No post do dia 17 de outubro de 2018 eu anotei que "A
oportunidade de escolher um candidato 'mais ao centro do espectro
político-partidário' se perdeu no último dia 7. Agora não adianta chorar.
Resta-nos o Capitão Caverna ou o fantoche do presidiário de Curitiba — o pior
dos cenários, sem dúvida, mas previsível à luz da crescente polarização do
eleitorado. Não sei o que esperar de Bolsonaro na presidência, mas
sei como foi ter o PT no poder. No mais das vezes, é melhor ficarmos com o
diabo que conhecemos, mas toda regra tem exceção, e a eleição do próximo dia 28
me parece ser uma situação excepcional."
A eleição daquele dia 28 foi, de fato,
"excepcional". Como excepcionais foram os resultados que ela produziu
— e continua produzindo. Pudessem ser responsabilizados criminalmente os
eleitores despirocados que contribuíram para essa tragédia (falo daqueles que
eliminaram, no primeiro turno, juntamente com o pavoroso
elenco de filme de terror travestido de postulantes à Presidência, duas ou três
opções menos "surreais" do que a parelha remanescente), deveriam ser enquadrados em algum tipo de delictum continuatum.
Trata-se de uma figura de retórica, naturalmente. A récua de muares cometeu a burrada uma única vez (há risco real de reprise no ano que vem, mas isso é outra conversa), e o crime continuado se caracteriza quando o agente, mediante mais de uma ação e omissão, comete dois ou mais crimes da mesma espécie, e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro. No bom português do asfalto, é preciso que haja: 1) mais de um crime da mesma espécie; 2) mais de uma ação; e 3) necessidade de que os crimes posteriores, levando-se em consideração as condições de tempo, lugar, maneira de execução, dentre outros, sejam considerados como uma continuação do primeiro crime.
Outros atos praticadas por outros atores dessa tragicomédia se enquadrariam melhor na definição retrocitada. Até porque a pilha de cadáveres produzidos pela Covid desde o início da pandemia continua crescendo; dia sim, noutro também, quase mil corpos se juntam ao monte, perfazendo um total de quase 600 mil. Segundo um boletim da Fiocruz — que foi um parto para eu conseguir acessar —, dois pesquisadores que depuseram na CPI do Genocídio apresentaram estudos diferentes com idêntica conclusão: a maior parte das mortes por Covid no país poderia ter sido evitada, ainda antes da disponibilidade de vacinas no mercado internacional, se o Brasil tivesse adotado medidas de controle da transmissão do vírus.
Para economizar tempo e espaço, relembro apenas o que disse o epidemiologista
Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas: “O
brasileiro tem noção do tamanho da tragédia, perdeu familiares e amigos, mas
não consegue entender ainda que boa parte das mortes não precisariam ter
acontecido”. Em um dos cálculos entregues à Comissão, pelo menos 400 mil
dos então 507 mil óbitos não teriam acontecido se o Brasil estivesse na média
mundial de mortalidade pelo novo coronavírus.
Observação: A microbiologista Natália Pasternak,
citando o estudo coordenado por Hallal, disse que 3
de cada 4 óbitos poderiam ter sido evitados se houvesse políticas como
testagem em massa, rastreamento e isolamento social; investimento em vacinação
ao invés de tratamento precoce; além de uma campanha única de conscientização
das medidas não farmacológicas, como uso da máscara, higienização das mãos e
distanciamento social.
Enfim, grupos de Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de
Janeiro e São Paulo, entre outros, já se mobilizam para as viagens com destino
a Brasília (Esplanada dos Ministérios) e à capital paulista (Avenida Paulista),
onde o "mito" prometeu discursar no feriado da Independência. O caríssimo
leitor (ou a caríssima leitora) já reservou seu camarote?
Isso faz lembrar que, em 2018, na véspera do feriado de 7 de setembro, durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG), o Messias que não miracula foi alvo de um atentado que quase o matou, mas lhe serviu de pretexto para não comparecer aos debates promovidos pelas emissoras de TV, evitando que a oratória populista-demagógica de Ciro Gomes reduzisse pó suas chances de disputar o segundo turno. Curiosamente, embora fosse um garçom desempregado que não tinha um gato morto para puxar pelo rabo, Adélio Bispo de Oliveira, o esfaqueador despirocado, foi prontamente assistido pelo que havia de melhor no âmbito da advocacia criminal.
