Às vésperas da leitura e votação do relatório final da CPI, Bolsonaro tricota uma estratégia para reagir à acusação por cerca de dez crimes (o documento, que já tem mais de mil páginas, deve sofrer alterações propostas por senadores da base do governo e pelo G7, de modo que o número de infrações penais atribuídas ao capetão ainda pode mudar).
No campo jurídico, a AGU deve se antecipar
à avaliação do procurador que não procura enviando à PGR uma
petição que questiona a constitucionalidade do relatório da Comissão. Na arena
política, o Sultão no Bolsonaristão deve intensificar os ataques a Renan
Calheiros, seja conspurcando a idoneidade do relator, seja sustentando que
ele atuou na CPI a serviço da candidatura presidencial de Lula.
As duas linhas de defesa são frágeis. Aras tem uma
vocação inata para arquivar acusações contra Bolsonaro (donde sua recondução
ao cargo), mas terá de encontrar justificativa mais criativa se não
quiser ser acusado de prevaricação. Já a biografia de Renan, eivada
de processos criminais, não o recomenda, mas o que dizer da vida pregressa do
também senador Fernando Bezerra, líder do governo na Casa, que foi indiciado
pela PF, juntamente com o filho, sob a acusação de receber
de R$ 10,4 milhões em propina quando era ministro do
governo petista da gerentona de araque? Ou do deputado Ricardo Barros,
líder
do governo na Câmara, cujo nome dispensa maiores apresentações?
Ninguém ignora os vínculos de Renan com Lula,
mas apontar a simpatia do senador alagoano pela candidatura do criminoso
pernambucano não apaga os malfeitos e perversões colecionados durante a
investigação parlamentar. Bolsonaro, associado a acusações sólidas —
trocar ciência por ficção científica, espalhar mentiras, desperdiçar verbas com
falsas soluções, incitar a prática de crimes, negligenciar cuidados sanitários
óbvios, receitar poções mágicas, retardar a compra de vacinas, estimular o
contágio do vírus, ignorar avisos sobre corrupção —, teve a biografia é
convertida em prontuário. Fosse o Brasil um país sério, não um arremedo de banânia,
esses crimes renderiam mais de 80 anos de cadeia ao verdugo do
Planalto.
Sobre o indiciamento do "mito", o filho do pai, Flávio
"Rachadinha" Bolsonaro, disse que o presidente deu uma sonora gargalhada,
e o pai do filho, que não tem culpa
de nada. Mas nada é uma palavra que ultrapassa tudo, e o
morubixaba de fancaria que se meteu a pajé não dispõe de um tratamento
precoce capaz de eliminar a infecção que envia sua reputação à UTI.
O problema é que o acordo do grupo hegemônico livra a CPI do
vexame, mas não assegura a punição do presidente. Na prática, a Comissão
transfere a batata quente para os dois cúmplices de Bolsonaro, chefes do
departamento de blindagens da República. Lira já esclareceu
que não cogita de abrir o gavetão em que esconde quase 140 pedidos de impeachment,
e ainda que Aras se animasse a abrir investigações
cenográficas contra o presidente, os processos se arrastariam pelo ano
eleitoral de 2022 sem um desfecho.
O eleitor brasileiro dispõe da possibilidade de fazer
justiça com o próprio dedo, demonstrando a na urna que os crimes da calamidade
em forma de gente versão 2.0 (a anterior atendia por Dilma Vana Rousseff)
não passarão à história como uma gripezinha. As pesquisas demonstram que um
pedaço do eleitorado não está disposto a fechar os olhos para o negacionismo, a
protelação na compra de vacinas, o kit das poções mágicas, a aposta no contágio
coletivo, o desprezo às precauções sanitárias, a picaretagem do mercado
paralelo de imunizantes e toda a engrenagem de ações e omissões que adicionaram
horror e morte a uma pandemia que levou mais de 605 mil brasileiros à cova.
Numa em entrevista concedida à rádio Jovem Pan em
abril de 2019, quando seu governo acabara de completar 100 dias, o Bolsonaro declarou
que "a reeleição causou uma desgraça no Brasil", pois há
prefeito, governador e até presidente que "se endivida, faz
barbaridade, dá cambalhota, faz acordo com quem não interessa para conseguir
apoio político." Soou categórico: "A reeleição é péssima no Brasil".
Decorridos dois anos e meio, com
o teto furado e o governo no telhado, o presidente confirma a profecia.
Obcecado pela reeleição, o dublê de presidente e eterno candidato
entrou na fase da barbaridade e da cambalhota. Rendido aos caciques do Centrão,
sua insolência utiliza a fome dos pobres como álibi para exterminar os últimos
resquícios de responsabilidade fiscal. Paulo Guedes, cuja coluna
vertebral já estava arqueada, acocorou-se, e os principais assessores do
Ministério da Economia bateram em retirada.
