A revista Isto É que chegou às bancas na
última sexta-feira traz
na capa uma imagem do sumo pontífice do bolsonarismo boçal com um
bigode igual ao do líder nazista Adolf Hitler, feito com a palavra
“genocida”. Sectários e apoiadores do "mito" reagiram à imagem na
manhã de sábado com a hashtag #istoelixo. O deputado estadual mineiro Bruno
Engler postou vídeo cobrando a ação no Ministério Público por discurso de
ódio: "Jornalista não é Deus. Vocês não podem fazer a merda que
bem entenderem, isso aqui é crime e vocês devem responder por isso”, afirmou
o parlamentar.
Outro perfil relembra várias frases do mandatário para
comentar a reclamação dos seus aliados cm relação à capa da revista, entre as
quais: “O GADO reclamando sobre uma capa, mas na verdade #istoelixo:
O erro da ditadura foi torturar e não matar", "Pela memória do
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff… o meu voto é
sim"; "Ele merecia isso: pau-de-arara. Eu sou favorável
à tortura". E por aí vai.
A matéria de capa da revista trata da entrega do
relatório final da CPI do Genocídio, que, de acordo com a publicação,
faz o país ajustar contas com sua história. “Bolsonaro e 40 seguidores,
incluindo ministros e auxiliares próximos, serão indiciados por delitos
analisados e compilados por juristas. Para a efetiva punição, é necessário
superar a blindagem institucional que ele conseguiu construir”, diz a
reportagem.
Em sua coluna na revista, Ricardo Kertzman, que é judeu, diz
que amigos seus, também judeus, indignados pela comparação, lhe perguntaram: "Como
você pode aceitar isso calado". Segundo ele, nenhum desses amigos leu a
matéria ilustrada pela capa — que é polêmica, sim! —, apenas se deixaram levar
pelo que viram e pelo que lhes foi soprado aos ouvidos em grupos de WhatsApp
(bolsonaristas, claro).
O (des)governo Bolsonaro não é nazista e o ‘mito’ não
é Hitler, diz o articulista. Mas, segundo ele, as práticas e posturas bolsonaristas
são semelhantes ao nazismo "Eu mesmo já escrevi a respeito e nenhum
judeu, à época, me encheu o saco. Por quê?", pergunta Kertzman.
Tamanha suposta indignação não tem a ver mais com preferências políticas do que
com religião? O evento pregresso — a matéria em questão — não seria a
verdadeira razão de tanto barulho? Como refutar o que publica a IstoÉ,
se amparada em fatos reais e provas documentais? Especificamente a questão dos
‘experimentos científicos’, algo espetacularmente assombroso, que é
simplesmente inquestionável?
Trazer à lembrança a imagem do demônio nazista é
sempre ruim e, dentro do possível, pode e deve ser evitado. Mas quando isso não
ocorre, não há motivo para revolta meramente baseada em uma inexistente
equiparação. Relativizar Hitler e o nazismo é algo asqueroso.
Aliás, a depender da maneira, é até crime. Inclusive no Brasil. Mas, repito:
onde foi que a revista fez isso? E mais: alguém aí se lembrou das vítimas (de
carne e osso) do bolsonarismo?
Kertzman conclui dizendo que, se considerasse
inadequadas — sob a ótica de uma equiparação indevida e reducionista do nazismo
— a capa e a matéria da IstoÉ, ele seria o primeiro a criticar a
abordagem. Mas ressalta que não só não considera a reportagem e a ilustração
inadequadas, como aplaude o conteúdo e felicito os autores e editores pela
coragem e ousadia de chamar aquilo que lembra o nazismo pelo nome de… nazismo!
Muito do que aí está se deve à leniência e ao descaso com que Bolsonaro
e suas ideias e ideais foram tratados durante os quase 30 anos em que ele foi
um reles deputado. Hoje, no Poder maior do País, o "mito" continua a
ser quem foi.
Que cada qual tire as próprias conclusões. Dito isso, passo
à matéria do dia.
Empunhando lanças contra os "marajás" e a corrupção endêmica na política, Collor derrotou Lula na eleição solteira de 1989. Sabemos agora que dava-se início, então, a uma interminável batalha entre o bem e o mal, na qual o mal é o mal e bem, ainda pior.
Três meses após a posse de Collor, suspeitas de corrupção pairavam sobre o segundo escalão do governo, e dali para o Palácio do Planalto foi um pulo. O caçador de marajás de fancaria tinha como comparsa o folclórico Paulo César Cavalcante Farias, mais conhecido como PC, que atuou como tesoureiro na campanha collorida e passou a desempenhar com desenvoltura o papel de lobista e elemento de ligação entre o empresariado e o governo federal. Anos mais tarde, ele se transformou num arquivo vivo e foi despachado para a terra-dos-pés-juntos num assassinato seguido de suicídio que jamais seria devidamente esclarecido (detalhes mais adiante).
