Sabemos que os políticos são eleitos, ou seja, que não
brotam em seus gabinetes por geração espontânea. Também sabemos que a
"qualidade" do eleitorado tupiniquim é a pior possível, e que quem
vota em candidatos ímprobos e incompetentes não pode se queixar de estar mal
representado. Mas a minoria mais esclarecida sabe quão mal representada esteve
desde a primeira vitória de Lula (não que estivesse bem representada
durante aos dois mandatos de FHC), e sabe também quão pior ficou a situação do país sob
o mandatário de turno. A questão que se coloca é: o que fazer para mudar isso?
A resposta é: com esse Congresso, sem chance. Basta observar o comportamento dos parlamentares para inferir que as necessidades
da nação e os anseios da população não são prioridades para essa caterva (com raras e honrosas exceções). E
isso vale também para o chefe do Executivo Federal, que se elegeu porque muitos de nós teríamos teria votado no Demo em pessoa para impedir a volta do lulopetismo corrupto
— e sabemos agora que foi quase isso que fizemos.
As promessas de campanha do "mito" jamais subiram a rampa do Planalto, ao passo que o dito-cujo, o Messias que não miracula, jamais desceu do palanque. Sua vitória decorrou da mais absoluta falta de alternativa, mas não imaginávamos, em 2018, que seu (des)governo seria algo como a
emenda pior que o soneto.
Dormitam nos escaninhos da presidência da Câmara quase 140 pedidos de impeachment em desfavor de Bolsonaro. Mas foi graças a Bolsonaro e a bilhões de um orçamento paralelo que não ficou bem explicado (até porque não há como explicar o inexplicável) que a Câmara é presidida por um deputado-réu que, juntamente com o atual chefe da casa-civil da Presidência, dita as regras no famigerado Centrão.
Enquanto estiverem lucrando com a permanência de Bolsonaro no cargo, os
parlamentares centristas continuarão a desempenhar o papel que desempenham
desde 1987 — de "marafonas do Congresso" — e seus líderes, a blindar
o execrável chefe do Executivo. Como desgraça pouca é bobagem, comanda a Procuradoria-Geral
da República uma versão revista, atualizada e piorada do
engavetador-geral da República Geraldo Brindeiro — que foi guindado ao
cargo pelo então presidente FHC.
A CPI do Genocídio concluiu seu relatório. A despeito da cisão do G7 na reta final, será pedido o indiciamento de Bolsonaro e outros investigados que transformaram em política pública o tratamento da Covid com remédios ineficazes, apostaram na imunização coletiva pelo contágio, negligenciaram o colapso hospitalar de Manaus, retardaram a compra de vacinas da Pfizer e do Butantan, firmaram contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin e abriram as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas inexistentes. Ou seja, a Comissão pretende acusar Bolsonaro tanto pela prática de crimes comuns quanto de crimes de responsabilidade, e o dito-cujo, escudado por Augusto Aras e Arthur Lira, dá-se ao luxo de dizer que está cagando e andando para a CPI.
Renan Calheiros, por sua vez, tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI. Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras, o senador alagoano não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, ele estava ao lado do primeiro-filho do Presidente — outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato, o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha" Bolsonaro estava à procura de blindagem.
A PGR — e, por extensão, o Ministério Público Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata o Messias que não miracula como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobriu-se mais adiante que, para livrar o suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo e sua equipe enquadraram-no na categoria dos seres inimputáveis. Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar a violação de leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.
Bolsonaro fez uma
opção preferencial por exercer o cargo de presidente à margem da lei.
Transgride até leis que ele próprio sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e
sua equipe promovem uma junção da ilegalidade com a impunidade. Resta saber até
quando um país inteiro terá de passar vergonha para que um procurador-geral e
sua equipe ofereçam blindagem a um presidente da República que se converteu num
infrator serial.
Vivo, Darwin diria
que a atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser
humano parou de evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho
de volta. No momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é
uma caverna nas montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de
Neandertal desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros,
talvez não tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão
pré-histórica do isolamento social.
