Não vejo como a desgraça alheia pode servir de consolo, mas
o fato é que em nossos mais verdes anos ouvíamos dos “mais velhos”, das
mestras, do vigário da paróquia et caterva que havia pessoas com problemas
muito piores que os nossos, que deveríamos nos
resignar com os desígnios do Senhor, e blá, blá, blá.
Dito isso, peço licença
para mandar essa matula de pseudossábios para a puta que a pariu. Até porque
dificilmente seria obra do Altíssimo o desgoverno ora em curso, capitaneado por
um psicótico que se autodeclara “cumpridor de missão divina”.
Alguém que, no
último domingo, ao comemorar seu 66º aniversário diante de uma seleta confraria
de apoiadores de raiz, colheu o ensejo para criticar (mais uma vez) as medidas
de restrição impostas pelos governos estaduais.
Se alguém tem culpa nesse
cartório, esse alguém é o eleitorado apedeuta, que não sabe, nunca soube e,
pelo visto, jamais aprenderá a votar.
Em meio à efeméride de domingo, also sprach Bolsonaro:
“Minha força vem de Deus e de vocês. Se
alguém acha que abriremos mão de nossa liberdade, está enganado. Alguns tiranos
tolhem a liberdade de vocês, mas podem contar com as forças armadas para
proteger e democracia e a liberdade. Estão esticando a corda. Faço qualquer
coisa pelo meu povo e esse qualquer coisa é o que está em nossa Constituição
Federal. Podem confiar na gente, vocês me deram esse voto de confiança.
Enquanto eu for presidente só Deus me tira daqui. Eu estarei com vocês. O que o
povo mais me pede é: eu quero trabalhar. O trabalho dignifica o homem e a
mulher, ninguém quer viver de favor do Estado. Quem vive de favor do estado,
abre mão de sua liberdade. Nós vamos vencer essa batalha. Estamos do lado
certo e do lado do bem. Não queremos que o Brasil mergulhe no socialismo, onde
o povo vai à miséria, fome e ao tudo ou nada. Não trilharemos esse caminho.
Acreditando em Deus e em vocês, em breve, o país estará no lugar de destaque
que merece”.
Diante de falastrices desse quilate, o silencio é mais
eloquente que palavras. Mas há coisas que, se não são ditas, ficam entaladas
na garganta como a maçã que a Bruxa Má
ofertou a Branca de Neve.
A
diferença é que nos contos de fada sempre há um príncipe — como aquele cujo
beijo despertou ressuscitou a Gata Borralheira
(ou Cinderela, ou Bela Adormecida), quebrando o encanto
conjurado pela invejosa madrasta da donzela — ao passo que na vida real não há
salvadores da pátria, apenas populistas sem caráter que ludibriam os apedeutas
para obter êxito em seus espúrios projetos de poder.
Em 1960, um dublê de advogado, professor de português e
pé-de-cana inveterado conseguiu se eleger Presidente do Brasil. No dia 31 de janeiro do ano seguinte, o dito-cujo foi empossado, e em 25 de agosto, depois de desgovernar o país por 206 dias, apresentou sua carta-renúncia,
pavimentando o caminho que levaria (como de fato levou) ao golpe militar de 1964, e resultaria (como de fato resultou) em 21 anos de ditadura militar.
Em março de 1985, Tancredo de Almeida Neves tornou-se o primeiro presidente civil da “nova república”. Quis o destino, porém, que ele baixasse ao hospital 12 horas antes da cerimônia de
posse e viesse a falecer (ou a ser dado como morto, melhor dizendo) 38 dias e 7
cirurgias depois. Sua morte privou esta Nau dos Insensatos de ter
um estadista na cabine de comando e pôs em seu lugar um obelisco da política de cabresto
coronelista nordestina.
