segunda-feira, 16 de agosto de 2021

VOZ AO VENTO

 

Há quem tenha mais medo do ridículo que da morte. No campo simbólico, a morte como sinônimo de derrota pode provocar temor nos que fogem do ridículo como o diabo da cruz. Não é o caso de Jair Bolsonaro, cuja trajetória desde antes e, sobretudo, na Presidência desenha um personagem destemido ante o escárnio.

Foi assim quando se expôs à zombaria geral ao abordar o tema “golden shower” nos primeiros acordes do uso da internet como instrumento de interlocução presidencial com a sociedade. Tem sido assim ao longo do mandato. Incumbência esta que ele submeteu a elevado grau de caçoada nacional e internacional no dia da votação da emenda constitucional do voto impresso, com a promoção de um passeio de artefatos bélicos Brasília afora.

Ali Bolsonaro mostrou que o juízo sobre o caráter patético da cena não lhe causava desconforto. Mais importante seria criar uma distração que reduzisse os efeitos e dividisse espaço nos meios de comunicação com a anunciada derrota no Congresso Nacional. Um truque gasto, mas o único ao alcance da limitação política natural em gente de formação militar, mas espantoso em alguém com 28 anos de atividade parlamentar nas costas.

Obviamente, não deu certo e o que o presidente conseguiu, ao contrário do que prometia em relação às alegadas fraudes oriundas do voto eletrônico, foi apresentar provas contundentes de seu isolamento crescente. A ausência dos presidentes da Câmara e do Senado no alto da rampa do Planalto foi significativa naquela terça-feira (10/8) de produção de vários recados que deixariam em alerta qualquer pessoa normal.

Arthur Lira, superaliado, prócer de partido alçado à condição de “alma do governo”, não compareceu alegando que estava reunido com líderes partidários. Como se dissesse ter mais a fazer que participar de alegorias sem sentido. Horas depois, a Câmara mostraria com seus 229 a favor do voto impresso (seriam necessários 308) que o governo não tem base fiel nem mesmo para assegurar os 257 votos de maioria simples para aprovação de projetos de lei.

Na Casa ao lado, o senador Rodrigo Pacheco fazia defesa dos preceitos democráticos, alertando sobre a necessidade de não se “supervalorizar o que não deve ser valorizado”. Ou seja, na visão dele, conviria rebaixar o valor das manifestações presidenciais. E não foi só isso que se passou naquele dia no Senado.

Na CPI da Covid, às manifestações de protesto da cúpula oposicionista juntou-se o apoio (ressalvado o calibre do tom empregado) do líder do governo, Fernando Bezerra. Dali a pouco os senadores aprovariam em plenário a substituição da Lei de Segurança Nacional por uma legislação que, entre outros quesitos, inclui no rol dos crimes contra o estado de direito a perturbação à realização de eleições e/ou aos seus resultados. Soa familiar?

Pois é, guarda total familiaridade com as investidas do presidente contra o sistema eletrônico, na intenção — já se detectou com precisão — não de imprimir confiabilidade, mas de inocular desconfiança em relação aos resultados eleitorais de 2022. Venham eles a aplicar derrota ao presidente ou até vitória por margem considerada por ele insatisfatória, conforme faz em relação ao pleito de 2018, que diz ter vencido no primeiro turno.

Bolsonaro é tão, digamos, diferente que não é impossível que realmente veja como vitórias a derrota na Câmara, as enquadradas recentes recebidas da Justiça, o distanciamento de aliados, os sinais de desagrado emitidos por militares, o posicionamento veemente do PIB econômico, social, político e cultural da sociedade.

Transita pelas adversidades que o cercam ao molde de um corredor polonês, impávido como se convicto de enxergar aí a chance de voltar a se apresentar ao eleitorado como a grande vítima a ser salva das garras do “sistema”. O problema para Bolsonaro é a redução significativa do contingente disposto a cair de novo nessa conversa.

Indisposição decorrente da vocação dele para a briga. E nessa incorrigível aversão ao diálogo é que pode se abrir caminho para um esforço de entendimento entre as forças políticas (formais e informais) interessadas no ponto de convergência da defesa intransigente pela retomada da normalidade institucional.

Os divergentes já se uniram outras vezes em que a agressão à democracia não era só uma ameaça. Podem fazê-lo de novo diante de um agressor cuja força exibe consistência de puro vento.

Texto de Dora Kramer