quinta-feira, 4 de novembro de 2021

CAMARÃO QUE DORME A ONDA LEVA

 

A oposição parece ter acordado para o fato de que estava ajudando a pavimentar uma estrada até então esburacada para a reeleição de Bolsonaro, com a trégua em várias frentes concedida ao presidente justamente no pior momento de seu governo.

Primeiro, foi a carta redigida por Temer quando o capetão ensaiou uma ruptura institucional. Em seguida, a oposição, PT à frente, rumava decidida para chancelar o Auxílio Brasil de R$ 400, incluído numa grande pedalada que também contempla calote nos precatórios e que pode ser uma catapulta a tirar o "mito" do fundo do poço da viabilidade eleitoral. Some-se a isso a grande probabilidade de que o aliado Augusto Aras sente em cima de boa parte do relatório final da CPI do Genocídio, e o resultado é o pior presidente de toda a história do Brasil de novo com viabilidade eleitoral (como se não bastasse o criminoso de Garanhuns em sua versão ex-corrupto).

Para não repetir o erro de cálculo da oposição a Lula em 2006, que decidiu não levar adiante o impeachment no auge do mensalão, achando que o petista seria cachorro morto nas urnas, a esquerda parece começar a acordar. O difícil será calibrar o discurso para justificar como votar contra a PEC dos Precatórios, em que foram embutidos todos os jabutis eleitorais de Bolsonaro — devidamente referendados por Paulo Guedes, vale lembrar.

Para os partidos de esquerda, defender o teto de gastos e a austeridade fiscal em detrimento de aumento do aporte a recursos sociais não é uma opção. Por isso a decisão será justificada pelo estelionato travestido de benesse social. Na outra ala da oposição, os partidos de centro e centro-direita que fazem o discurso da terceira via abrigam em seu seio parlamentares quinta-coluna que vira e mexe votam com o governo. Como se portarão PSDB, PSD, União Brasil, MDB e outros diante da ideia de rasgar o tão defendido teto de gastos? Nesse caso, a justificativa é diferente de PT e demais siglas de esquerda, mas eles também não podem ser favoráveis à PEC dos Precatórios, a maior pedalada fiscal já tentada.

Caso todos esses partidos, ainda que por caminhos opostos e razões diversas, percebam a urgência de abater Bolsonaro em seu voo de galinha, só o Centrão de Arthur Lira e Ciro Nogueira terá dificuldade em aprovar a emenda à Constituição. E a manobra pode fracassar já na Câmara, antes mesmo de o Senado — comandado pelo agora presidenciável assumido Rodrigo Pacheco — ser o anteparo.

Todo mundo com sensibilidade social sabe da necessidade de garantir transferência de renda a quem mais precisa, ainda mais depois de uma condução desastrosa da pandemia pelo desgoverno ainda em curso, que retardou as vacinas e agravou as consequências sanitárias e econômicas da crise. Usar isso como subterfúgio para resgatar do merecido limbo justamente o perpetrador dessa tragédia, que ainda hoje, com 606 mil mortos nas costas, segue proferindo declarações criminosas e mentirosas sobre vacinas e colocando em risco a vida das pessoas que deveria governar, é um daqueles planos diabólicos de cinismo político que de tempos em tempos mesmo as instituições e a oposição deixam ser levados adiante.

A CPI pode não resultar, de pronto, na justa e merecida condenação criminal de Bolsonaro e de seus asseclas pelos inúmeros e comprovados crimes cometidos em um ano e sete meses de horror. Mas foi fundamental para desnudar esses crimes perante o país. Aproveitar um momento de cochilo geral para dar justamente a esse presidente uma segunda chance é um vacilo que pode custar caro demais ao Brasil.

Com Vera Magalhães