sexta-feira, 4 de outubro de 2024

A CAIXA DE PANDORA — O MITO E A REALIDADE

NÃO ESPEREIS O JUÍZO FINAL; ELE SE REALIZA TODOS OS DIAS.

 

"Abrir a Caixa de Pandora" é uma metáfora para ações que desencadeiam consequências maléficas e irreversíveis. 

Segundo a mitologia grega, Pandora ("aquela que tem todos os dons") foi criada por Hefesto e Palas Atena a mando de Zeus, que queria castigar Prometeu ("aquele que pensa antes") por roubar o fogo dos deuses e dá-lo aos homens. 

Depois de ganhar um dom de cada divindade de Olimpo, Pandora recebeu de Zeus uma caixa que jamais deveria ser aberta e a missão de seduzir Epimeteu ("aquele que pensa depois"). Encantado com a beleza da moça e ignorando as advertências do irmão, Prometeu, sobre aceitar presentes do deus dos deuses, Epimeteu tomou a moça como esposa (e eu que achava que "presente de grego" tinha a ver com a lenda do Cavalo de Troia). 
 
Quando criou a mulher, Deus também criou a curiosidade. A curiosidade levou Pandora a abrir a caixa e libertar todos os males que recaíram sobre a humanidade. Mas a esperança, que é "a última que morre", ficou presa no fundo da caixa, talvez para nos dar forças para lutar contra as adversidades, mesmo que o mal muitas vezes vença o bem.
 
Revisito essa fábula por três motivos: 1) sempre gostei de mitologia; 2) muita gente usa essa metáfora sem saber sua origem; 3) insistir no erro esperando produzir um acerto é a melhor definição de imbecilidade que eu conheço. 
 
Em momentos distintos da ditadura, Pelé e o general Figueiredo alertaram para o perigo de misturar brasileiros com urnas em eleições presidenciais. Ambos foram muito criticados, mas o tempo provou que eles estavam certos. O eleitores fazem nas urnas, a cada dois anos, o que Pandora fez uma única vez. Só que não por curiosidade, e sim por ignorância. E como ensinou o Conselheiro Acácio (personagem do romance O Primo Basílio), as consequências vêm sempre depois. 
 
A ditadura militar resultante do golpe de 1964 durou 21 longos anos. A reabertura, lenta e turbulenta, não se deveu ao "espírito democrático" dos presidentes-generais Geisel e Figueiredo, mas ao ronco das ruas e à pressão da imprensa, que se intensificaram em 1984, depois que uma manobra de bastidor sepultou a emenda Dante de Oliveira

Em janeiro do ano seguinte, Tancredo Neves derrotou Paulo Maluf por 480x180 votos de um colégio eleitoral formado por 686 deputados, senadores e delegados estaduais. A exemplo da Viúva Porcina (aquela que foi sem nunca ter sido), Tancredo entrou para a história como nosso primeiro presidente civil desde João "Jango" Goulart, mas baixou ao hospital horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois.

A raposa mineira levou para a sepultura a esperança de milhões de brasileiros e deixou de herança um neto que envergonharia o país e um mix de puxa-saco dos militares, oligarca da politica de cabresto nordestina, escritor, poeta e acadêmico que se chamava José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mas era conhecido como José Sarney

Sem o carisma e o traquejo administrativo do finado, Sarney tentou descascar o formidável abacaxi econômico (inflação, dívida externa e desemprego nas alturas) através de uma série de pacotes de medidas econômicas baseadas no congelamento de preços e salários. Ao final de sua aziaga gestão, a inflação estava em 4.853% ao ano, mas os prefeitos haviam voltado a ser eleitos diretamente, a Constituição Cidadã fora promulgada (aumentando de 4 para 5 a duração de seu mandato) e a primeira eleição presidencial direta desde 1960, realizada.   
 