Tudo indica que o capitão continuará
destruindo o país — com fez Dilma até maio de 2016, quando foi afastada
do cargo e substituída pelo vice decorativo (o folclórico vampiro que tem
medo de fantasma) — até o mais amargo fim. Como a almejada reeleição
fica mais distante a cada dia (embora política seja como as nuvens no céu; a
gente olha e ela está de um jeito, olha de novo e o cenário já mudou), a
intenção do mandatário de fancaria parece ser a de entregar terra arrasada a seu sucessor. Vire-se
(para não dizer "foda-se"), dirá sua alteza irreal a quem lhe suceder em janeiro de 2023.
Também mais distante a cada dia torna-se a possiblidade de o negacionismo em forma de gente (?!) ser apeado do cargo (para
o qual reconheceu não ter sido talhado), e periga o Posto
Ipiranga caminhar a seu lado até o mais amargo fim. No final da última quarta-feira, devido ao "furo
no teto dos gastos", quatro integrantes do primeiro escalão do
Ministério da Economia pediram
demissão.
Afere-se o grau de degradação da República entre nós tomando o pulso do organismo capaz de produzir a baixaria em que rasteja a indicação de André Mendonça ao STF. O senador Davi Alcolumbre, que foi guindado à presidência do Senado como representante do que seria a nova política — em contraposição a Renan Calheiros, que representava a velha —, comanda hoje Comissão de Constituição e Justiça da Casa como um dono de repartição consciente dos próprios direitos, controlando a agenda de sabatinas e empurrando para as calendas a de André Mendonça, dublê de ex-ministro da Justiça, ex-AGU e pastor presbiteriano, que Bolsonaro indicou (há mais de 3 meses) para ocupar a vaga do ora ex-decano Marco Aurélio.
Chegou-se à altura do buraco, ainda muito a descer, em que
as pelejas por uma cadeira em corte constitucional converteram-se em “guerra
religiosa” — contribuição particular de Bolsonaro, com sua promessa de
ministro “terrivelmente evangélico”, a essa vala. O exercício da
autonomia pelo presidente da CCJ é ato político. Nisso não vai qualquer
problema intrínseco. A questão é outra.
O senador não segura a submissão de Mendonça ao
Senado para proteger “a legítima autonomia do presidente da CCJ”. Não é
uma batalha em defesa da independência do Congresso, nem contra o aparelhamento
bolsonarista das instituições — ou não teriam reconduzido Augusto Aras à
PGR. Por que, então, a segura? Bolsonaro já explicou: "[Alcolumbre]
Teve tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não
quer o André Mendonça".
Bolsonaro, com sua objetividade de autocrata, é transparente
sobre os orçamentos secretos. Rei morto, rei posto. Enquanto presidiu a Câmara Alta,
Alcolumbre "teve tudo o que foi possível" e não criou
embaraços. Era sócio. Ao passar a cadeira, perdeu graças. E decerto terá sido
traído pelo morubixaba de festim, notório descumpridor de promessas, acordos e tal e coisa. Em suma: o senador amapaense estica a corda por interesses pessoais,
e em nome deles, para fazer barganha, exerce, perverte e privatiza uma
prerrogativa, músculo do equilíbrio republicano, do Senado.
Eis a República entre nós: Alcolumbre, autodeclarado
alvo de “intolerância religiosa” (por ser judeu), não agenda a sabatina
porque perdeu boquinha; Bolsonaro, o que “não tem ideia”, acusa Alcolumbre
de reclamar de barriga cheia; o pastor Silas Malafaia ataca graúdos (de
súbito dóceis) do Centrão para reivindicar a propriedade evangélica da cadeira
vaga no STF; e o futuro de André Mendonça como membro da corte
depende de tudo, menos da avaliação sobre se estará à altura de integrar o Supremo.
E viva o povo brasileiro!
Com Carlos Andreazza