux, a cancelar encontro pacificador que articulava entre os chefes dos
três Poderes.
Nem as almas mais ingênuas supõem que Bolsonaro
esteja disposto a deixar de lado sua obsessão pelo voto impresso, evitando
conflitos com a Justiça Eleitoral. Qualquer criança de cinco anos é capaz de
perceber que o presidente, a exemplo do seu ídolo Donald Trump, não tem
restrições genuínas à metodologia de apuração dos votos. Não exibiu uma mísera
prova de fraude nas votações eletrônicas. Sua implicância é com os resultados
de uma eleição em que as pesquisas prenunciam sua derrota.
"Com a minha presença, me somando à equipe de seus
ministros e ministras, nós vamos ajudar o Brasil a dar os sinais certos para
onde nós estamos indo", discursou Ciro Nogueira na cerimônia de
sua posse. "O primeiro deles, senhor presidente, e que não tenham
dúvida: a democracia é líquida e certa. Difícil por natureza, mas é a coisa
certa."
O diabo é que, nos pronunciamentos de Bolsonaro, a
democracia que Ciro supõe ser "líquida e certa" é um
regime vaporoso. No comício que se seguiu ao passeio de moto de Florianópolis,
os devotos do capitão entoaram o bordão "eu autorizo", cunhado
pelos bolsonaristas para avalizar a hipótese de uma intervenção militar. Bolsonaro
deu asas ao devaneio: "Zelem por isso, tenham isso como um bem maior
entre nós. Não podemos chegar a esperar daqui a cinco, dez, quinze anos e olhar
para trás e se arrepender daquilo que tinha que ser feito e não foi feito. Nós
faremos tudo pela nossa liberdade, faremos tudo por eleições limpas,
democráticas e com contagem de votos. Eleição fora disso que eu falei: não é
eleição."
Administrador de um gavetão que acumula mais de uma centena
de pedidos de impeachment, Arthur Lira, o réu que foi guindado à
presidência da Câmara com o apoio de Bolsonaro, correu ao Twitter
para anotar: "Neste fim de semana, sejamos ainda mais inspirados pelos
ensinamentos de Aristóteles, Locke e Montesquieu, quando pontificaram sobre o
sistema de freios e contrapesos que formam a separação entre os Poderes."
Numa evidência de que participa de uma coreografia 100% feita de cinismo, Lira
acrescentou: "É como dançar junto, quem sabe até separado, mas sem
pisar no pé de ninguém. Assim é um baile bom, assim é a vida, assim deve ser a
nossa convivência civilizada e sempre democrática, sempre harmônica, sempre
independente."
Lira já havia simulado independência na véspera. Ao anunciar
que levaria ao plenário a proposta sobre o voto impresso —"Pela
tranquilidade das próximas eleições e para que possamos trabalhar em paz até
janeiro de 2023"— o mandachuva do centrão dissera: "O botão
amarelo continua apertado. Segue com a pressão do meu dedo. Estou atento 24
horas. Atento todo tempo. Todo tempo é tempo." Foi uma alusão a outro
pronunciamento, no qual Lira fizera referência à possibilidade de
acionar o "botão amarelo". Algo que foi entendido como uma
referência ao poder que a Constituição confere ao presidente da Câmara de
encaminhar pedidos de impeachment contra o inquilino do Planalto.
Tomado pelas palavras, Arthur Lira parece pilotar a
Câmara como um condutor que vive permanentemente naquela fração de segundo em
que o sinal muda de verde para amarelo. O problema é que Bolsonaro
comete crimes de responsabilidade em série. Atravessa o sinal vermelho
cotidianamente. Num ambiente assim, quem escolhe o momento exato economiza
muito tempo. Mas o dedo de Lira permanece imóvel. Para Lira, o
tempo não existe. Só existe o passar do tempo.
Depois que Bolsonaro entregou a Ciro a chave de sua
Casa Civil, um apetrecho que abre os cofres, os mandarins do Centrão
perderam o medo do ridículo. Simulam apreço pela democracia, mas querem apenas
ocupar o governo, não derrubar o presidente. Nesse ambiente, o Bolsonaro
moderado continuará sendo uma ilusão de ótica.
Sua imoderação é útil para o Centrão. Eleva o preço
do apoio.
Com Josias de Souza