Em 1863, no Discurso de Gettysburg, o presidente norte-americano Abraham Lincoln definiu a democracia como o "governo do povo, pelo povo, para o povo". No Brasil, os governantes eleitos pelo povo seguem a ordem alfabética, visando primeiro ao bolso (o próprio).
Curiosamente, o parágrafo único do artigo primeiro da Constituição de 1967 — promulgada durante os anos de chumbo — estabelecia que "todo o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”. Na carta de 1988, conhecida como Constituição Cidadã — gestada e parida durante a ressaca da ditadura militar —, o parágrafo único do artigo retrocitado passou a ter a seguinte redação: todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Na cerimônia de promulgação da Carta de 1988, o saudoso
Ulysses Guimarães (que dorme
com os peixes há 29 anos) reconheceu que a Lei não era perfeita — o
que ela própria confessava ao admitir reformas. E com efeito: os
constituintes roubaram o país que tínhamos e nos transformaram em escravos de
nossos “representantes”. Essa caterva, que deveria exercer o poder em nome
do povo (que a elegeu para isso), faz o que quer, quando quer e como quer, sem
prestar contas a ninguém e quase sempre em benefício próprio — seja para
aumentar a burocracia que mantem o status quo, seja para angariar votos
para a próxima eleição, seja para proteger seus asseclas.
A tal Constituição Cidadã não previa a reeleição de presidente e vice. Mas o ego inflado de FHC não coube em "míseros" 5 anos de mandato (mais detalhes nesta postagem). Uma vez aberta a Caixa de Pandora, seguiram-se as reeleições do próprio, de Lula (a despeito do Mensalão) e de Dilma (a despeito do Petrolão).
O impeachment da anta arroganta deu azo à ascensão de Temer — cujo governo acabou quando veio a lume a conversa de alcova do vampiro com o moedor de carne bilionário Joesley Batista, gravada pelo próprio nos porões do Jaburu. Na esteira dessa desgraça, o bolsonarismo boçal derrotou o lulopetismo corrupto no pleito de 2018, e o resultado foi a tempestade perfeita que pandemia tornou pior, com a imprescindível ajuda do mandatário de fancaria. A despeito da atual gestão ser uma extraordinária sucessão de descalabros, o Messias que não miracula continua desafiando a lei da gravidade (com a imprescindível cumplicidade do procurador-geral da República e do réu que preside a Câmara Federal.
Ao longo dos últimos seis meses, a CPI do Genocídio jogou luz sobre a podridão que aflora dos subterrâneos do governo federal. Não bastassem os 140 pedidos de abertura de processos de impeachment em desfavor do obelisco do negacionismo — pedidos esses que o deputado-réu Arthur Lira mantém inacessíveis sob seu buzanfã —, o relatório aprovado por 7 dos 11 membros titulares da comissão (debalde o prodigioso esforço da tropa de choque do governo) recomenda que Bolsonaro seja investigado e, eventualmente, responsabilizado por 10 crimes, bem como o indiciamento de outras 77 pessoas — incluindo ex-ministros, ministros, políticos, servidores públicos, empresários, membros do chamado "gabinete paralelo" — e duas empresas.
No caso de Bolsonaro, as suspeitas de crime comum serão encaminhadas à PGR, as de crime de responsabilidade, à Câmara Federal, e as de crimes contra a humanidade, ao Tribunal Penal Internacional. Detalhe: Lira telefonou duas vezes para alertar o presidente da CPI de que a inclusão dos nomes de deputados bolsonaristas no relatório final da comissão abriria um "perigoso precedente", e que ele reagiria se isso ocorresse. Na visão de sua excelência, "não é adequado senador investigar deputado".
Um grupo de senadores entregou
pessoalmente ao ministro Alexandre de Mores, do STF, e a Augusto
Aras, comandante supremo da PGR, o relatório produzido pela
Comissão. A senadora Simone Tebet disse que sempre foi crítica à
procuradoria e ao trabalho de Aras, mas dessa vez "o
procurador foi firme". Cabe ao Ministério Público promover
a responsabilidade civil ou criminal dos infratores. Caso a denúncia seja
oferecida, os fatos serão analisados pela instância da Justiça competente. Se
um investigado tiver foro privilegiado em âmbito federal — situação que inclui Bolsonaro,
por exemplo —, o foro proporcional é o STF.
O senador Omar Aziz, presidente da CPI, disse
a Aras que "tenha compromisso com a nação: 600 mil vidas não podem
ser engavetadas. Qualquer que seja o argumento, nós estaremos discutindo
publicamente. Os documentos sigilosos são comprometedores e serão
disponibilizados para que possam continuar a investigação". Pela
manhã, durante a audiência, Aziz demonstrou preocupação com declarações dadas por
parlamentares governistas de que Aras iria arquivar o relatório da CPI
num curto prazo, e já havia cobrado o procurador-geral.