Collor foi engolfado pelas denúncias de corrupção em
maio de 1992, depois que o irmão Pedro Collor apresentou
à Revista Veja diversos documentos que indicavam corrupção no
governo. Especula-se que Pedrão pleiteou uma parte do butim e não foi atendido, mas há quem diga que ele botou a boca no
trombone porque descobriu que o irmão garanhão vinha arrastando a asa para sua
esposa, Thereza
Collor.
Ironicamente, tudo começou com um prosaico Fiat Elba
pago com um "cheque-fantasma", segundo a revelação do motorista Eriberto
França. Em suma, Pedro detalhou o esquema PC e
o motorista revelou que dinheiro sujo fora usado não só na compra do Elba,
mas também para pagar contas do presidente. Estimava-se na época que US$
6,5 milhões teriam sido desviados para bancar gastos pessoais de Collor — dinheiro
de pinga em comparação com o que o PT e cia. roubaram no Mensalão e no Petrolão, que virou dinheiro
de pinga diante da malversação de recursos públicos registrada durante a
pandemia de Covid no atual governo. Mas isso é outra conversa.
A população assistiu indignada à escalada de acusações contra Collor e seu factótum, enquanto entidades civis como OAB, CNBB, UNE, UBES e centrais sindicais deflagraram o "Movimento pela Ética na Política". Em agosto de 1992, o relatório final de uma CPI instaurada a pedido do PT apontou ligações de Collor com o Esquema PC.
Collor foi alvo de 29 pedidos de impeachment — o que é uma mixaria diante dos 150 pedidos que dormitam na gaveta do deputado-réu Arthur Lira. Emparedado pelas manifestações dos caras-pintadas, o PGR de turno, Aristides Junqueira, abriu um inquérito para investigar os crimes atribuídos ao presidente, Zélia, PC Farias e Jorge Bandeira de Melo.
Zélia era uma versão melhorada de Dilma — até porque nada nem ninguém foi capaz de ombrear com a gerentona de araque até Bolsonaro entrar na disputa. Mas a deslumbrada, travestida de bambambã da Economia, atuou como mentora intelectual do confisco da poupança dos brasileiros (detalhes no capítulo anterior) e se notabilizou pelo tórrido affair que manteve com o também ministro Bernardo Cabral, conhecido como Boto Tucuxi — segundo o folclore paraense, o boto em questão surge à noite, travestido de homem galante e sedutor, para "cortejar" caboclas ribeirinhas — e, mais adiante, por ter ingressado no rol de ex-esposas de Chico Anysio, o "comediante que se casou com a piada”.
O pedido abertura do impeachment de Collor
foi assinado pelos presidentes da ABI e da OAB e
autorizado pela Câmara Federal, por 441 votos a favor, 38 contrários, 23
ausências e uma abstenção, em 29 de setembro de 1992, e o processo foi instaurado
no Senado no dia 1º de outubro. Collor foi afastado do cargo no
dia seguinte e penabundado em 30 de dezembro. O julgamento
começou na véspera, depois que o réu apresentou sua renúncia. Seu objetivo
não era escapar da cassação, que eram favas contadas, mas evitar oito anos de inelegibilidade. Por alguma razão — afinal, não há como cassar o
mandato de quem a ele já renunciou, e a inabilitação ao exercício de cargos
públicos é uma pena assessória, inerente à cassação — Collor
foi condenado por 76 votos a 2.
Observação: Como nem todos são iguais perante
a lei — ou nem sempre a lei é igual para todos —, a estocadora de vento seria
impichada em 31 de agosto de 2016, mas preservaria seus direitos políticos
graças a uma vergonhosa maracutaia urdida pelos então presidentes do Senado e
do STF, respectivamente Renan Calheiros e Ricardo Lewandowski.
Palmas para a Justiça brasileira!
Em junho de 1993, já indiciado em 41 inquéritos criminais, PC teve a prisão decretada, mas embarcou no Morcego Negro — pilotado por Jorge Bandeira de Mello — e se escafedeu. Após 152 dias foragido, despistando seguidamente a PF e a Interpol, e quatro meses depois de desaparecer em Buenos Aires, PC ressurgiu em Londres, 11 kg mais magro, sem seus famosos bifocais e disfarçado de príncipe árabe... e tornou a fugir enquanto se discutia sua extradição. O carequinha só seria capturado dali a três meses, depois que um turista brasileiro o viu caminhando lépido e fagueiro pelas ruas de Bangkok, na Tailândia.
PC foi extraditado, julgado e
condenado a 4 anos de prisão por sonegação fiscal e 7 por falsidade ideológica. Collor cumpriu
sua quarentena, disputou o governo de Alagoas, perdeu, elegeu-se
senador e renovou o mandato até 2022. Em dezembro de 1995, depois de
cumprir dois anos da pena, PC foi posto em liberdade condicional. Na
cadeia, ele havia conhecido Suzana Marcolino, que lhe fora apresentada por
uma antiga funcionária de uma de suas muitas empresas. A partir de então, a
moça (24 anos mais nova do que ele) passou a ganhar joias, roupas caras, carro
de luxo e uma generosa conta bancária.
