segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O BRASIL DAS BOLSONARICES

 

Até as emas do Alvorada sabem, mas não custa relembrar: no apagar das luzes da última sexta-feira, 20, a mando do excelentíssimo senhor presidente da República, um pedido de impeachment do ministro Alexandre de Morais foi protocolado na presidência do Senado — pelo rito legal, o pedido é protocolado na presidência da Casa e remetido para a secretaria-geral da Mesa para autuação, quando então começa a tramitar como uma petição.

Conforme eu disse às emas — que não sabem ler, daí eu não lhes ter sugerido clicar aqui —, a peça redigida pela AGU (ou será que alguém acha que foi o próprio Bolsonaro quem a escreveu?) foi assinada apenas pelo presidente. Diz-se que para evitar que mais essa bolsonarice respingue na Presidência e para poupar André Mendonça — que foi indicado para a vaga do ex-decano Marco Aurélio Mello no STF.

As emas perguntaram o que teria Mendonça a ver com o peixe, já que ele pediu exoneração da AGU para se dedicar em tempo integral ao périplo do beija-mão e foi substituído por Bruno Bianco. Eu respondi que não sabia. Elas também perguntaram como é possível desvincular o presidente Jair Messias Bolsonaro da Presidência da República. Eu já ia dizer que a Presidência é uma instituição, ao passo que o presidente... aí pensei melhor e respondi que tanto esse quanto muitos outros problemas seriam resolvidos se o inquilino do Palácio do Planalto fosse despejado. 

Observação: O general Carlos Alberto dos Santos Cruz — ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República — rechaçou a tese propagada por Bolsonaro de que "as Forças Armadas são um "poder moderador" e que, portanto, um golpe seria "constitucional" (clique aqui para mais detalhes). "Ele tenta arrastar as Forças Armadas para o jogo político", repudiou o militar, dizendo ainda que o "desfile inoportuno e descabido" e que o uso de blindados pelo presidente foi "político", o que não deveria ter ocorrido. Sobre o impeachment de Jair Bolsonaro, apoiado por 58% da população, o general disse: "Não vejo nenhuma restrição. Se for dentro da lei, que seja feito". E ainda atribuiu ao mandatário "falta de características pessoais de liderança" e "falta de coragem de assumir responsabilidades".

As emas não abriram o bico. Se alguém tiver uma ideia melhor, sou todo ouvidos.

Voltando ao pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, trata-se de parte da promessa feita por Bolsonaro no sábado 14. A outra parte era dispensar a mesma gentileza ao ministro Luís Roberto Barroso, que o capitão passou a ver como inimigo figadal devido à divergência de opiniões acerca de fraude eleitoral, auditabilidade das urna eletrônicas e outras questões. Cumprir promessas nunca foi o forte do presidente — basta cotejar as bandeiras de campanha com o conjunto de sua obra —, mas parece que Barroso não será poupado.

O imbróglio começou depois que o dono da calva mais luzidia da alta cúpula do Judiciário tupiniquim mandou prender Roberto Jefferson, e a filha de Jefferson — a ex-deputada Cristiane Brasil, que já foi presa por suposta participação em esquema de desvio de recursos públicos — cobrou o presidente sobre a detenção do pai: "O bonito aí não faz nada?"

Pouco antes de ser preso, o dono do PTB foi questionado por um aliado sobre o que ele ganhava com toda essa devoção a Jair Bolsonaro — um ingrato, na visão desse aliado. "Na hora certa ele vai dar. Tô aguardando. Falei isso a ele", respondeu Jefferson, que sonha voltar a se eleger deputado federal no Rio e diz esperar o mesmo que o presidente costuma buscar nas frequentes viagens a Santa Catarina. "Lá é onde estão os patrocinadores dele. Aquele rico Oeste (leia-se Chapecó e cercanias), combustível eleitoral". 

Pelo visto, a hora de Bolsonaro pagar o que "deve" chegou.

A mesma lógica que levou Moraes a trancafiar Jefferson justificaria a expedição de uma ordem de prisão contra o ex-deputado e cantor sertanejo Sérgio Reis, que pendurou vídeos radioativos nas redes sociais. Aspirante — assim como o companheiro ora em prisão preventiva — aos palcos de ópera, o eterno Menino da Porteira sentou praça no pelotão dos adeptos de uma intervenção militar com o capitão no comando. Tornou-se uma ordem de prisão esperando para acontecer na fila do inquérito sobre milícias digitais relatado por Moraes no STF. É como se intimasse o ministro a lhe dispensar tratamento igual ao dispensado ao delator do Mensalão.

Alega-se que Reis e Jefferson apenas exerceram o direito constitucional de liberdade de expressão. Que uma República não se faz a partir da definição, pelo Estado, do que pode ou não pode ser dito. Que o próprio inquérito das fake news foi "a volta da censura prévia". 