Observação: Em novembro do ano passado, o lunático que não come merda nem rasga dinheiro, mas foi diagnosticado como portador de transtorno delirante e considerando inimputável pela Justiça, disse à PF que não se arrepende do ataque, que atribui a um "chamado de Deus". Segundo ele, o presidente é um ‘impostor’. “Ele [Bolsonaro] se tentou passar como um homem, digamos assim, na linguagem popular, um homem de Deus. Aí veio uma revista com um deles que fala que o Bolsonaro é católico, embora foi batizado no Rio Jordão pelo Everaldo, pastor Everaldo. Muitos evangélicos acreditavam que ele fosse evangélico. Ele tentou plantar essa imagem que fosse evangélica, mas não era. Ele é um impostor. Meramente um impostor. Para tentar se apropriar do voto do meio protestante”. E mais: “Quando ele [Deus] disse [para matar Bolsonaro], eu fiquei até surpreso. Na política, o que eu tinha interesse mesmo era o Michel Temer. Esse eu tinha interesse”.
Voltando pelo rio do tempo até a ilha do presente, já existe intensa movimentação de apoiadores de Bolsonaro para divulgar as caravanas nas redes sociais. Os anúncios são compartilhados em grupos de WhatsApp formados por defensores do presidente, assim como em comunidades do Facebook, com o mesmo propósito. Lideranças políticas locais, em municípios pelo Brasil, também participam da organização das caravanas.
Segundo o Estadão, em meio às dúvidas no mundo político se parte das Forças Armadas estaria disposta a aderir a uma ruptura institucional, o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, afirmou nesta quarta-feira, 25, que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica estão "sempre prontas a cumprir a missão delegada pelos brasileiros na Carta Magna", além de destacar que as FFAA têm como comandante supremo o presidente da República e que também são dirigidas pelo ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Eis aí uma tempestade perfeita.
Falando em tempestades perfeitas, foi assim que Josias de
Souza classificou a situação que nosso indômito mandatário vem enfrentando ultimamente.
Pela terceira semana consecutiva, disse o jornalista, o noticiário foi sacudido
por decisões tomadas por Moraes no âmbito do inquérito das fake news.
Na primeira semana do mês, o capitão foi empurrado para dentro do inquérito por
mentir sobre urnas eletrônicas; na segunda, o bolsonarista Roberto Jefferson
foi enviado para a cadeia; a terceira, que começou com uma decisão do TSE
que bloqueou a remuneração de sites bolsonaristas que difundem ódio e mentiras
na internet, terminou com visitas dos rapazes da PF a 29 endereços —
entre eles os do cantor sertanejo Sergio Reis e do deputado bolsonarista
"no úrtimo" Otoni de Paula.
A escalada do Judiciário na direção de Bolsonaro
e do Bolsonarismo azedou a retórica do presidente — que cumpriu apenas
metade da ameaça feita no final de semana passada, abstendo-se de pedir o
impeachment de Barroso e concentrando-se, por ora, em Moraes. Mas
saiu-se o capitão com a novidade de uma novidade interessante: acionar o STF
pedindo que a Corte suprima um artigo de seu próprio regimento interno que lhe
permite de investigações ex officio — isto é, sem passar pela PGR.
O pedido de afastamento de Moraes tem como destino o
gavetão do presidente do Senado. A ação judicial contra o artigo do regimento do
STF é natimorta — servindo, se tanto, para animar os devotos do capitão
nas redes sociais e frustrar os órfãos da Velhinha de Taubaté, que
acreditaram na possibilidade de restabelecimento do diálogo entre o Executivo
e o Judiciário (a menos que por "diálogo" entenda-se o chefe do Executivo chamar o presidente
do TSE de "filho da puta").
Contra esse pano de fundo conturbado, deteriora-se a
situação econômica. Zonzo, o ministro Paulo Guedes (alguém ainda se
lembra do Posto Ipiranga do capitão?) rala sem sucesso para destravar
sua pauta na Câmara, enquanto as contas públicas se deterioram, a inflação foge
ao controle, os juros sobem, as previsões de crescimento declinam e a atmosfera
de ruptura institucional afasta os melhores investidores. A ficha do mercado
financeiro parece cair. A de Bolsonaro, não. Agosto ainda nem acabou e o
presidente já planeja as encrencas do próximo mês.
Bolsonaro revela-se capaz de tudo, exceto de
desperdiçar um naco do seu tempo com atividades, digamos, mais produtivas. Nem
mesmo os desgostos de agosto conseguem pôr para trabalhar gente que nunca
trabalhou.