terça-feira, 26 de outubro de 2021

A REELEIÇÃO É UMA DESGRAÇA — PARTE II


Às vésperas da leitura e votação do relatório final da CPI, Bolsonaro tricota uma estratégia para reagir à acusação por cerca de dez crimes (o documento, que já tem mais de mil páginas, deve sofrer alterações propostas por senadores da base do governo e pelo G7, de modo que o número de infrações penais atribuídas ao capetão ainda pode mudar).

No campo jurídico, a AGU deve se antecipar à avaliação do procurador que não procura enviando à PGR uma petição que questiona a constitucionalidade do relatório da Comissão. Na arena política, o Sultão no Bolsonaristão deve intensificar os ataques a Renan Calheiros, seja conspurcando a idoneidade do relator, seja sustentando que ele atuou na CPI a serviço da candidatura presidencial de Lula.

As duas linhas de defesa são frágeis. Aras tem uma vocação inata para arquivar acusações contra Bolsonaro (donde sua recondução ao cargo), mas terá de encontrar justificativa mais criativa se não quiser ser acusado de prevaricação. Já a biografia de Renan, eivada de processos criminais, não o recomenda, mas o que dizer da vida pregressa do também senador Fernando Bezerra, líder do governo na Casa, que foi indiciado pela PF, juntamente com o filho, sob a acusação de receber de R$ 10,4 milhões em propina quando era ministro do governo petista da gerentona de araque? Ou do deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, cujo nome dispensa maiores apresentações?

Ninguém ignora os vínculos de Renan com Lula, mas apontar a simpatia do senador alagoano pela candidatura do criminoso pernambucano não apaga os malfeitos e perversões colecionados durante a investigação parlamentar. Bolsonaro, associado a acusações sólidas — trocar ciência por ficção científica, espalhar mentiras, desperdiçar verbas com falsas soluções, incitar a prática de crimes, negligenciar cuidados sanitários óbvios, receitar poções mágicas, retardar a compra de vacinas, estimular o contágio do vírus, ignorar avisos sobre corrupção —, teve a biografia é convertida em prontuário. Fosse o Brasil um país sério, não um arremedo de banânia, esses crimes renderiam mais de 80 anos de cadeia ao verdugo do Planalto.

Sobre o indiciamento do "mito", o filho do pai, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro, disse que o presidente deu uma sonora gargalhada, e o pai do filho, que não tem culpa de nada. Mas nada é uma palavra que ultrapassa tudo, e o morubixaba de fancaria que se meteu a pajé não dispõe de um tratamento precoce capaz de eliminar a infecção que envia sua reputação à UTI.

O problema é que o acordo do grupo hegemônico livra a CPI do vexame, mas não assegura a punição do presidente. Na prática, a Comissão transfere a batata quente para os dois cúmplices de Bolsonaro, chefes do departamento de blindagens da República. Lira já esclareceu que não cogita de abrir o gavetão em que esconde quase 140 pedidos de impeachment, e ainda que Aras se animasse a abrir investigações cenográficas contra o presidente, os processos se arrastariam pelo ano eleitoral de 2022 sem um desfecho.

O eleitor brasileiro dispõe da possibilidade de fazer justiça com o próprio dedo, demonstrando a na urna que os crimes da calamidade em forma de gente versão 2.0 (a anterior atendia por Dilma Vana Rousseff) não passarão à história como uma gripezinha. As pesquisas demonstram que um pedaço do eleitorado não está disposto a fechar os olhos para o negacionismo, a protelação na compra de vacinas, o kit das poções mágicas, a aposta no contágio coletivo, o desprezo às precauções sanitárias, a picaretagem do mercado paralelo de imunizantes e toda a engrenagem de ações e omissões que adicionaram horror e morte a uma pandemia que levou mais de 605 mil brasileiros à cova.

Numa em entrevista concedida à rádio Jovem Pan em abril de 2019, quando seu governo acabara de completar 100 dias, o Bolsonaro declarou que "a reeleição causou uma desgraça no Brasil", pois há prefeito, governador e até presidente que "se endivida, faz barbaridade, dá cambalhota, faz acordo com quem não interessa para conseguir apoio político." Soou categórico: "A reeleição é péssima no Brasil". Decorridos dois anos e meio, com o teto furado e o governo no telhado, o presidente confirma a profecia.

Obcecado pela reeleição, o dublê de presidente e eterno candidato entrou na fase da barbaridade e da cambalhota. Rendido aos caciques do Centrão, sua insolência utiliza a fome dos pobres como álibi para exterminar os últimos resquícios de responsabilidade fiscal. Paulo Guedes, cuja coluna vertebral já estava arqueada, acocorou-se, e os principais assessores do Ministério da Economia bateram em retirada.