Quatro anos depois, um caçador de marajás de araque derrotou
o demiurgo de renunciadouns na primeira eleição presidencial direta desde
1960, mas acabou renunciando às vésperas do julgamento
de seu processo de impeachment e sendo substituído pelo baianeiro Itamar Franco, que se notabilizou por articular a ressureição do Fusca e posar para fotos ao lado de uma modelo avessa ao uso de calcinhas. Mas foi durante seu mandato-tampão que o dublê de ministro da
Fazenda e primeiro-ministro informal Fernando
Henrique Cardozo implementou o bem-sucedido Plano Real, que lhe garantiu a vitória em primeiro turno no pleito
presidencial de 1994.
Após uma série de articulações iniciadas em 1995, o rolo compressor governista comprovou sua força. Uma Proposta de Emenda Constitucional aprovada
na Câmara por 369 votos a 11 estendeu
a reeleição — apenas uma
vez para um mandato subsequente e sem restrição para pleitos não consecutivos — aos chefes dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais e respectivos vices. Em 13 de maio de
1997 a PEC foi chancelada
pelo Senado, e como quem
parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é burro ou não tem arte, o
grão duque tucano foi o primeiro a se beneficiar dessa “conquista”, reelegendo-se no primeiro turno do pleito de 1998.
Na sequência, vieram Lula (eleito em 2002 e reeleito em 2006, a despeito do escândalo do
Mensalão), seguido de seu poste (eleita em 2010 e reeleita em 2014). A roubalheira desbragada havida durante o governo do parteiro
do Brasil Maravilha e a incompetência chapada da nefelibata da mandioca transformaram
a mais alta cúpula do Poder Judiciário
no último bastião das esperanças dos cidadãos de bem deste país.
Mas essa dupla dinâmica nomeou 8 dos 11 togados supremos, e estes, somados a Alexandre de Moraes (que
ganhou a suprema toga do vampiro do Jaburu) e, mais
recentemente, ao desembargador bolsonarista Kássio Nunes
Marques (indicado para a vaga do decano Celso de Mello por ter “tomado muita tubaína” com Jair Bolsonaro), constituem a pior composição de toda a história do Supremo Tribunal Federal.
Como desgraça pouca é bobagem, o lulopetismo corrupto deu azo ao bolsonarismo boçal. Para impedir
que o então presidiário de Curitiba voltasse de mala e cuia para o Palácio do
Planalto — ainda que travestido num patético bonifrate —, a parcela pensante do
eleitorado se juntou à capela de miquinhos amestrados do capitão da caverna sem
luz, que foi eleito presidente em 28 de outubro de 2018. O que não se imaginava
(ou a maioria dos brasileiros não imaginava) é quão nefasta seria a gestão do dublê de mau militar e parlamentar medíocre que não nasceu para ser presidente
(embora venha movendo mundos e fundos para continuar presidente até sabe Deus
quando).
No primeiro ano de seu desditoso mandato, a despeito de seus
esforços e graças ao empenho do então presidente da Câmara, o Congresso aprovou
a PEC
da Previdência. As demais reformas estruturais — com destaque para a Tributária e a Administrativa —, que jamais empolgaram o chefe do Executivo, foram empurradas para as calendas pela maior tragédia sanitária da história deste
país. Assim, Bolsonaro passou de mandatário inepto à personificação de uma catástrofe anunciada, com potencial
para desbancar o descalabro administrativo gestado e parido pela gerentona de
araque. A magnitude da imprestabilidade de seu governo surpreendeu até seus desafetos
mais pessimistas.
E o que era ruim ficou ainda pior com o
coronavírus. Em pouco mais de um ano contado a partir do início da pandemia e às
vésperas da nomeação do quarto
ministro da Saúde, a Covid produziu quase 300 mil cadáveres e continua matando em escala
industrial. Na última semana, o país registrou 2.255 mortes, em média, a cada 24 horas, e contabilizou um total de 12 milhões
de infectados (dos quais 10,5 milhões se recuperaram).