Com o Tesouro em ruínas, Bolsonaro articulou
com os coronéis do Centrão uma megapedalada orçamentária que
permitirá gastar R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022. Para
chegar a essa cifra, despesas extraordinárias serão acomodadas sobre uma laje
acima do teto de gastos. E dívidas judiciais irrecorríveis serão enfiadas
dentro do armário. Alega-se que a pandemia tornou incontornável o reforço
do Bolsa Família, que passará de R$ 189 para R$
400. Verdade. O problema é que Bolsonaro prometia há mais
de um ano colocar em pé um novo programa de renda mínima, para a fase
pós-auxílio emergencial.
Em troca do vale-Covid, que deixa de ser pago no
final desta semana, Bolsonaro, que poderia socorrer os famintos cortando
os R$ 17 bi de auxílio-Centrão e passando na lâmina R$ 371 bi
em isenções tributárias e nacos
dos R$ 83 bilhões que servirão para satisfazer o apetite
pantagruélico de parlamentares por emendas secretas e verbas eleitorais, opta
pela cambalhota fiscal para oferece uma empulhação eleitoreira batizada de Auxílio
Brasil — que, devido à barbaridade orçamentária, será mastigada pela inflação
antes mesmo de ser formalizado.
Confirma-se uma outra previsão que Bolsonaro fez
em março do ano passado, quando a pandemia da "gripezinha" chegou ao
Brasil: "Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se acabar a economia,
acaba qualquer governo. Acaba o meu governo." Ao encostar uma dezena
de crimes no prontuário do capetão despirocado, a CPI encurtou um
pouco mais sua margem de manobra, estimulando o malabarismo.
Bolsonaro continua atribuindo a derrocada econômica à
política do "fique em casa", que os governadores foram
compelidos a adotar para combater a proliferação do coronavírus. A Comissão reforçou
a percepção de que, se tivesse combinado sua alegada preocupação econômica com
uma noção qualquer de responsabilidade sanitária, talvez tivesse mentido menos
e comprado vacinas mais rapidamente.
Consolida-se também a migração de Paulo Guedes do
posto de comandante da Economia para o de coordenador do comitê de campanha.
Na folclórica
reunião ministerial de abril de 2020, o posto Ipiranga avisou:
"Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais,
precisamos eleger o presidente." Há cinco meses, numa entrevista à Folha,
o superministro de festim declarou que seu ministério jogou na defesa nos três
primeiros anos do governo. Anunciou: "Agora, vamos para o ataque".
Numa animação que não ornava com a ruína, Guedes
lançou propostas ao vento: um Bolsa Família anabolizado, Bônus
de Inclusão Produtiva, Bônus de Incentivo à Qualificação...
Nessa mesma entrevista, ele admitiu que sua agenda liberal encolheu. Disse que
"o grau de adesão do presidente à agenda econômica" caiu de
99% para 65%. O que espanta não é a dificuldade do ministro de reconhecer que o
chefe nunca aderiu ao seu liberalismo, mas a conversão do PhD de Chicago ao
populismo autodidata de Bolsonaro e dos bacharéis do Centrão.
Será desafiador aturar os 430 dias que faltam para o fim desta
desditosa gestão convivendo com um presidente sem projeto, sem partido e sem
ministro da Economia, onde o Centrão explodiu o Posto Ipiranga e invadiu
o cofre. O país perdeu o chão. O fundo do poço passou a ser apenas mais um
estágio rumo às profundezas do inferno.
A primeira vítima da explosão é o brasileiro, que se divide
entre a fila do osso e a fila do desemprego. A segunda grande vítima é a
semântica. As declarações mais recentes do despresidente desobrigaram tudo mais
de fazer sentido. Quando um presidente se junta ao rebotalho político que o
cerca para proporcionar a si mesmo um Bolsa Reeleição de mais
de R$ 80 bilhões e afirma que nada mudou, você sabe que está
no centro de uma crise de significado ou numa roda de cínicos.
Bolsonaro declarou na live da última
quinta-feira que Guedes continua firme, que apoia as reformas
liberais e que o teto de gastos permanece intacto. Disse tudo isso ao final de
um dia em que uma comissão da Câmara aprovou a emenda sobre o calote nas
dívidas judiciais, a equipe do Ministério da Economia debandou e as empresas
listadas na Bolsa contabilizaram perdas em valor de mercado
de R$ 284 bilhões no intervalo de apenas 72 horas.
Ao atear fogo na economia para tentar reacender a chama do
seu projeto de reeleição, Bolsonaro força seus adversários
políticos a ajustarem suas estratégias. Para não perder eleitores, Lula dobrou
o populismo, pregando um Bolsa Família de R$ 600. O
inquilino de turno contra-atacou com o Bolsa Caminhoneiro de R$ 400.
E os náufragos da chamada terceira via, que tentavam colocar em pé uma agenda
para o pós-Bolsonaro foram como que intimados a se preparar
para o pré-Dilma. Já não é negligenciável a hipótese de o Brasil
viver uma recessão no ano eleitoral de 2022.
Bolsonaro tem razão: A reeleição é mesmo
"uma desgraça".
Com Josias de Souza