No último domingo, 26, Jair Mefistófeles Bolsonaro completou sua milésima primeira noite frente à chefia do Executivo tupiniquim. Inevitáveis são as alusões ao clássico da literatura mundial com a dramática situação do país após quase trinta e três meses de vigência do bolsonarismo boçal. O que me faz lembrar...
Nas
1001 Noites, o sultão Xariar
condena à morte a esposa Xazaman, que lhe enfeitou a testa com um
vistoso par de chifres, e a partir de então desposa uma jovem diferente a cada
noite e a manda para o cadafalso ao nascer do sol. Decidida a pôr fim a esse
ciclo vingativo, a filha do grão-vizir se oferece para a noite seguinte, que se
multiplica, assim como as histórias que ela conta ao marido, adiando
indefinidamente a própria execução. Passadas mil e uma noites, o califa se
apaixona pela envolvente Sherazade e suspende a ordem cruel.
Durante as mil e uma noites do bolsonarismo no Brasil, mais
de 595 mil inocentes foram sacrificados pela interseção entre a Covid e o
governo federal, a economia nacional foi absolutamente devastada e o país virou
motivo de chacota junto à sociedade internacional. Xariar encontrou Sherazade,
mas nada sugere que a história protagonizada por Bolsonaro, sua família
e séquito de lunáticos tenha um final feliz.
Após a farra que viveram ao longo dos últimos trinta anos
parasitando o erário brasileiro, mas, sobretudo e de forma ainda mais enfática,
considerando as vidas de inocentes que foram sacrificadas durante as mil e uma
noites do bolsonarismo no governo federal, o cerco se fecha e as consequências
dos atos se aproximam. Somente nos últimos dias, Carlos Bolsonaro, que
já não possui foro privilegiado, foi qualificado como "chefe de
organização criminosa" por um juiz da 1ª Vara Criminal
Especializada do TJ-RJ, que identificou "indícios rotundos de
atividade criminosa em regime organizado" cometidos pelo pitbull do
papai.
Para além disso, a Anistia Internacional listou
trinta e duas violações de direitos humanos e retrocessos durante as mil e uma
noites do governo Bolsonaro, líderes mundiais avacalharam o mandatário
de festim de uma forma jamais vista, e o escândalo do caso Prevent Senior
demonstrou a real profundidade da degradação moral do bolsonarismo e das
figuras envolvidas com esse movimento.
A CPI do Genocídio prepara seu golpe final e uma
denúncia que deverá ser apresentada junto a cortes internacionais para imputar
ao capitão e membros de seu gabinete a prática de crimes contra a humanidade
durante os mil dias de governo. Nesse contexto, a postura "menos
ofensiva", digamos assim, do presidente nos últimos tempos não decorre de ele
se ter encantado pelas histórias de Sherazade, mas de ter se dado conta
de que o fim de sua história não será doce e romântico como os dos contos
árabes, persas e indianos.
Da feita que testou negativo para a Covid, o presidente
poderá levar adiante a série de eventos e inaugurações com que pretende
comemorar os 1.000 dia de governo, mas resta saber o que há para comemorar. Na
semana passada, durante seu discurso de abertura da 76ª Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas, sua insolência apresentou aos demais chefes
de Estado um Brasil que ombreia com as melhores economias emergentes do
planeta, esquecendo-se de avisar que o país em questão só existe em seus
devaneios e delírios.
Só mesmo idiotas de quatro costados poderiam achar que os
três primeiros anos da gestão do "mito" foram excepcionais e que o
governo tem o que celebrar. Para a população em geral, as comemorações se
resumem a um banho rápido com as luzes apagadas.
Durante a campanha o então candidato do PSL prometeu apoiar
incondicionalmente a Lava-Jato e resgatar as dez medidas de combate à
corrupção; propor o fim da reeleição, o enxugamento máquina pública e a
privatização de estatais. Entre outras falácias, vale destacar também as promessas
de nomear ministros com base em critérios técnicos, defender a liberdade
de imprensa, reduzir a carga tributária, pôr fim à progressão de pena e à
saída temporária de presos, acabar com as indicações políticas em
geral e ao Ministério da Saúde em particular e — agora a cereja do
bolo — não trocar cargos e verbas por apoio parlamentar.
A ânsia pela reeleição não contribuiu em nada para a
estabilidade e a previsibilidade que os agentes econômicos desejam. As
consequências são a queda da Bolsa, a alta do dólar, a inflação ascendente, os
juros futuros subindo, a fuga de capitais, os investimentos postergados e o
desemprego. As crises institucional, econômica e social estão entrelaçadas. As privatizações,
reformas, cortes de subsídios e outras medidas aguardadas pelo mercado caminham
a passos lentos (isso quando caminham), e não faltam incertezas geradas pelo
comportamento permanentemente conflituoso do próprio presidente com os outros
Poderes.
