terça-feira, 10 de agosto de 2021

LIRA E O BOTÃO AMARELO


Esvaiu-se no nascedouro a penúltima tentativa de sedar a oratória radioativa de Bolsonaro. A chegada do Centrão ao Planalto, marcada pela posse do senador Ciro Nogueira na chefia da Casa Civil, coincidiu com a explosão de uma crise sem precedentes entre o Executivo e o Legislativo. Coisa jamais vista nos 36 anos que se seguiram à redemocratização do Brasil.

Ao discursar na cerimônia de posse como se quisesse convencer o país de que exerceria na chefia da Casa Civil o papel de "amortecedor" do presidente da República, o senador estava, no fundo, pedindo ao brasileiro que fizesse como ele: se fingisse de bobo pelo bem da democracia.

Ciro sempre soube que o maior excesso que um aliado de Bolsonaro pode cometer é o de moderação. Na Câmara, ao informar que levará ao plenário a proposta sobre voto impresso, já rejeitada na comissão especial que cuidou do tema, o deputado-réu Arthur Lira potencializou a sensação de que o objetivo do Centrão é mesmo o de transformar o Brasil numa nação de bobos coniventes.

Sob refletores, Lira alegou que decidiu ouvir o plenário para colocar um ponto final numa polêmica que já "foi longe demais". Entre quatro paredes, o deputado reconhece que a emenda do voto impresso deve ser rejeitada em termos definitivos. E admite que as crises que o capitão fabrica, por intermináveis, conduzem apenas a dois tipos de ponto: o de exclamação e o de interrogação.

Lira teve a delicadeza de avisar previamente a Bolsonaro sobre os movimentos que realizaria na Câmara. A despeito disso, o presidente manteve a língua em riste no último sábado. De passagem por Florianópolis (SC), reiterou os ataques a ministros do Supremo e voltou a brandir a falsa tese segundo a qual a urna eletrônica sem impressora é inconfiável.

Bolsonaro declarou que seus desafetos querem definir o resultado da sucessão de 2022 "no tapetão", favorecendo o "ladrão de nove dedos", como se refere a Lula. Discursando para devotos que o acompanharam em mais um de seus passeios de motocicleta, vociferou: "Quem decide as eleições são vocês. Não são meia dúzia [de pessoas] dentro de uma sala secreta que vão contar e decidir quem ganhou as eleições. Não vão ser um ou dois ministros do Supremo Tribunal Federal que vão decidir o destino de uma nação."

Dá-se de barato que Bolsonaro não remodelará o discurso diante de um provável revés no plenário da Câmara. Ciro Nogueira e Arthur Lira são correligionários. Ambos pertencem ao PP, partido ao qual Bolsonaro já foi filiado em duas ocasiões.

No período em que conviveram com o capitão no Congresso, os coronéis do Centrão aprenderam que o personagem prefere virar a mesa a sentar-se em torno dela para negociar suas pretensões. Político jeitoso, dono de estilo acomodatício, Ciro disse no discurso de posse na Casa Civil que utilizaria sua vocação amortecedora para "estabilizar" o governo e "diminuir as tensões". Rebatizou-se: "Meu nome é temperança, meu sobrenome tem de ser equilíbrio."

Temperança e equilíbrio são vocábulos que rimam com conciliação. Portanto, são palavras inconciliáveis com Bolsonaro, cujo nome de batismo é conflito e o sobrenome, crise. Horas depois do discurso conciliatório do seu novo chefe da Casa Civil, o presidente ameaçou numa entrevista desobedecer a decisões do STF, agindo fora dos limites das "quatro linhas da Constituição". Algo que levou o presidente da Corte, Luiz Fux, a cancelar encontro pacificador que articulava entre os chefes dos três Poderes.

