Há quem tenha mais medo do ridículo que da morte. No campo
simbólico, a morte como sinônimo de derrota pode provocar temor nos que fogem
do ridículo como o diabo da cruz. Não é o caso de Jair Bolsonaro, cuja
trajetória desde antes e, sobretudo, na Presidência desenha um personagem
destemido ante o escárnio.
Foi assim quando se expôs à zombaria geral ao abordar o tema
“golden shower” nos primeiros acordes do uso da internet como instrumento de
interlocução presidencial com a sociedade. Tem sido assim ao longo do mandato.
Incumbência esta que ele submeteu a elevado grau de caçoada nacional e
internacional no dia da votação da emenda constitucional do voto impresso, com
a promoção de um passeio de artefatos bélicos Brasília afora.
Ali Bolsonaro mostrou que o juízo sobre o caráter
patético da cena não lhe causava desconforto. Mais importante seria criar uma
distração que reduzisse os efeitos e dividisse espaço nos meios de comunicação
com a anunciada derrota no Congresso Nacional. Um truque gasto, mas o único ao
alcance da limitação política natural em gente de formação militar, mas
espantoso em alguém com 28 anos de atividade parlamentar nas costas.
Obviamente, não deu certo e o que o presidente conseguiu, ao
contrário do que prometia em relação às alegadas fraudes oriundas do voto
eletrônico, foi apresentar provas contundentes de seu isolamento crescente. A
ausência dos presidentes da Câmara e do Senado no alto da rampa do Planalto foi
significativa naquela terça-feira (10/8) de produção de vários recados que
deixariam em alerta qualquer pessoa normal.
Arthur Lira, superaliado, prócer de partido alçado à
condição de “alma do governo”, não compareceu alegando que estava reunido com
líderes partidários. Como se dissesse ter mais a fazer que participar de
alegorias sem sentido. Horas depois, a Câmara mostraria com seus 229 a favor do
voto impresso (seriam necessários 308) que o governo não tem base fiel nem
mesmo para assegurar os 257 votos de maioria simples para aprovação de projetos
de lei.
Na Casa ao lado, o senador Rodrigo Pacheco fazia
defesa dos preceitos democráticos, alertando sobre a necessidade de não se
“supervalorizar o que não deve ser valorizado”. Ou seja, na visão dele,
conviria rebaixar o valor das manifestações presidenciais. E não foi só isso
que se passou naquele dia no Senado.
Na CPI da Covid, às manifestações de protesto da
cúpula oposicionista juntou-se o apoio (ressalvado o calibre do tom empregado)
do líder do governo, Fernando Bezerra. Dali a pouco os senadores
aprovariam em plenário a substituição da Lei de Segurança Nacional por uma
legislação que, entre outros quesitos, inclui no rol dos crimes contra o estado
de direito a perturbação à realização de eleições e/ou aos seus resultados. Soa
familiar?
Pois é, guarda total familiaridade com as investidas do
presidente contra o sistema eletrônico, na intenção — já se detectou com
precisão — não de imprimir confiabilidade, mas de inocular desconfiança em
relação aos resultados eleitorais de 2022. Venham eles a aplicar derrota ao
presidente ou até vitória por margem considerada por ele insatisfatória,
conforme faz em relação ao pleito de 2018, que diz ter vencido no primeiro
turno.
Bolsonaro é tão, digamos, diferente que não é
impossível que realmente veja como vitórias a derrota na Câmara, as enquadradas
recentes recebidas da Justiça, o distanciamento de aliados, os sinais de
desagrado emitidos por militares, o posicionamento veemente do PIB econômico,
social, político e cultural da sociedade.
Transita pelas adversidades que o cercam ao molde de um
corredor polonês, impávido como se convicto de enxergar aí a chance de voltar a
se apresentar ao eleitorado como a grande vítima a ser salva das garras do
“sistema”. O problema para Bolsonaro é a redução significativa do
contingente disposto a cair de novo nessa conversa.
Indisposição decorrente da vocação dele para a briga. E
nessa incorrigível aversão ao diálogo é que pode se abrir caminho para um
esforço de entendimento entre as forças políticas (formais e informais)
interessadas no ponto de convergência da defesa intransigente pela retomada da
normalidade institucional.
Os divergentes já se uniram outras vezes em que a agressão à
democracia não era só uma ameaça. Podem fazê-lo de novo diante de um agressor
cuja força exibe consistência de puro vento.
Texto de Dora Kramer