Em 15 de novembro de 1989, o cardápio de postulantes ao Planalto oferecia 22 opões, incluindo Ulysses Guimarães, Mário Covas e Leonel Brizola. E o que fez esclarecido eleitorado ao quebrar o jejum de urna de 29 de urna? Escalou Lula e Fernando Collor para disputar o 2º turno. O caçador de marajás de mentirinha venceu o desempregado que deu certo, mas o envolvimento no esquema PC lhe rendeu um impeachment.
 
Observação: Em maio do ano passado, o STF condenou Collor a 8 anos e 10 meses de reclusão, mas ele continua livre, leve e solto graças a um pedido de vista apresentado pelo ministro Dias Toffoli na véspera do último carnaval. Em contrapartida, qualquer "reles mortal" que acessar o Xwitter durante a suspensão ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes corre o risco de ser multado em R$ 50 mil. Dá para acreditar numa coisa dessas?
 
Com a deposição do Rei-Sol, o baianeiro e namorador Itamar Franco foi promovido a titular, nomeou Fernando Henrique ministro da Fazenda e editou o Plano Real, cujo sucesso pavimentou o caminho que levou o grão-duque tucano a vencer o pleito presidencial de 1994 no 1º turno. Em 1997, picado pela mosca azul, sua alteza comprou a PEC da reeleição

Como quem parte, reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não tem arte, o tucano de plumas vistosas disputou a reeleição em 1998 e foi eleito no 1º turno, mas em 2002, sem novos truques para tirar da velha cartola, não conseguiu eleger seu sucessor.
 
Após três derrotas consecutivas, Lula venceu José Serra e deu início aos 13 anos, 4 meses de 12 dias de lulopetismo corrupto que só foi interrompidos em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, a inolvidável gerentona de araque

Num primeiro momento, a troca de comando pareceu uma lufada de ar fresco numa catacumba: depois de mais de uma década ouvindo garranchos verbais de um ex-retirante semianalfabeto e frases desconexas de uma mandatária incapaz de juntar lé com cré numa frase que fizesse sentido, ter um presidente que sabia falar – e que até usava mesóclises – era um refrigério.
 
Temer conseguiu reduzir a inflação (que havia retornado firme e forte sob Dilma) e aprovar o Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, mas seu prometido "ministério de notáveis" se revelou uma notável agremiação de corruptos e sua "ponte para o futuro", uma patética pinguela. 

A conversa de alcova gravada à sorrelfa por Joesley Batista só não derrubou o vampiro do Jaburu porque sua tropa de choque – capitaneada pelo deputado Carlos Marun – comprou votos das marafonas da Câmara para escudá-lo das "flechadas de Janot". Apesar do desgaste, o nosferatu claudicou como "pato manco" até o final do mandato-tampão e transferiu a faixa para Jair Bolsonaro. 
 
Sem a proteção do manto presidencial, o vampiro que tinha medo de fantasma chegou a ser preso, mas foi socorrido pelo desembargador Ivan Athié, então presidente da 1ª Turma do TRF-2, que havia sido afastado do cargo durante 7 anos por suspeitas de corrupção e venda de sentenças, mas fora reintegrado em 2011, quando o STF trancou o processo contra ele. E viva a Justiça brasileira!
 
Ao acompanhar o golpe de Estado que levou Napoleão III ao poder, Karl Marx concluiu que a história acontece como tragédia e se repete como farsa. O Barão de Itararé dizia que político brazuca é um sujeito que vive às claras, aproveita as gemas não despreza as cascas, e o saudoso maestro Tom Jobim (que era brasileiro até no nome), ensinou que o Brasil não é para principiantes. E com efeito. 
 
Em 2018, havia 13 postulantes ao Planalto. Nenhum deles empolgava, é verdade, mas por que se arriscar a acertar com Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, Henrique Meirelles ou João Amoedo quando se podia pode errar com certeza escalando para o embate final um mau militar e parlamentar medíocre travestido de "outsider antissistema" e um patético bonifrate do então ex-presidiário mais famoso do Brasil?