Com o Tesouro em ruínas, Bolsonaro articulou com os coronéis do Centrão uma megapedalada orçamentária que permitirá gastar R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022. Para chegar a essa cifra, despesas extraordinárias serão acomodadas sobre uma laje acima do teto de gastos. E dívidas judiciais irrecorríveis serão enfiadas dentro do armário. Alega-se que a pandemia tornou incontornável o reforço do Bolsa Família, que passará de R$ 189 para R$ 400. Verdade. O problema é que Bolsonaro prometia há mais de um ano colocar em pé um novo programa de renda mínima, para a fase pós-auxílio emergencial.

Em troca do vale-Covid, que deixa de ser pago no final desta semana, Bolsonaro, que poderia socorrer os famintos cortando os R$ 17 bi de auxílio-Centrão e passando na lâmina R$ 371 bi em isenções tributárias e  nacos dos R$ 83 bilhões que servirão para satisfazer o apetite pantagruélico de parlamentares por emendas secretas e verbas eleitorais, opta pela cambalhota fiscal para oferece uma empulhação eleitoreira batizada de Auxílio Brasil — que, devido à barbaridade orçamentária, será mastigada pela inflação antes mesmo de ser formalizado.

Confirma-se uma outra previsão que Bolsonaro fez em março do ano passado, quando a pandemia da "gripezinha" chegou ao Brasil: "Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo." Ao encostar uma dezena de crimes no prontuário do capetão despirocado, a CPI encurtou um pouco mais sua margem de manobra, estimulando o malabarismo.

Bolsonaro continua atribuindo a derrocada econômica à política do "fique em casa", que os governadores foram compelidos a adotar para combater a proliferação do coronavírus. A Comissão reforçou a percepção de que, se tivesse combinado sua alegada preocupação econômica com uma noção qualquer de responsabilidade sanitária, talvez tivesse mentido menos e comprado vacinas mais rapidamente.

Consolida-se também a migração de Paulo Guedes do posto de comandante da Economia para o de coordenador do comitê de campanha. Na folclórica reunião ministerial de abril de 2020, o posto Ipiranga avisou: "Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente." Há cinco meses, numa entrevista à Folha, o superministro de festim declarou que seu ministério jogou na defesa nos três primeiros anos do governo. Anunciou: "Agora, vamos para o ataque".

Numa animação que não ornava com a ruína, Guedes lançou propostas ao vento: um Bolsa Família anabolizado, Bônus de Inclusão ProdutivaBônus de Incentivo à Qualificação... Nessa mesma entrevista, ele admitiu que sua agenda liberal encolheu. Disse que "o grau de adesão do presidente à agenda econômica" caiu de 99% para 65%. O que espanta não é a dificuldade do ministro de reconhecer que o chefe nunca aderiu ao seu liberalismo, mas a conversão do PhD de Chicago ao populismo autodidata de Bolsonaro e dos bacharéis do Centrão.

Será desafiador aturar os 430 dias que faltam para o fim desta desditosa gestão convivendo com um presidente sem projeto, sem partido e sem ministro da Economia, onde o Centrão explodiu o Posto Ipiranga e invadiu o cofre. O país perdeu o chão. O fundo do poço passou a ser apenas mais um estágio rumo às profundezas do inferno.

A primeira vítima da explosão é o brasileiro, que se divide entre a fila do osso e a fila do desemprego. A segunda grande vítima é a semântica. As declarações mais recentes do despresidente desobrigaram tudo mais de fazer sentido. Quando um presidente se junta ao rebotalho político que o cerca para proporcionar a si mesmo um Bolsa Reeleição de mais de R$ 80 bilhões e afirma que nada mudou, você sabe que está no centro de uma crise de significado ou numa roda de cínicos.

Bolsonaro declarou na live da última quinta-feira que Guedes continua firme, que apoia as reformas liberais e que o teto de gastos permanece intacto. Disse tudo isso ao final de um dia em que uma comissão da Câmara aprovou a emenda sobre o calote nas dívidas judiciais, a equipe do Ministério da Economia debandou e as empresas listadas na Bolsa contabilizaram perdas em valor de mercado de R$ 284 bilhões no intervalo de apenas 72 horas.

Ao atear fogo na economia para tentar reacender a chama do seu projeto de reeleição, Bolsonaro força seus adversários políticos a ajustarem suas estratégias. Para não perder eleitores, Lula dobrou o populismo, pregando um Bolsa Família de R$ 600. O inquilino de turno contra-atacou com o Bolsa Caminhoneiro de R$ 400. E os náufragos da chamada terceira via, que tentavam colocar em pé uma agenda para o pós-Bolsonaro foram como que intimados a se preparar para o pré-Dilma. Já não é negligenciável a hipótese de o Brasil viver uma recessão no ano eleitoral de 2022.

Bolsonaro tem razão: A reeleição é mesmo "uma desgraça".

Com Josias de Souza