Escrever sobre o cenário político tupiniquim é como trocar pneu com o carro em movimento. Magalhães Pinto dizia que política é como nuvem; você olha e ela está de um jeito, olha de novo e ela já mudou. Isso faria sentido em condições normais de temperatura e pressão. Sob o comando de um anormal, a coisa está mais para caleidoscópio, e cada imagem que se forma é mais aterrorizante que a anterior.
A menos que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, restam ao capitão-negação 1 ano 4 meses e 20 dias para levar sua récua de apoiadores ao delírio promovendo motociatas, fomentando aglomerações, vituperando inimigos reais ou imaginários, desdenhando da pandemia, cagando para a CPI do Genocídio e festejando a morte de mais algumas centenas de milhares de vítimas da Covid.
Para Vinicius Mariano de Carvalho, diretor do Brazil Institute da universidade King's College London, no Reino Unido, a blindadociata foi uma "tática de distração" que Bolsonaro usou para mobilizar sua base eleitoral e retirar o foco dos principais problemas do país. "O que estamos vendo são explosões de ações que desviam a atenção daquilo que deve ser olhado. Em um momento, tudo é voltado para cloroquina, em outro momento, tudo é voltado para voto eletrônico. Acho que o que há por trás é uma tática de distração com esses tipos de ações", disse Carvalho em entrevista à BBC News Brasil
Desde que assumiu o posto, o presidente que não governa se dedica a criar factoides para desviar a atenção da mídia de um tema polêmico para outro, buscando evitar o escrutínio sobre questões essenciais, como saúde, educação, redução da pobreza e gestão econômica. Não restam dúvidas de que, se a PEC for derrubada (como de fato foi), outras questões serão levantadas para causar desconforto na condução do trato republicano e manter acirrados os ânimos da escumalha que apoia o governo.
Observação: Nunca é demais lembrar que cão danado a gente não prende, sacrifica, e que carcinoma irreversível a gente extirpa, ou ele vira metástase e mata o paciente.
O presidente da CPI abriu a sessão de ontem com um pronunciamento sobre o inusitado desfile militar ocorrido minutos antes na Esplanada dos Ministérios, "coincidentemente" no mesmo dia da votação da PEC do voto impresso em plenário —por obra e graça do réu que preside a Câmara, já que a proposta foi derrotada na comissão especial por 23 votos a 11.
A votação deveria ter começado às 15h, mas foi adiada para o início da noite. Na avaliação de Aziz, não haverá voto impresso, não haverá nenhum tipo de golpe contra a nossa democracia — as instituições, com Congresso à frente, não deixarão que isso aconteça."
Atualização: Com a presença de 449 deputados, a PEC foi rejeitada por 229 a favor, 218 contra e uma abstenção. Eram necessários 308 votos para que a discussão avançasse. Mas a derrota de Bolsonaro foi mais acachapante do que esses números fazem parecer, pois os 64 ausentes — entre os quais vários parlamentares de legendas governistas — contribuíram para a derrota do governo (na condição de presidente da Câmara, Lira é o único que não vota).
Sobre a blindadociata, a Marinha informou que o evento havia sido planejado antes da agenda para a votação da PEC, não possuindo relação com ela ou qualquer outro ato em curso nos Poderes da República. A afirmação destoa da percepção do deputado Alessandro Molon, líder da oposição na Câmara, que, como muita gente mais, vê na blindadociata "uma clara tentativa do presidente de pressionar o Congresso para aprovar a proposta com base na qual ele espera melar as eleições de 2022".
A inusitada parada militar incluiu uma reverência do general que faz as vezes de ministro da Defesa ao capitão que faz as vezes de "chefe supremo das Forças Armadas", registrou Josias de Souza em sua coluna. E que ficara entendido que Ciro Nogueira, o coronel do Centrão, chegara ao quarto andar do Planalto para "estabilizar" o governo e "diminuir as tensões". E que Arthur Lira, outro coronel do mesmo pelotão, contribuiria para a estabilização encaminhando a polêmica PEC do voto impresso, que "já foi longe demais", para um "ponto final" no plenário da Câmara. A chegada dos blindados à Praça dos Três Poderes no mesmo dia que os deputados escolheram para atravessar uma derrota na traqueia do presidente foi lamentada por Lira como uma "coincidência trágica". De repente, o Centrão virou "amortecedor" de tanques.
Mal comparando, a blindadociata de Bolsonaro tem uma semelhança historiográfica com o Comício da Central, realizado em 13 de março de 1964, diante do Ministério da Guerra. Ali, os blindados pareciam representar o apoio militar ao presidente de esquerda João Goulart. Agora, representariam o aval da farda ao regime civil mais militar da história. Dono de uma genialidade que sumiu do cenário político, Carlos Lacerda chamou a manifestação realizada há 57 anos de "Comício das Lavadeiras". Ao explicar-se, disse que só havia no ato "tanques e trouxas". Dias depois, os tanques começaram a prender os trouxas.
Com a popularidade em declínio e submetido a um cerco
judicial que aguça os seus maus bofes, Bolsonaro coloca os blindados na
rua com a mesma naturalidade com que retira a motocicleta da garagem. Submetido
a uma chiadeira, o capitão convida presidentes dos tribunais superiores e
congressistas para a ostentação militar.
Partidos de oposição foram ao STF para
tentar barrar o desfile de blindados, "particularmente nas adjacências do
Palácio do Congresso Nacional". A encrenca aterrissou na mesa do ministro Dias
Toffoli — dado a confraternizações com a famiglia Bolsonaro —, que indeferiu
o mandado de segurança sob o argumento de que a autoridade organizadora do
desfile é o comandante da Marinha, não o presidente da República, e a
competência para julgar e processar comandantes militares é do STJ.
A paisagem é um hábito visual. Só começa a existir depois de
1.500 olhares, dizia o cronista Nelson Rodrigues. Pois Bolsonaro
injeta anomalias em série na paisagem enquanto pisa na democracia, distraído.
Só os trouxas ainda não perceberam que passa da hora de lavar a roupa suja.