Em 2022, as opções era ainda menos atraentes, sobretudo depois que o "establishment" eliminou Sergio MoroJoão Dória e Eduardo Leite da quimérica "terceira via". Mas, de novo, por que correr o risco de acertar votando em Simone Tebet, em Felipe D'ávilaou mesmo em Ciro Gomes (situações desesperadoras justificam medidas desesperadas) quando se podia errar com certeza despachando Lula e Bolsonaro para o 2º turno?
 
Tanto num caso como no outro a maldita polarização fez com que tanto a merda quanto as moscas fossem as mesmas. A diferença foi que em 2018 a parcela minimamente pensante do eleitorado se viu obrigada a apoiar o ex-capitão para evitar que o país fosse presidido pelo fantoche do presidiário, e em 2022, embarcar na falaciosa "Frente Democrática", capitaneada pelo então ex-presidiário "descondenado" para evitar mais 4 anos (ou sabe Deus quantos) sob a batuta do refugo da escoria da humanidade.
 
Há males que tempo cura e males que vêm para pior e com o passar do tempo. Lula 3.0 é uma reedição piorada das versões 1 e 2, e como como nada é tão ruim que não possa piorar, o macróbio petista cogita disputar a reeleição em 2026 (que os deuses nos livrem tanto dessa desgraça quanto da volta do capetão-golpista).
 
As consequências da inconsequência do eleitorado tupiniquim são lamentados todos os dias, inclusive por quem abriu a Caixa de Pandora achando que estava escolhendo o menor de dois males, mas isso só se justifica quando e se não há outra opção. E tanto em 2018 quanto em 2022 havia alternativas; só não viu quem não quis ou não conseguiu porque sofre do pior tipo de cegueira que existe. 
 
Observação: Um levantamento feito pelo portal g1 apurou que 61 pessoas com mandados de prisão em aberto (leia-se fugitivos da polícia) se candidataram a prefeito ou a vereador nas eleições deste ano. A maioria dos casos envolve dívida de pensão alimentícia, mas há suspeitos de estelionato, roubo, homicídio e estupro. 
 
Reza uma velha (e filosófica anedota) que Deus estava distribuindo benesses e catástrofes naturais pelo mundo que acabara de criar, quando um anjo apontou para o que seria futuramente o Brasil e perguntou: "Senhor, por que destinastes a essa porção de terra clima ameno, praias e florestas deslumbrantes, grandes rios e belos lagos, mas não desertos, geleiras, vulcões, furações ou terremotos?" E Deus respondeu: "Espera para ver o povinho filho da puta que vou colocar aí."
 
Políticos incompetente e/ou corruptos que ocupam cargos eletivos não brotam nos gabinetes por geração espontânea; se eles estão lá, é porque foram eleitos por ignorantes polarizados, que brigam entre si enquanto a alcateia de chacais se banqueteia e ri da cara deles. 
 
Einstein achava que o Universo e a estupidez humana eram infinitos, mas salientou que, quanto ao Universo, ele ainda não tinha 100% de certeza. Alguns aspectos de suas famosas teorias não sobreviveram à passagem do tempo, mas sua percepção da infinitude da estupidez humana merece ser bordada com fios de ouro nas asas de uma borboleta. 
 
Não há provas de que boas ações produzam bons resultados – a "lei do retorno" é mera cantilena para dormitar bovinos – mas sabe-se que más escolhas costumam gerar péssimas consequências, como prova e comprova a história desta republiqueta de bananas: nossa independência  foi comprada, a Proclamação da República foi um golpe militar (o primeiro de muitos), o voto é um "direito obrigatório", nossa democracia é uma piada e o sistema político está falido. 
 
Desde 1889, 35 brasileiros alcançaram a Presidência pelo voto popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (o número depende de como alguns casos específicos, como presidências muito breves ou interinas, mas isso não vem ao caso neste momento). Oito integrantes dessa seleta confraria – começando pelo primeiro, Deodoro do Fonseca – deixaram o cargo prematuramente, e dos cinco que foram eleitos pelo voto direto desde a redemocratização, dois acabaram impichados. 

