sexta-feira, 12 de novembro de 2021

A CEGUEIRA É UM PROBLEMA PARTICULAR ENTRE AS PESSOAS E OS OLHOS COM QUE NASCERAM


Depois de ser aprovada em dois turnos, a PEC do Bolsolão seguiu para o Senado. Especula-se que o relatório produzido por Fernando Bezerra, líder do governo na Casa (que foi indiciado pela PF com seu bezerrinho sob a acusação de receber de R$ 10,4 milhões em propina quando era ministro do governo petista da gerentona de araque), seja votado até o final do mês, e que o plenário da liquide a fatura logo em seguida.

Paralelamente, a liminar da ministra Rosa Weber foi mantida por 8 votos a 2 (o STF tem um ministro a menos desde julho, graças ao senador Davi Alcolumbre). O semideus togado e senhor da vontade de seus pares abriu a divergência, mas não conseguiu adesão nem de Toffoli, nem de Fux. E do esbirro do despirocado não era de esperar nada diferente.

Observação: Os recursos do "orçamento secreto" têm origem em emendas parlamentares cuja transparência é questionada em ações no STF e no TCU. A ministra Rosa suspendeu o pagamento desse tipo de emenda, e o plenário decidiu manter a decisão, mesmo depois de uma camarilha parlamentar liderada pelo réu que preside a Câmara negociar com a ala política do Supremo um abrandamento da decisão da magistrada.

Lira passou os últimos dias conversando com Gilmar Mendes e outros ministros com quem tem mais interlocução. No dia 8, acompanhado do relator do orçamento de 2022 e do líder do governo no Senado, ele conversou com Fux e, em algum momento desses "embargos auriculares", sugeriu claramente que sem o dinheiro do orçamento secreto o Supremo também perderia parte de sua verba. Nos bastidores, Gilmar defendia uma solução salomônica, nos termos que adotou depois em seu voto: manter os pagamentos, mas determinar que fosse dada publicidade a todas as informações sobre os parlamentares beneficiados com as emendas.

A articulação continuou mesmo depois de quatro ministros seguirem o voto da relatora. Até então, Fux e Alexandre participavam das conversas, que também incluíam Toffoli e Lewandowski. Mas a ideia de que o meio-termo poderia favorecer Lira e passar a impressão de que estariam cedendo à pressão começou a incomodar Lewandowski e Moraes, que conversaram no início da tarde e decidiram abandonar a solução desenhada por Gilmar. Os dois votaram praticamente ao mesmo tempo, por volta das 17h de terça-feira. 

Além de mandar um recado a Lira — de que não se dobrariam ao que descreveram depois a interlocutores como um ato de "truculência" do presidente da Câmara —, Moraes e Lewandowski julgaram que seria importante fazer um gesto de apoio à ministra Rosa, que será a próxima presidente do STF (a partir de setembro de 2022). Demais disso, pode-se reverter em parte a decisão quando chegar a hora de a corte avaliar o mérito da questão (por enquanto, os ministros votaram apenas para manter a liminar de Rosa). 

Pela vontade do parlamentar alagoano, a ministra deveria rever a própria decisão ou o colegiado, cassar a liminar. É do interesse do triunvirato (Arthur Lira, Ciro Nogueira e Jair Bolsonaro) que o orçamento paralelo seja mantido e os pagamentos, retomados. Como moeda de troca, a fina flor da política canarinha concordaria com a transparência das emendas, mas somente daqui para a frente e preservando-se o sigilo da maracutaias feitas no biênio 2020/21.

A proposta é insultuosa e aviltante. Desrespeita a ministra Rosa, que não fala fora dos autos nem dá ousadia a político. Insulta o brasileiro em dia com o Fisco, que não participou da eleição para o Congresso imaginando que seriam enviados para Brasília parlamentares de segunda linha, com acesso a emendas orçamentárias convencionais, e congressistas do camarote governista, com direito a um aditivo de verbas públicas que cresce conforme a fidelidade ao eleitor vai se transformando em lealdade ao Planalto.

A negociação avilta a supremacia do Supremo, que ganha uma aparência de Congresso Nacional quando elefantes de toga encostam a barriga no balcão do prédio ao lado. Transparência parcial seria um engodo. E a preservação do orçamento paralelo permitiria ao governo continuar comprando apoio no Legislativo por meio da distribuição de cotas extras de emendas aos seus apaniguado.

Mas o jogo só acaba quando termina. Ainda que haja razões concretas para celebrar a decisão do STF, o consórcio Bolsolira ainda tem outras vidas. Atingido em cheio no seu poder imperial de distribuir dinheiro rápido e sigiloso em troca de votos, Lira agiu como se os membros do Judiciário estivessem sujeitos à mesma tutela que ele exerce sobre seus pares. Não colou. Mas isso não significa necessariamente que Bolsonaro desistirá das pedaladas e de avançar no vale-tudo fiscal para se reeleger. Essa caterva tentará aprovar um remendo de transparência para dar uma satisfação ao Supremo e tentar retomar o mecanismo. Se não colar, transferirão os recursos para outro tipo de emenda.

Mesmo com a inflação comendo solta e o desemprego galopante, o capetão-bolsolão está mais adiantado que a oposição na construção de seu palanque para 2022. Filiar-se ao PL do ex-presidiário do mensalão, que ameaçava deixar a base aliada para cair no colo de Lula, e ter o PP, que por muito tempo foi seu plano A, na chapa, indicando o vice. É o consórcio Bolsolira em ação.

As emendas do relator eram importantes para que o casamento fosse registrado em cartório, mas não eram condição sine qua non. Se conseguirem abrir a clareira fiscal no teto de gastos, outra inconstitucionalidade flagrante, além de um crime contra as contas públicas por que o país pagará pelas próximas décadas, Bolsonaro e Lira ganharão mais recursos para novas emendas (RP9 ou sejam lá quais forem) e também para promover um fundão eleitoral anabolizado de que PP e PL se beneficiarão.

Junte-se a isso a expectativa de ministros e parlamentares do Centrão de que o Auxílio Brasil tratará de resgatar Bolsonaro do limbo da popularidade, vai-se construindo, com a ajuda de uma oposição bastante atordoada, uma candidatura viável daquele que é o pior presidente da História do Brasil. Para evitar essa sucessão de descalabros, o Supremo tem sido o único bastião confiável, corajoso e cioso de seu papel. Oposição, TCU, PGR e o próprio Senado oscilam e por vezes não enxergam o que vai se configurando: o maior e mais caro estelionato eleitoral, para o qual vale dar calote em dívida judicial, arrombar o teto e sabe-se lá mais que truque

Como não ver isso?

Com Josias de Souza, Bela Megale, Malu Gaspar e Vera Magalhães