Na coluna desta semana, Dora Kramer pondera que as "excelências envolvidas no mais longo processo eleitoral da história recente" não atentam para um evidência basilar ao mergulharem desde já na discussão sobre a escolha dos companheiros de chapa de titulares que, a rigor, ainda não existem. Segundo a colunista, seria o mesmo que tentar tirar as meias sem descalçar os sapatos — um caso em que a ordem dos fatores compromete o resultado.
Com efeito. Ao não se darem conta do ato essencial sem o qual não se
chega às meias — que, na metáfora de Dora, corresponde à formação das chapas
e o arco de alianças a ser postas à disposição do eleitorado —, suas altezas deixam
de lado o exame das demandas da vida real dos brasileiros e concentram suas
atenções nos arranjos ornamentais internos que supostamente as levariam a
conquistar votos nesse ou naquele grupo social, em determinadas correntes
ideológicas, nessa ou naquela região do Brasil.
Tal inversão diz muito sobre o distanciamento entre representantes e representados, mas fala mais alto sobre como políticos, quando perdidos, meio sem saber como atingir o alvo, agarram com avidez uma chance de mudar de assunto, arquivar o principal e se dedicar com afinco ao acessório. Essa oportunidade surgiu com o balão de ensaio lançado pelo candidato ex-presidiário ao cogitar de uma composição com Geraldo Alckmin — cá entre nós, uma vergonha para o eterno picolé de chuchu, e que é algo fácil de falar, mas difícil de fazer. A empreitada pode até ter êxito, mas para tal será preciso Alckmin acreditar que não está sendo usado como objeto de ostentação para acenos ao centro.
O PT teria muito a ganhar, mas tucano já quase sem plumas estaria
trocando uma oportunidade de voltar (mais uma vez) ao Palácio dos Bandeirantes
pela vice-presidência numa hipotética eleição de Lula. Isso sem falar que ele muito provavelmente se sentiria um estranho no ninho, isolado e sem partido que
lhe dê sustentação — já que estaria trocando o poleiro tucano pelo sabe-se lá o que do PSB, onde seria cristão-novo. Nem todo mundo é como Bolsonaro, que se sentiu "em casa" no antro do ex-presidiário e mensaleiro Valdemar Costa Neto (também cá entre nós, o capetão ornaria melhor com o ambiente de um manicômio judiciário, sobretudo se estivesse vestindo uma camisa-de-força, mas cada dia sua agonia e cada coisa a seu tempo).
Difícil discordar quando Dora foca a extemporaneidade
dos debates sobre quem será vice de quem. É discutível que a companhia na chapa
renda votos ao titular, mas indiscutível, em alguns casos, a influência
no fator posicionamento de imagem. Em 2002, quando o sapo barbudo disputou a Presidência pela quarta vez (e finalmente conseguiu se eleger), a figura de José
Alencar acalmou o mercado, mas a tranquilidade precisou do reforço da Carta ao Povo
Brasileiro, que foi gestada e parida por Antonio Palocci, e só se
consolidou quando o molusco se manteve no caminho traçado pelo antecessor.
Aqui cabe abrir um parêntese para relembrar que Palocci foi co-fundador do PT e assumiu a coordenação da campanha de Lula em 2002, após o assassinato de Celso Daniel. Foi dele a ideia de lançar a famosa "Carta ao povo brasileiro", e foi ele quem coordenou a equipe de transição e angariou o respeito do empresariado ao longo da campanha. Palocci deixou o governo em 2006, após ser envolvido em denúncias que culminaram na quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa.
Mais adiante, convocado por Lula para ajudar a eleger Dilma, o médico ribeirão-pretano operou para angariar fundos junto às empresas que se beneficiaram dos governos petistas. A pedido do mentor a pupila nomeou Palocci ministro-chefe da Casa Civil em janeiro de 2011, mas ele deixou o cargo seis meses depois — quando vieram a público informações de que seu patrimônio havia aumentado 20 vezes entre 2006 e 2010 — e foi preso preventivamente em setembro de 2016, durante a 35ª fase da Lava-Jato.
No último dia primeiro, seguindo o lastimável exemplo do STF,
o ministro Jesuíno Rissato, do STJ, anulou as condenações
impostas pelo ex-juiz Sergio Moro a Palocci, Vaccari e outros 11 réus. Na elevada avaliação do eminente togado, as acusações diziam a respeito a crimes eleitorais, de sorte que a Justiça Federal de
Curitiba (leia-se Sergio Moro) não tinha competência para... enfim, foi
um lamentável repeteco da deplorável teratologia gestada pelo ministro Fachin e parida pelo
plenário do Supremo com a nítida intenção de restaurar o império da impunidade na política desta republiqueta
bananeira. E com isso eu fecho o parêntese.
Marco Maciel — maldosamente, mas nem por isso menos apropriadamente, apelidado de
"Mapa do Chile" e "Espanador da Lua" — acoplou
o centro e a direita à candidatura de FHC, o parteiro da abjeta reeleição, mas
seria um gesto ao vento sem o Plano Real. O baianeiro
Itamar Franco não fez marola na onda do caçador de marajás de araque, e
tampouco o vampiro do Jaburu levou eleitores a inesquecível (mas de nada
saudosa memória) nefelibata da mandioca. Mourão não levou os militares ao
capetão (até porque eles estariam lá de qualquer jeito), cuja lamentável
eleição se deveu a uma conjunção de desgraças que pode ser resumida como "desacerto geral entre a política e a sociedade".
Pode-se argumentar que no Brasil a escolha do vice seja importante pelo fato de oito deles — Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Delfim Moreira, Café Filho, João Goulart, José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer — terem assumido a Presidência. Mas e daí? Não fossem os vices, outros sucessores e outras formas de sucessão haveria. E aqui chegamos a um ponto de relevância para um debate sobre a real necessidade dessa figura nos tempos atuais. Para o reserva é ótimo: rende palácio à beira do lago, mordomias e, em caso de infortúnio do titular, até a Presidência. Mas para o país inexiste demonstração de que essa peça não se presta a mera decoração.
Quando não, à conspiração.
Continua na próxima postagem.