Para o cientista político e professor Fernando Schüler, a tolerância e a liberdade de expressão nasceram do reconhecimento de que a verdade explodiu. As pessoas passaram a cultivar ideias, deuses e valores diferentes, usando palavras distintas e um jeito de falar muitas vezes insuportável para os outros. Esse mundo confuso requer igualdade na regra, e a ninguém é dado reivindicar autoridade sobre a verdade. Essa é a condição para que o pacto político seja inclusivo e as pessoas se sintam representadas pelas instituições. 

Não há como discordar de Schüler. Talvez devêssemos mesmo parar e pensar um pouco a respeito, ainda que o momento não seja apropriado — há problemas mais importantes a resolver. Convenhamos que o que fizeram Jefferson e Reis vai muito além da "liberdade de expressão". Claro que uma pessoa não só pode como deve se expressar livremente. Mas daí a fazer apologia à desordem e abusar da falta de bom-senso... Em tese, não é justo censurar o comportamento de ninguém. No entanto, o limite da liberdade de expressão é a fronteira com um outro direito. Todos têm total liberdade de externar suas opiniões sobre quem quer que seja, mas se o fizerem de forma difamatória poderão responder pelo crime previsto no art. 139 do Código Penal Brasileiro (voltaremos a esse assunto numa próxima oportunidade).

Bolsonaro aposta no confronto e testa os limites das instituições desde o início de seu mandato. Essa é a essência de sua estratégia política. Foi com ela que ascendeu do baixo clero da Câmara à Presidência da República. Toda vez que se sente ameaçado, ele elege um inimigo de ocasião, parte para o ataque e, com o auxílio de sua milícia digital, mergulha o país na crise da vez. O que muda é o motivo para a briga — que já foi a pandemia, a cloroquina, a CPI, o voto impresso. O penúltimo pretexto foram as decisões de Barroso e Moraes. Logo haverá um outro inimigo real ou imaginário a ser batido. O importante é manter o estado de beligerância e a fantasia segundo a qual o presidente não tem descanso em sua luta contra o sistema.

Fato é que Bolsonaro nunca esteve tão fragilizado como agora. E quanto mais fraco ele fica, mais agressivo se torna. Setores importantes do PIB, que foram determinantes para a sua vitória em 2018, estão desembarcando do governo. Um recente levantamento da XP/Ipespe dá conta de que a reprovação de sua gestão subiu para 54%, enquanto a aprovação caiu para 23%. Bolsonaro perderia até para o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que menos de 2% das pessoas sabem quem é.

O presidente precisa de pelo menos 40% de aprovação para ter chances de ser reeleito. Hoje, ele perde de todos os adversários nas simulações de segundo turno. Segundo o Sensacionalista, o capitão perderia a eleição até para a caneta Bic do entrevistador da XP. Está tão rejeitado que nem sua sombra quer mais andar com ele. Quando os pesquisadores falam "Bolsonaro", as pessoas saem correndo. Ele próprio desconfiou que algo está errado com sua popularidade quando seu pitbull o mordeu — e Carluxo não costuma fazer isso. 

Uma reportagem publicada em VEJA dá conta de que, enquanto Ciro Nogueira e outros aliados tentam costurar um armistício com o Judiciário e o Legislativo, o chefe do Executivo ataca ministros do STF e pressiona parlamentares. Sua tropa de choque nega que ele tenha pretensões golpistas. Dizem que suas declarações de guerra têm por objetivo manter a base de apoio mais fiel arregimentada. Mas não é o que parece (valtaremos também a esse assunto numa próxima oportunidade).

A gaveta do presidente do Senado já guarda 18 petições contra ministros do STF, algumas delas contra mais de uma toga. Alexandre de Moraes é citado 10 vezes; Luís Roberto Barroso, 5. Há até mesmo um pedido para retirar, de uma vez só, todos os integrantes da corte, além de dois pedidos de deposição do procurador-geral Augusto Aras. Todas as petições são 2021 — o número seria bem maior se o senador Davi Alcolumbre não tivesse enviado ao arquivo 36 pedidos de afastamento de togas supremas antes de passar o bastão para Rodrigo Pacheco.

Do ponto de vista prático, o único efeito produzido pela bolsonarice da vez foi a suspensão da sabatina de André Mendonça na CCJ do Senado. Em conversas reservadas na noite da última sexta-feira, Alcolumbre, que preside a Comissão, classificou a decisão do capitão como um "gesto lamentável". Disse tratar-se de uma inciativa inédita na história recente do país, e que não há clima para realizar a sabatina neste momento. 

Pacheco, como bom mineiro, fincou um pé em cada canoa: "Sinceramente não antevejo fundamentos técnicos, jurídicos e políticos para impeachment de ministro do Supremo, como também não antevejo em relação ao presidente da República. (...) Mas cumprirei o meu dever de, no momento certo, fazer as decisões que cabem ao presidente do Senado".

Detalhe: O presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, quer lançar Pacheco candidato da tal terceira via. Os dois já teriam, inclusive, "apertado as mãos". O senador diz que "não é o momento" de pensar na disputa de 2022, mas tampouco descarta a possibilidade. Segundo o portal mineiro O Tempo, seu nome vem ganhando força nos bastidores nacionalmente devido desgaste de Bolsonaro e o desempenho pífio dos outros nomes ventilados. 

A conferir.