Nem as almas mais ingênuas supõem que Bolsonaro esteja disposto a deixar de lado sua obsessão pelo voto impresso, evitando conflitos com a Justiça Eleitoral. Qualquer criança de cinco anos é capaz de perceber que o presidente, a exemplo do seu ídolo Donald Trump, não tem restrições genuínas à metodologia de apuração dos votos. Não exibiu uma mísera prova de fraude nas votações eletrônicas. Sua implicância é com os resultados de uma eleição em que as pesquisas prenunciam sua derrota.

"Com a minha presença, me somando à equipe de seus ministros e ministras, nós vamos ajudar o Brasil a dar os sinais certos para onde nós estamos indo", discursou Ciro Nogueira na cerimônia de sua posse. "O primeiro deles, senhor presidente, e que não tenham dúvida: a democracia é líquida e certa. Difícil por natureza, mas é a coisa certa."

O diabo é que, nos pronunciamentos de Bolsonaro, a democracia que Ciro supõe ser "líquida e certa" é um regime vaporoso. No comício que se seguiu ao passeio de moto de Florianópolis, os devotos do capitão entoaram o bordão "eu autorizo", cunhado pelos bolsonaristas para avalizar a hipótese de uma intervenção militar. Bolsonaro deu asas ao devaneio: "Zelem por isso, tenham isso como um bem maior entre nós. Não podemos chegar a esperar daqui a cinco, dez, quinze anos e olhar para trás e se arrepender daquilo que tinha que ser feito e não foi feito. Nós faremos tudo pela nossa liberdade, faremos tudo por eleições limpas, democráticas e com contagem de votos. Eleição fora disso que eu falei: não é eleição."

Administrador de um gavetão que acumula mais de uma centena de pedidos de impeachment, Arthur Lira, o réu que foi guindado à presidência da Câmara com o apoio de Bolsonaro, correu ao Twitter para anotar: "Neste fim de semana, sejamos ainda mais inspirados pelos ensinamentos de Aristóteles, Locke e Montesquieu, quando pontificaram sobre o sistema de freios e contrapesos que formam a separação entre os Poderes." Numa evidência de que participa de uma coreografia 100% feita de cinismo, Lira acrescentou: "É como dançar junto, quem sabe até separado, mas sem pisar no pé de ninguém. Assim é um baile bom, assim é a vida, assim deve ser a nossa convivência civilizada e sempre democrática, sempre harmônica, sempre independente."

Lira já havia simulado independência na véspera. Ao anunciar que levaria ao plenário a proposta sobre o voto impresso —"Pela tranquilidade das próximas eleições e para que possamos trabalhar em paz até janeiro de 2023"— o mandachuva do centrão dissera: "O botão amarelo continua apertado. Segue com a pressão do meu dedo. Estou atento 24 horas. Atento todo tempo. Todo tempo é tempo." Foi uma alusão a outro pronunciamento, no qual Lira fizera referência à possibilidade de acionar o "botão amarelo". Algo que foi entendido como uma referência ao poder que a Constituição confere ao presidente da Câmara de encaminhar pedidos de impeachment contra o inquilino do Planalto.

Tomado pelas palavras, Arthur Lira parece pilotar a Câmara como um condutor que vive permanentemente naquela fração de segundo em que o sinal muda de verde para amarelo. O problema é que Bolsonaro comete crimes de responsabilidade em série. Atravessa o sinal vermelho cotidianamente. Num ambiente assim, quem escolhe o momento exato economiza muito tempo. Mas o dedo de Lira permanece imóvel. Para Lira, o tempo não existe. Só existe o passar do tempo.

Depois que Bolsonaro entregou a Ciro a chave de sua Casa Civil, um apetrecho que abre os cofres, os mandarins do Centrão perderam o medo do ridículo. Simulam apreço pela democracia, mas querem apenas ocupar o governo, não derrubar o presidente. Nesse ambiente, o Bolsonaro moderado continuará sendo uma ilusão de ótica.

Sua imoderação é útil para o Centrão. Eleva o preço do apoio.

Com Josias de Souza