Suzana montou uma butique de grife em Maceió e era vista com frequência, ao lado do namorado recém-libertado, a bordo de uma luxuosa BMW branca conversível. Apesar da resistência geral da família, o idílio entre os pombinhos foi tórrido. Mas durou pouco: apenas seis meses transcorreram entre a saída de PC da prisão e a fatídica manhã de 26 de junho de 1966, quando ele e Suzana foram encontrados mortos na casa de veraneio na praia de Guaxuma, em Maceió, com um tiro no peito de cada um.
Um grupo de 11 peritos — liderado pelo legista Badan Palhares, da Universidade Estadual de Campinas — concluiu que Suzana matou o namorado enquanto ele dormia se suicidou em seguida. Em depoimento à polícia, os quatro seguranças que guardavam a propriedade disseram ter ouvido o casal discutindo no quarto logo após o jantar, quando os convidados — o irmão Augusto Farias e a namorada — já tinham ido embora, mas que não ouviram os tiros porque era época de festas juninas.
Descobriu-se que o revólver encontrado junto aos corpos havia sido comprado por Suzana uma semana antes do crime, e pago com um cheque da conta pessoal da moça. Pessoas próximas ao casal afirmaram que PC — que era chamado de “Morsa do Amor” por ser mulherengo e galanteador — andava traindo Suzana com Claudia Dantas, filha de um cacique político alagoano.
Quem é fã de séries policiais conhece a teoria do
“triângulo do crime”, baseada em três pressupostos: motivo,
técnica e oportunidade. Suzana satisfazia todos ele: o ciúme,
o revólver e a alegada embriaguez de PC naquela noite. Mas
muita gente não acreditou que o poderoso chefão do Esquema PC tivesse sido assassinado pela namorada às vésperas de depor ao STF numa
investigação sobre suposto pagamento de suborno a membros do governo.
Como Gustavo Bebianno, articulador da campanha de Bolsonaro à
Presidência e ex-ministro da secretaria-geral da Presidência nos primeiros
meses deste funesto governo, PC sabia
demais, e a exemplo de Bebianno, havia anunciado que escreveria um
livro detalhando todo o esquema.
Contrariando o laudo de Palhares e sua
equipe, George Sanguinetti, coronel da PM e professor de Medicina Legal da Universidade Federal
de Alagoas, ponderou que, pela localização do
ferimento, posição do corpo de PC, estatura de Suzana e ângulo do disparo, “ela só poderia ter apertado o gatilho se estivesse
levitando”, e que “passional não foi o crime, e sim o inquérito”.
Outras dúvidas começaram a pipocar quase simultaneamente na imprensa. O corpos dos pombinhos foram exumados e uma nova perícia confirmou a presença de pólvora nas mãos da suposta assassina, mas em pequena quantidade. Não foram encontrados resíduos de chumbo, bário e antimônio, elementos metálicos que integram as substâncias químicas iniciadoras da espoleta.
O detalhe que mais chamou a atenção na “guerra dos laudos”
foi a discussão sobre a altura real de Suzana. De acordo com Badan
Palhares, Palhares, ela media 1,67 m; segundo
o novo laudo, ela tinha 10 cm a menos. Os legistas da segunda equipe
recalcularam a trajetória da bala a partir da marca deixada na parede depois de o projétil transpassar o corpo de Suzana e concluíram que, se ela
estivesse sentada na cama, como indicava a primeira reconstituição, o tiro deveria
ter passado à altura de sua cabeça, e não atingido o pulmão esquerdo, como
aconteceu. Ainda assim, o caso seguiu arquivado.
Em 1999, uma série de matérias publicadas pela FOLHA estampou
oito fotos de Suzana ao lado de PC e de
pessoas próximas ao casal. Mesmo de salto, a moça era mais baixa que o namorado, que media 1,63 m. O caso foi reaberto e o irmão de PC, Augusto
Farias, e os quatro seguranças que guardavam a casa onde o crime aconteceu
foram indiciados. Da feita que Augusto exercia mandato parlamentar,
seu processo foi remetido à PGR, que recomendou o arquivamento.
O STF acatou a recomendação e o caso foi dado por encerrado.
Os seguranças foram a júri popular, mas o advogado
contratado por Augusto para defendê-los alegou falta de
provas. Em maio de 2013, todos foram absolvidos. Detalhe: o júri descartou a
possibilidade de homicídio seguido de suicídio, mesmo considerando que “não há crime
passional com único disparo, que o tiro deflagrado foi de profissional, e que
Suzana jamais teria condições de ser a autora do disparo”.
Segundo o laudo de Sanguinetti, a
hemorragia interna com 1 litro de sangue no pulmão esquerdo e meio litro no
pulmão direito da moça levava à conclusão de que a motivação do crime foi
realmente “queima de arquivo” e que Suzana morreu porque estava no lugar errado na hora errada. Seu telefone celular jamais foi encontrado e o autor dos disparos permanece desconhecido até hoje.
Mais detalhes em Collor presidente: trinta meses de turbulências, reformas, intrigas e corrupção, do historiador Marco Antonio Villa; Relato para a história, do próprio Fernando Collor; Trapaça: Saga política no universo paralelo brasileiro, de Luís Costa Pinto; e O pêndulo da democracia, de Leonardo Avritzer.