O cenário político tem se mostrado desfavorável ao projeto
de reeleição — confirmado na entrevista que concedeu à revista Veja, que
circula desde a última sexta-feira — que Bolsonaro acalenta desde a
posse na Presidência. Sua opção de não descer do palanque custou-lhe caro em
termos de popularidade.
Pesquisas apontam que a reprovação do governo ultrapassa a
marca dos 50 pontos percentuais: enquanto o índice de pessoas que avaliam a
gestão Bolsonaro como boa ou ótima é de 26,9%, as que a consideram ruim
ou péssima somam 50,3%. E há uma tendência clara de piora na imagem do
morubixaba de festim. Mas o califa do Bolsonaristão vai a Teixeira de Freitas, na Bahia, para inaugurar... 10 km de asfalto.
Observação: O governo vai às ruas nessa semana, na qual se completam mil dias da administração Jair Bolsonaro, para fazer uma série de entregas todos os dias da semana. Hoje, por exemplo, já está confirmado que 12 ministros deixarão Brasília. Isso representa metade do governo. O presidente Bolsonaro vai à Bahia pela manhã para inaugurar pouco mais de 10 quilômetros de duplicação de estradas. Serão 5,4 quilômetros de duplicação na BR-116 e mais cinco quilômetros na BR-101. Depois, segue para Alagoas à tarde. Amanhã, quando o presidente estará em Roraima, serão 10 ministros fora de Brasília
Nos bastidores do poder, em Brasília, crescem rumores de que
Bolsonaro pode desistir de concorrer à reeleição para disputar uma
cadeira na Câmara ou no Senado. Seria um plano B para o caso de
avaliações internas apontarem que ele não teria condições de passar para o
segundo turno da disputa. A estratégia visaria manter a prerrogativa de foro privilegiado
— o presidente é investigado em cinco inquéritos no STF e no TSE,
sendo que dois deles se referem às ameaças feitas à realização das próximas
eleições.
Um parlamentar do Centrão confirmou reservadamente ao
Correio Brasiliense que têm sido frequentes os relatos de que Bolsonaro
pode vir a desistir de concorrer à reeleição, mas diz não acreditar que o bloco
político venha a abandonar o governo: “O Centrão não vai desembarcar de
ninguém. O Centrão vai no velório, carrega o caixão no cortejo, chora na beira
da cova, mas não pula para dentro do caixão. Então, o Centrão, e eu estou
dizendo isso inclusive no meu partido, vai ficar no governo até os 45 minutos
do segundo tempo. Porque depende muito dessa relação fisiológica do poder, de
cargos, emendas”.
Vale destacar que as marafonas do Congresso dormiram no
governo Dilma e acordaram no governo Temer. Em julho, durante
conversa com apoiadores no chiqueirinho defronte o Alvorada, Bolsonaro
admitiu que poderia não disputar a reeleição: “Entrego a faixa para
qualquer um, se eu disputar a eleição”, disse ele na ocasião.
O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, afirma
que a decisão de concorrer a uma eleição é de caráter personalíssimo para qualquer
político, mas avalia que Bolsonaro está cada vez mais inviável
eleitoralmente. “Acho que está dentro de uma tempestade perfeita do ponto
de vista eleitoral. Os índices de popularidade dele são cada vez menores. Ele
não tem um partido até agora para disputar a eleição e parece absolutamente
incapaz de desmontar essa bomba, que é a crise econômica hoje. Desemprego alto,
fome alta, inflação alta, juros altos e uma pandemia que ainda não acabou.
Então, eu acho muito difícil ele se viabilizar eleitoralmente, em meio a essa
tempestade perfeita”.
O cientista político André Pereira César, da Hold
Assessoria Legislativa, diz que as versões sobre uma possível desistência
de Bolsonaro começaram antes mesmo da declaração feita pelo chefe do
Executivo a apoiadores em julho. “Esses relatos já vêm circulando há um
bom tempo. Parlamentares com os quais tenho conversado dizem que, até mesmo
internamente, na cúpula do governo, a avaliação é de que Bolsonaro hoje é um
candidato disfuncional, não competitivo para chegar com força em 2022”.
Caso Bolsonaro saia mesmo do páreo, haverá uma grande
reviravolta na correlação de forças políticas, com um possível crescimento
de pré-candidatos de centro nas pesquisas de intenção de voto,
beneficiados, principalmente, pelo antipetismo — que ainda é forte entre um
segmento de eleitores conservadores.