domingo, 24 de outubro de 2021

A REELEIÇÃO É UMA DESGRAÇA


Em qualquer pedaço do mapa, pessoas recolhendo alimentos no lixo é uma indignidade inaceitável, mas num país como o Brasil, onde o orçamento secreto que compra a fidelidade do Centrão a Bolsonaro soma R$ 17 bilhões e as isenções tributárias incluídas no Orçamento de 2022 chegam a R$ 371 bilhões, isso é um escárnio.

Neste mês de outubro, o governo paga a 25 milhões de brasileiros a última parcela do auxílio emergencial em sua versão mais mixuruca — mínimo de R$ 150 e máximo de R$ 375. Cogita-se de renovar o óbolo apenas para as 14,6 milhões de famílias que já recebem o Bolsa Família

Com dificuldades para distinguir a poltrona de presidente de um palanque, Bolsonaro vive uma situação do tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde — o médico e monstro —, com o candidato aproveitando-se de distrações do presidente para ocupar o seu corpo e usar o governo eleitoralmente. No lance mais recente, o capitão interrompeu a discussão sobre a prorrogação do auxílio emergencial para antecipar o lançamento do novo Bolsa Família, o Auxílio Brasil, que transforma o que deveria ser um programa social permanente em gambiarra eleitoral temporária.

Para esticar a cifra, o presidente-candidato encolheu seu ministro da Economia, já bem pequenininho. Guedes jurava que o teto de gastos jamais seria furado. Queimou a língua, já bem passada. O adicional que Bolsonaro injetou no benefício — e que valerá até dezembro do ano eleitoral de 2022 — será financiado com recursos extraordinários. Estima-se que esse pedaço do gasto a ser feito fora do teto somará R$ 30 bilhões.

Confirmando-se o plano de Bolsonaro, vai para o beleléu qualquer noção de sobriedade fiscal. Arthur Lira, o réu que preside a Câmara, diz que "não podemos pensar só em teto de gastos e responsabilidade fiscal em detrimento da população." Ciro Nogueira, o chefão da Casa Civil sustenta que o mercado "já precificou" o furo no teto (não foi o que se viu na vida real: o Ibovespa acumulou queda de 7,3% na semana, o dólar encerrou a sexta-feira com alta de 3,16% e os juros futuros seguiram escalando o Everest chamado risco fiscal brasileiro).

O teto de gastos foi a primeira reforma econômica importante instituída no governo de Michel Temer, ainda em 2016, e visava impedir que a despesa governamental aumentasse mais que a inflação do ano anterior. Foi uma resposta à gastança desenfreada da “nova matriz econômica” petista — que lançou o país na maior recessão da sua história (até agora). E que teria terminado em desastre mesmo que não tivesse havido nem a corrupção desenfreada que marcou a passagem do PT pelo poder, nem as maquiagens orçamentárias que levaram ao impeachment da gerentona de araque.

Por mais lógico e saudável que seja, o teto dos gastos é o inferno para políticos, pois os força a reconhecer que o dinheiro público não é ilimitado. Em síntese, ele funciona como um freio para gestores que acreditam na geração espontânea de recursos públicos e gastam como se não houvesse amanhã. 

O problema que se coloca não é a instituição de um programa social, mas a insistência em violar as regras de saúde fiscal para sua viabilização. Daí a preocupação causada pelas últimas declarações de Paulo Guedes sobre a relativização do teto para que seja possível implantar um Auxílio Brasil de R$ 400 em 2022.

Até então, Guedes era um defensor intransigente da âncora fiscal, mas, para atender as exigência eleitoreiras de Bolsonaro, alterou o intervalo de medição da inflação para calcular o reajuste do teto e inserir essa mudança na PEC dos Precatórios (outra barbaridade aprovada em comissão especial na quinta-feira). Daí a reação negativa do mercado e a demissão (espontânea) de quatro secretários do ministério da Economia — episódio que lembra a saída de Salim Mattar e Paulo Uebel — dois membros importantes da equipe econômica — em agosto do ano passado.

Não se nega a importância de um auxílio para os brasileiros mais vulneráveis. O problema é a insistência em violar as regras de saúde fiscal a pretexto da "impossibilidade" de encontrar os recursos dentro do orçamento sem recorrer a truques que destroem a confiança no país e puxam a inflação e os juros para cima, prejudicando o crescimento e a geração de emprego e aumentando as chances de estagnação da economia no ano que vem. Aliás, o dinheiro existe; o que não existe é vontade política para cortar outras despesas (como o absurdo fundo eleitoral previsto para o ano que vem).

Observação: Um país com as contas em ordem torna-se um porto seguro para investimentos que geram emprego e renda, impede a desvalorização da moeda (o real enfraquecido tem sido um dos principais motivos para a disparada da inflação, que é especialmente cruel com os mais pobres) e permite crescimento constante e sustentável. Não é preciso escolher entre ajuste fiscal e políticas de auxílio aos mais vulneráveis, mas conciliar as duas prioridades exige inteligência na gestão do recurso público e coragem para fazer escolhas difíceis, mas necessárias. Coisa que nem esse governo nem esse Congresso parecem ter.

Na prática, o Auxílio Brasil virou uma espécie de festa na laje, acima do teto e Guedes, um asterisco a serviço dos interesses eleitorais do chefe e do Centrão. Respeito ao teto de gastos é mais ou menos como virgindade. Se perder, não dá segunda safra. O mercado já fatura com a esbórnia.

Com Josias de Souza