terça-feira, 9 de novembro de 2021

ESPERTEZA QUANDO É MUITA VIRA BICHO E COME O DONO

 


Mesmo tendo cumprido a profecia do ex-chanceler Ernesto Araújo ao transformar a si e ao Brasil em párias internacionais, o ainda presidente desta banânia comemora o fato de "ser disputado" por três partidos

Em seu périplo turístico pela Europa, durante a passagem pela cidade italiana de Anguillara Veneta — terra de seus antepassados —, jactou-se nosso intrépido capitão: "São três namoradas, vamos assim dizer. Duas vão ficar chateadas. O PRB, antigo nome do Republicanos, o PL, e o PP. Cada dia um tá na frente na bolsa de apostas."

Após deixar o PSL e desistir de fundar sua própria legenda, o "mito" dos bolsomínions aninhou-se no Centrão e mantém com as siglas do grupo um relacionamento aberto, no qual ninguém é de ninguém e o Tesouro Nacional é de todos (de todos eles, bem entendido). No entanto, por uma estapafúrdia exigência de nossa estapafúrdia legislação eleitoral, Bolsonaro terá de se filiar a um partido para disputar a reeleição. 

Anteontem, ele teria escolhido o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, campeão no ranking de encrencados do falecido petrolão; hoje, optaria pelo PL do ex-presidiário do mensalão Valdemar Costa Neto; amanhã, porém, nada impede que caia nos braços do Republicanos, ramificação política da igreja Universal. Qualquer que seja a legenda escolhida, o cruzamento resultará em filhos com a feiura do Centrão e a esperteza do capitão. Ou vice-versa. Há de tudo neste namoro coletivo, exceto interesse público.

O sistema político-eleitoral brasileiro, como as engenharias de qualidade duvidosa, tem uma falha estrutural: o processo de escolha dos governantes procura contornar o debate sobre o que farão caso eleitos. E isso é potencializado pela esperteza dos diretamente interessados: quanto menos se antecipa o plano de ação, teoricamente mais liberdade de ação haverá.

A eleição brasileira de 2022 ameaça ser um caso típico. O espectro político está dividido em três grandes campos. Uns querem evitar a volta do ex-presidiário de Curitiba — ora com a ficha suja lavada a seco e gozando da estranha condição de ex-corrupto. Outros desejam impedir a continuidade do Messias que não miracula, que caga para a CPI e que tanto mal fez ao Brasil durante seus quase 3 anos no Planalto. Outros ainda propõem ao eleitor derrotar ambos — o que significa escolher algo ainda desconhecido, mas que, segundo esse campo, certamente será preferível às duas alternativas.

Vale destacar que uma situação análoga — falo do pleito plebiscitário de 2018 — obrigou-nos a apoiar o capetão para evitar a volta do presidiário, ainda que travestido num patético bonifrate. O problema é que trocamos o lulopetismo corrupto pelo bolsonarismo boçal.

Os políticos estão apenas escolhendo o caminho aparentemente mais fácil. Embora eu impute a culpa dessa desgraça ao "esclarecidíssimo eleitorado tupiniquim", é preciso levar em conta que, em situações como a do segundo turno de 2018, só restou ao votante, diante do descalabro geral, votar no “novo” (real ou construído no imaginário) em contraposição ao “velho”. Mas o problema com as consequências é que elas vêm depois, e a conta tem sido pesada.

A experiência brasileira com a democracia representativa instituída em 1984-85 não vem sendo boa. Os donos da pátria declaram dia sim outro também o apreço pela Carta de 1988, mas o produto do sistema por ela formalizado é uma cena persistente de baixo crescimento econômico, resiliência da desigualdade social e desorganização política.

Qual a conexão entre um método de escolha dos governantes baseado na rejeição e as imensas dificuldades para enfrentar os desafios históricos do Brasil? Toda. Um poder político não se sustenta só no convencimento pela força, precisa da força do convencimento. O processo de escolha do líder é a oportunidade para reunir a musculatura política necessária ao enfrentamento de interesses encastelados na economia e na política.

O governante que se acha esperto, e surfa só a rejeição do outro para ascender, enxerga rapidamente nos espelhos do palácio a imagem de um pato-manco prematuro, ocupado somente em sobreviver, enquanto observa o poder de decisão sobre as políticas governamentais ser retalhado por concorrentes que não foram eleitos para tal, mas reinam, por antiguidade, sobre o Estado real. E o problema se multiplica quando, por erros ou circunstâncias, tanto faz, ele entra num ciclo de dificuldades novas e crescentes. É a hora em que talvez olhe para trás e note a sabedoria do ditado, que dizem ser mineiro e segundo o qual "esperteza quando é muita vira bicho e come o dono".

Bolsonaro é cortejado mesmo ostentando taxa de reprovação de 53% e rejeição eleitoral de 59% no Datafolha. Por quê? Avalia-se que as verbas que o presidente tem a oferecer financiarão a eleição de grandes bancadas na Câmara. O tamanho da mordida nos fundos partidário e eleitoral é proporcional à dimensão da bancada de deputados federais. De resto, quanto maior for o número de cadeiras no Legislativo, mais incontornável será a chantagem fisiológica a ser feita ao próximo presidente, seja ele quem for.

As legendas namoram Bolsonaro de olho no patrimônio, não no matrimônio. "Quem anda com lobo, lobo vira, lobo é", uivou o delator do mensalão Roberto Jefferson depois que o seu PTB foi excluído do páreo. Jefferson insinua que a via monetária tem mão dupla. Sustenta que Bolsonaro e sua prole adquiriram o "vício nas facilidades do dinheiro público". Impossível discutir com um especialista.

Com Alon Feuerwerker e Josias de Souza