A dança
das cadeiras na Saúde — a pasta mais importante durante uma pandemia
viral — produziu efeitos tão esperados quanto indesejáveis. Depois de demitir Mandetta e extrair a
fórceps o pedido
de demissão de seu sucessor (que não chegou a completar um mês no
cargo) por não cumprirem suas ordens contra o isolamento social e a defesa do
uso da cloroquina no tratamento dos pacientes, Bolsonaro nomeou ministro interino um general da ativa cujo currículo não exibe sequer um mísero certificado
de conclusão de curso por correspondência de balconista de farmácia. Mas o capitão foi buscá-lo no “banco
de talentos” do Exército, ao qual recorre sempre que precisa de um “solucionador de problemas” e “gestor” —
termos que na linguagem da caserna também significam “cumpridor de ordens”.
A “missão” de acatar determinações que vão contra
autoridades internacionais da saúde guindaram o propalado “gênio da logística” à
condição de investigado no STF. Assim que deixar o ministério, Pazuello perde o direito ao foro especial por prerrogativa de função, e o
inquérito que o investiga deve ser remetido à 1ª Instância da Justiça Federal de Brasília, a menos que seu suserano encontre uma maneira de
blindá-lo.
Cogitou-se elevar a Secretaria de Assuntos Estratégicos ao status
de ministério, mas quem a comanda atualmente é o almirante Rocha, que resiste à ideia, apoiado por militares do
governo. Pensou-se em criar o Ministério Extraordinário da Amazônia — o
que esvaziaria também os poderes do general
Mourão, que comanda o Conselho Nacional da Amazônia e com quem o capitão
das trevas tem uma péssima relação.
O impasse ainda não tem solução, e o duplo
comando da pasta — com Pazuello, que
ainda não foi exonerado, e Queiroga, indicado há mais de uma semana,
mas que ainda não foi empossado — tem sido criticado poe governadores,
ministros do STF e secretários de
saúde dos Estados. O motivo dessa situação inusitada é o desgaste do general junto
aos militares da ativa, que veem sua atuação à frente da Saúde como um desastre
para a imagem da força.
Paralelamente, Queiroga — para quem “Ministro da Saúde executa a política do
Presidente” —, que sequer foi empossado, também vem sendo alvo de críticas, inclusive
no âmbito do Planalto. Segundo interlocutores, ele “tem falado muito e mostrado pouco”.
Mas não é só: uma matéria publicada
pela revista eletrônica Crusoé dá
conta de futuro ministro foi réu por apropriação indébita
previdenciária referente ao período em que administrou o Hospital Prontocor — cuja dívida com a União, em valores atualizados,
ultrapassa R$ 25 milhões. A ação foi julgada improcedente em primeira instância,
mas o MPF recorreu ao TRF da 5ª Região.
A julgar pelos critérios que balizam Bolsonaro na
escolha de ministros de Estado e indicações para o STF, o fato de o futuro de Queiroga ter (ou não) contas a acertar
com a Justiça é de somenos. Vejam que, ainda candidato, o hoje (ainda)
presidente prometeu travar uma cruzada contra a corrupção, mas bastou ver a merda bater nos beiços de Zero “Rachadinha”
Um para enfiar a bandeira de campanha em local incerto e não sabido e cometer
atos nada republicanos (mas e daí?) para blindar o primogênito.
O próprio Bolsonaro — que disse ter acabado com a Lava-Jato porque não existe mais corrupção no governo — é investigado por “suposta” interferência indevida na PF e suspeito da prática de rachadinha quando deputado federal. De acordo com reportagem do UOL,
assessores que trabalharam em seu gabinete na Câmara receberam R$ 764 mil, entre salários e
benefícios, e retiraram R$ 551 mil em dinheiro — valor semelhante ao sacado pelos funcionários de Flávio.
À colunista Juliana Dal Piva, do UOL, o ex-PGR Cláudio Fonteles afirmou que, se Augusto Aras quisesse, Bolosnaro poderia ser investigado pelo esquema de rachadinhas. “A meu juízo pode ser aberto um procedimento de investigação que pode
ser concluído. Se o procurador achar que não há crime, ele pode se manifestar
pelo arquivamento. Agora, se ele entender que há fatos para acusar, ele precisa
aguardar que o presidente saia do cargo”, disse o ex-procurador.
