Em qualquer pedaço do mapa, pessoas recolhendo alimentos no lixo é uma indignidade inaceitável, mas num país como o Brasil, onde o orçamento secreto que compra a fidelidade do Centrão a Bolsonaro soma R$ 17 bilhões e as isenções tributárias incluídas no Orçamento de 2022 chegam a R$ 371 bilhões, isso é um escárnio.
Neste mês de outubro, o governo paga a 25 milhões de brasileiros a última parcela do auxílio emergencial em sua versão mais mixuruca — mínimo de R$ 150 e máximo de R$ 375. Cogita-se de renovar o óbolo apenas para as 14,6 milhões de famílias que já recebem o Bolsa Família.
Com dificuldades para distinguir a poltrona de presidente de um palanque, Bolsonaro vive uma situação do tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde — o médico e monstro —, com o candidato aproveitando-se de distrações do presidente para ocupar o seu corpo e usar o governo eleitoralmente. No lance mais recente, o capitão interrompeu a discussão sobre a prorrogação do auxílio emergencial para antecipar o lançamento do novo Bolsa Família, o Auxílio Brasil, que transforma o que deveria ser um programa social permanente em gambiarra eleitoral temporária.
Para esticar a cifra, o presidente-candidato encolheu seu ministro da Economia, já bem pequenininho. Guedes jurava que o teto de gastos jamais seria furado. Queimou a língua, já bem passada. O adicional que Bolsonaro injetou no benefício — e que valerá até dezembro do ano eleitoral de 2022 — será financiado com recursos extraordinários. Estima-se que esse pedaço do gasto a ser feito fora do teto somará R$ 30 bilhões.
Confirmando-se o plano de Bolsonaro, vai para o beleléu qualquer noção de sobriedade fiscal. Arthur Lira, o réu que preside a Câmara, diz que "não podemos pensar só em teto de gastos e responsabilidade fiscal em detrimento da população." Ciro Nogueira, o chefão da Casa Civil sustenta que o mercado "já precificou" o furo no teto (não foi o que se viu na vida real: o Ibovespa acumulou queda de 7,3% na semana, o dólar encerrou a sexta-feira com alta de 3,16% e os juros futuros seguiram escalando o Everest chamado risco fiscal brasileiro).
O teto de gastos foi a primeira reforma econômica importante
instituída no governo de Michel Temer, ainda em 2016, e visava impedir
que a despesa governamental aumentasse mais que a inflação do ano anterior. Foi
uma resposta à gastança desenfreada da “nova matriz econômica” petista — que lançou
o país na maior recessão da sua história (até agora). E que teria terminado em
desastre mesmo que não tivesse havido nem a corrupção desenfreada que marcou a
passagem do PT pelo poder, nem as maquiagens orçamentárias que levaram
ao impeachment da gerentona de araque.
Por mais lógico e saudável que seja, o teto dos gastos é o inferno para políticos, pois os força a reconhecer que o dinheiro público não é ilimitado. Em síntese, ele funciona como um freio para gestores que acreditam na geração espontânea de recursos públicos e gastam como se não houvesse amanhã.
O problema que se coloca não é a instituição de um programa social,
mas a insistência em violar as regras de saúde fiscal para sua viabilização.
Daí a preocupação causada pelas últimas declarações de Paulo Guedes sobre
a relativização do teto para que seja possível implantar um Auxílio Brasil
de R$ 400 em 2022.
Até então, Guedes era um defensor intransigente da
âncora fiscal, mas, para atender as exigência eleitoreiras de Bolsonaro,
alterou o intervalo de medição da inflação para calcular o reajuste do teto e
inserir essa mudança na PEC dos Precatórios (outra barbaridade aprovada
em comissão especial na quinta-feira). Daí a reação negativa do mercado e a
demissão (espontânea) de quatro secretários do ministério da Economia —
episódio que lembra a saída de Salim Mattar e Paulo Uebel — dois
membros importantes da equipe econômica — em agosto do ano passado.
Não se nega a importância de um auxílio para os
brasileiros mais vulneráveis. O problema é a insistência em violar as regras de
saúde fiscal a pretexto da "impossibilidade" de encontrar os recursos
dentro do orçamento sem recorrer a truques que destroem a confiança no país e
puxam a inflação e os juros para cima, prejudicando o crescimento e a geração
de emprego e aumentando as chances de estagnação da economia no ano que vem. Aliás,
o dinheiro existe; o que não existe é vontade política para cortar outras despesas
(como o absurdo fundo eleitoral previsto para o ano que vem).
Observação: Um país com as contas em ordem torna-se um porto seguro para
investimentos que geram emprego e renda, impede a desvalorização da moeda (o
real enfraquecido tem sido um dos principais motivos para a disparada da
inflação, que é especialmente cruel com os mais pobres) e permite crescimento
constante e sustentável. Não é preciso escolher entre ajuste fiscal e políticas
de auxílio aos mais vulneráveis, mas conciliar as duas prioridades exige
inteligência na gestão do recurso público e coragem para fazer escolhas
difíceis, mas necessárias. Coisa que nem esse governo nem esse Congresso parecem
ter.
Na prática, o Auxílio Brasil virou uma espécie de festa
na laje, acima do teto e Guedes, um asterisco a serviço
dos interesses eleitorais do chefe e do Centrão. Respeito ao teto de
gastos é mais ou menos como virgindade. Se perder, não dá segunda safra. O
mercado já fatura com a esbórnia.
Com Josias de Souza