Dos mais de 30 partidos políticos que mamam nas tetas dos fundos eleitoral e partidário (ou seja, são bancados pelo suado dinheiro dos "contribuintes"), nenhum representa os interesses da população, e alguns são verdadeiras organizações criminosas. 

O Brasil de hoje lembra aquelas fotos antigas de reis africanos, que imitavam os trajes e trejeitos dos governantes de nações mais evoluídas e recebiam aulas de civilização dos oficiais do Império Britânico, mas achavam que para se transformar em soberanos civilizados bastava copiar as vestes e adereços daqueles que lhes falavam das maravilhas da Rainha Vitória ou de Napoleão III. 

O resultado se vê nas fotografias. As mais clássicas mostram negros magros, ou gordíssimos, com uma cartola de segunda-mão na cabeça, calças rasgadas ou remendadas, pés descalços ou calçados com uma bota só, velha e sem graxa. Imaginavam-se nobres, esses coitados, iguais a seus pares europeus, mas, junto com as novas roupas e os acessórios, continuavam usando colares feitos de ossos, pulseiras de metal e argolas na orelha ou no nariz, enquanto eram roubados até o último papagaio pelos que supostamente vieram ensiná-los a ter valores cristãos, avançados e democráticos.
 
O Brasil aparece na foto como uma democracia de Primeiro Mundo, mas a realidade do dia a dia mostra pouco mais que uma cópia barata e malsucedida do artigo legítimo. Nossas eleições são subordinadas a todo tipo de patifaria, do voto obrigatório ao anacrônico horário eleitoral "gratuito", passando por deformações propositais que entopem a Câmara Federal com políticos das regiões que têm meia dúzia de eleitores. 

O resultado é um monumento à demagogia, à corrupção e à estupidez. Acordos políticos são urdidos na surdina por parlamentares que votam com base em seus interesses pessoais. Milícias e fações criminosas têm representantes no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais e nas Câmaras Municipais. Candidatos só entram em algumas regiões se tiverem proteção dos criminosos, e os moradores são "convidados" a votar na "turma da casa".
 
Os direitos dos cidadãos representam a área mais notável das semelhanças com reis africanos. Nunca houve tantos direitos escritos nas leis nem o poder público foi tão incompetente para mantê-los. O Congresso não representa o povo que o elegeu para tal, e há uma recusa sistemática em combater o crime por parte de nove entre dez políticos com algum peso. Com quase 50 mil assassinatos por ano, o Brasil é um dos países onde a vida humana tem menos valor. 
 
Se nossas instituições funcionassem – e suas excelências não se cansam de dizer que elas funcionam –, a Câmara teria aberto pelo menos um dos quase 150 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, e o Centrão não teria transformado a ocupação do Orçamento num processo de bolsonarização das instituições. Pode passar pela cabeça de alguém que exista democracia num país como esse? 
 
Quando nossos nobres parlamentares perderam a credibilidade e o mais alto cargo do funcionalismo público federal passou a ser ocupado por uma sequência de mandatários que, noves fora Fernando Henrique — já foram presos ou respondem a processos criminais, o Judiciário se tornou nosso último bastião. Mas faz tempo que as opiniões e os vieses político-partidários dos eminentes togados (que deveriam ser isentos, imparciais e apartidários) se tornaram públicos e notórios.
 
O Supremo poderia nos ter livrado do aspirante a golpista em diversas oportunidades (motivos para tal não faltaram), mas as excelências que tudo decidem – do destino dos presidentes ao furto de codornas — acharam melhor dar tempo ao tempo, apostando na sapiência inigualável dos eleitores. 

É fato que Alexandre de Moraes impediu a consumação do golpe, mas também é fato que ele já deveria ter tirado de circulação o "mito" dos extremistas de direita, que mesmo inelegível até 2030 faz pose de cabo eleitoral de luxo e articula com seus comparsas no Congresso uma improvável (mas não impossível) anistia a si e aos golpistas do 8 de janeiro. 
 
Como o chanceler Charles De Gaulle não disse, mas a frase lhe é atribuída, "le Brésil n’est pas un pays serieux". 
 
Continua...