Na semana passada,
o deputado federal Marcelo Freixo
pediu à PGR que investigue as
revelações feitas sobre ex-assessores do Presidente.
De acordo com o parlamentar, os fatos apontados pela reportagem indicam que o
esquema ilegal implantado no gabinete de Flávio
Bolsonaro na Alerj, investigado
pelo MP-RJ, pode ter sido usado também
pelo então deputado Jair na Câmara Federal.
Vale lembrar que o caso de Flávio
(que envolve Fabricio Queiroz e Márcia Aguiar) não é o único que
preocupa o clã. Os outros três rebentos —
inclusive o mais novo, que não tem sequer mandato eletivo — estão mais enrolados que fumo de corda em balcão de armazém. Como se
costuma dizer, o fruto não cai muito longe do pé.
Para arrematar o raciocínio que comecei a alinhavar no parágrafo
de abertura, relembro que em 2008 o Brasil passou ao largo da crise que
arrastou os EUA e a Europa para o fundo do poço. No ano seguinte, a revista The Economist publicou uma
capa histórica,
em que o Cristo Redentor decolava do
topo do Corcovado. Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca
termine. Em edição posterior, The
Economist retratou o Cristo caindo como foguete pifado. E não sem razão.
Hoje, devido à
disparada do dólar (entre outros fatores), nosso país ocupa a 12ª posição no
ranking das economias globais — abaixo, inclusive, da que ocupava em 2005. O ex-Posto Ipiranga Paulo Guedes tem sido um contraponto
valioso ao desvario negacionista que infecta o governo, mas um de
seus adversários é o próprio Bolsonaro, que, com sua visão corporativista,
atrasada e eleitoreira, desfigurou a PEC
Emergencial para eliminar pontos que desagradavam seus apoiadores de raiz,
mas que seriam positivos para o controle das contas públicas.
Num cenário em
que o presidente joga contra o próprio governo, resta apenas torcer para que, independentemente
dele, seja implementada uma vacinação em massa a todos os brasileiros e que o
Congresso, por sua própria iniciativa, abrace a acertada pauta do ministro da
Economia. Só assim o Brasil terá chance de reencontrar o caminho do crescimento.
Pontofinalizando — aí volto a dizer que não serve de consolo
—, reproduzo a seguir um texto publicado na edição desta semana da revista
Veja, sob o título “LUZ EM MEIO À
DESESPERANÇA”:
Poucas vitórias vêm carregadas de tanto horror e
devastação quanto a que mantém Bashar
al-Assad na Presidência e no controle da Síria após dez anos de guerra
civil, completados na segunda-feira 15. Partindo de manifestações pacíficas por
democracia na cidade de Deraa, reprimidas com extrema violência, opositores de Assad desencadearam uma revolta
nacional que viria a envolver Rússia, Irã, Turquia, Estados Unidos e, a certa
altura, faria o país ser retalhado em pedaços controlados por diversas facções
rivais — sendo a pior delas o “califado” instalado pelo Estado Islâmico (outro
pesadelo). Assad desmantelou um por
um, sistematicamente, recorrendo a todo tipo de brutalidade, inclusive
massacres chocantes à base de armas químicas. Com focos de resistência ainda presentes
em alguns bolsões, o presidente retomou o domínio de boa parte da Síria, hoje
uma nação em ruínas, onde a população faz fila por pão e gasolina e a moeda
perdeu 99% de seu valor. Mais cruel, porém, é a catástrofe humanitária. Mais de
10 milhões de sírios deixaram suas casas e boa parte vive espremida em campos
de refugiados, onde soltar balões ajuda a esquecer o frio e as más acomodações.
Segundo a ONG Observatório Sírio dos
Direitos Humanos, 400 000
pessoas morreram no conflito, conta que não inclui 200 000
desaparecidos e 90 000
presos em centros de detenção.
Segundo o Unicef, 12 000 crianças perderam a vida e uma geração inteira está sendo dizimada. Aferrado ao palácio, Assad prepara a reeleição, em votação
prevista para abril ou maio