O senador Randolfe Rodrigues, vice-presidente da CPI,
disse que os membros da Comissão acertaram com Aras que fariam (como de
fato fizeram) a entrega dos processos às demais instâncias do Ministério
Público. Parte dos senadores receiam que o PGR engavete as sugestões
da comissão, já que ele foi indicado e reconduzido ao cargo por Bolsonaro,
cujo governo é o principal alvo da investigação de irregularidades. Aras
afirmou que fará uma análise independente. E eu acredito em Papai Noel.
Carlos Fernando dos Santos Lima, ex-procurador da Lava-Jato,
também não acredita que Aras fará algo de efetivo sobre o relatório. "Ele
vai possivelmente tocar isso de uma maneira a não dar espaço para que haja
movimentação alternativa, tocando esse inquérito de uma maneira leniente",
declarou o ex-procurador em entrevista ao portal UOL. Aras foi nomeado
para o cargo por ter uma postura passiva em relação à abertura de investigações,
por "representar o não fazer", por subordinar o Ministério
Público aos desejos da política.
"Esta CPI já produziu resultados. Temos denúncias, ações penais, autoridades afastadas e muitas investigações em andamento e agora, com essas novas informações, poderemos avançar na apuração em relação a autoridades com prerrogativa do foro nos tribunais superiores", disse o procurador-geral através de postagem feita por sua assessoria no Twitter. Vale destacar que a Comissão não tem poder para punir suspeitos — o aprofundamento de investigações e indiciamentos contidas no relatório ficará a cargo de órgãos de fiscalização e controle — sobretudo o Ministério Público Federal, por meio da PGR, e o Ministério Público dos Estados, com foco no Distrito Federal e em São Paulo, onde já existem apurações em andamento.
A PGR já abriu 92
investigações preliminares relativas ao presidente da República, mas
não apontou nenhum crime que teria sido praticado pelo mandatário. Numa de suas
manifestações mais polêmicas, a subprocuradora-geral Lindôra Araújo alegou não ter visto crime na decisão de Bolsonaro de não usar máscara e
levantou dúvidas sobre a eficácia do material de proteção, cuja importância é
amplamente propagada por especialistas. De acordo com a jornalista e colunista
do Globo Bela Megale, Aras submete o relatório da CPI à
análise prévia para ganhar
tempo e se blindar com Bolsonaro e Senado.
Em entrevista à recém-inaugurada TV Jovem Pan News, o
"mito" dos bolsomínions disse que "a CPI foi uma palhaçada".
Repetindo o discurso com que tentou desde sempre desacreditar a comissão, sua alteza concentrou as baterias no relator, senador Renan Calheiros, que "agiu
por vingança". Ao ser questionado
sobre 'rachadinha' pelo filho de Paulo Marinho, o capetão simplesmente encerrou a entrevista.
Nesse entretempo, o
TSE rejeitou a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Os ministros Luís
Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís
Felipe Salomão e Mauro Campbell Marques criticaram o chefe do
Executivo e afirmaram que foi comprovada a existência de um esquema ilícito de
propagação de notícias falsas via WhatsApp no último pleito para beneficiar
Bolsonaro, mas consideraram que não havia gravidade suficiente para
cassar a chapa. Os ministros Sérgio Banhos e Carlos Horbach entenderam
que sequer foram apresentados elementos que permitissem chegar à conclusão de
que houve algum tipo de disseminação de fake news em benefício do atual
presidente.
Barroso, Moraes e Fachin mandaram duros recados a Bolsonaro e afirmaram que, embora o tribunal não tenha imposto pena ao chefe do Executivo neste caso, o julgamento serviu para preparar a corte para 2022, quando o esclarecidíssimo eleitorado canarinho voltará às urnas para escolher presidente e vice, governadores, deputados federais e estaduais e 1/3 dos senadores da República (outros 2/3 foram eleitos em 2018).
Pelo andar da carruagem, essa "festa da democracia" deve ocorrer ainda em meio a pandemia sanitária, sem as reformas estruturantes prometidas, com desemprego, desalento e estagflação, crises hídrica e energética batendo as portas, dólar acima de R$ 5, denúncias de corrupção em todos os escalões do governo (governo esse que diz ter acabado com a Lava-Jato porque "não existe mais corrupção") e uma corja de políticos que só pensam em si mesmos.
EM TEMPO: Se você tem fé, reze por um milagre. Se sua fé não chega a tanto, aproveite que hoje é dia 29 para fazer a simpatia do nhoque. Se não melhorar, piorar também não vai.
E viva o povo brasileiro!