sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

ATÉ QUANDO, CATILINA, ABUSARÁS DA NOSSA PACIÊNCIA? (CAPÍTULO V)


Bolsonaro já mirava o Planalto em 2014, mas Ciro Nogueira, dono do PP (e hoje ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República) achou que bancar a candidatura de seu filiado seria uma canoa furada e apostou suas fichas em Dilma. O capetão migrou para o PSC, que também lhe negou legenda para concorrer ao Planalto. 

Sem alternativa, Bolsonaro renovou o mandato de deputado e compreendeu que teria mais chances numa sigla menor. Depois de flertar com o PEN, foi levado por Bebianno ao então nanico PSL e, por uma tão formidável quanto improvável conjunção de fatores, acabou no Palácio do Planalto. Passados três anos da posse, o pior mandatária da Nova República (sorry, Dilma) amarga índices de reprovação e rejeição estratosféricos. Sua tão ambicionada reeleição claramente subiu no telhado. Mesmo que ainda seja cedo para dizer que o quadro é irreversível, é nítido que o governo respira por aparelhos.  

É evidente que a pandemia não estava no programa, mas isso não muda o fato de que a postura negacionista, a incompetência chapada, a falta de empatia, a aversão ao batente e tantas outras “virtudes” do mandatário que não é capaz sequer de tirar água de uma bota, mesmo que as instruções venham impressas no calcanhar, produziram a tempestade perfeita

Como todo populista demagogo que se preza, Bolsonaro conta com um séquito de fanáticos tão descolados da realidade quanto ele próprio, mas essa caterva não é numerosa o bastante para evitar que seu "mito" seja derrotado nas urnas. Em 2018, ainda que as promessas de palanque do candidato do PSL fedessem a estelionato eleitoral, a perspectiva de ver o país governado por uma marionete de presidiário levou uma porção significativa do eleitorado a tapar o nariz e cravar 17, sem imaginar que estava libertando um efrite da garrafa. Senão vejamos:

- Para provar que era amigo do mercado e obter o apoio dos empresários, o estatista que acreditava em Estado grande e intervencionista, que sempre lutou por privilégios para corporações que se locupletavam do Estado havia décadas foi buscar Paulo Guedes, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 

- Para provar que era inimigo da corrupção e obter o apoio da classe média, o deputado do baixo clero, adepto da baixa política e amigo de milicianos, foi buscar Sergio Moro, que embarcou em uma canoa que deveria saber furada. 

- Para obter o apoio das Forças Armadas, o ex-capitão agressivo e falastrão, que foi enxotado da corporação por indisciplina e subordinação, foi buscar legitimidade em uma fieira de generais, que embarcaram em uma canoa que deveriam saber furada.

Uma vez empossado, Bolsonaro obrigou Moro a reverter uma nomeação, tomou-lhe o Coaf, forçou-o a substituir um superintendente da PF, esnobou seu projeto anticorrupção e, vendo que o ex-juiz não se sujeitaria ao papel de consultor jurídico informal de sua filharada enrolada (*), obrigou-o não só a engolir os sapos como também a beber a água turva da lagoa. Moro fingiu não ver, tentou relativizar, mas acabou abandonando a canoa para salvar o prestígio que ainda lhe restava.

(*) Em três casamentos, o presidente que acabou com a Lava-Jato porque “não tem mais corrupção no governo teve quatro filhos e uma filha. Desses, somente Laura, que tem 11 anos, não é alvo de investigações. Afora o célebre caso de Zero Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Renan Bolsonaro, que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como o Congresso e o Supremo.

Bolsonaro desautorizou Guedes incontáveis vezes, sabotou seus projetos e, com o Centrão, enterrou de vez sua agenda econômica. Em vez de aprender com MandettaMoro e Teich a sair da canoa antes que ela virasse, o patético Posto Ipiranga se espelhou em Pazuello e virou uma espécie de dublê de bonifrate e zero à esquerda.

As Forças Armadas, cujo comportamento irrepreensível ao longo das últimas três décadas desfez a imagem negativa associada aos 21 anos de ditadura, perdeu boa parte da admiração e do respeito dos brasileiros. Alguns fardados de alta patente parecem ter desaprendido que, num governo civil, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não devem obediência cega ao "comandante-em-chefe", e que tampouco é papel das FFAA salvar o presidente de turno, pois sua lealdade maior é com o país. Já passou da hora de os militares desembarcarem dessa canoa furada.

Aparentemente, esse cenário está mudando. Segundo Eliane Cantanhêde, depois de um mergulho temerário no bolsonarismo, dos solavancos que levaram à demissão de toda a sua cúpula e dos vexames do general Eduardo Pazuello e seus coronéis na Saúde, as FFAA submergiram, mas agora voltam à tona sob aplausos de boa parte da opinião pública, que andava ressabiada com os fardados.

Dias atrás, o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, disse que a carta divulgada em resposta às declarações de Bolsonaro sobre a vacinação de crianças contra a Covid representa a “coletividade” da agência

Não é trivial que na mesma semana um contra-almirante da Marinha reaja a acusações levianas do presidente e o comandante do Exército emita diretrizes em perfeita discordância com o que o presidente prega o tempo todo na pandemia. Até os militares estão perdendo a paciência com o capitão insubordinado. 

Observação: Cantanhêde pondera que Pazuello desmereceu o Exército ao fazer papel de bobo na Saúde enquanto o sultão do bananistão e seu gabinete paralelo mandavam e coronéis da pasta se metiam em escândalos; que Barra Torres teve um mau momento sem máscara numa aglomeração com Bolsonaro, mas agora dá mostras de lealdade à agência, seus quadros e decisões técnicas. Já o Exército incomodou o presidente com diretrizes de combate à pandemia. Bolsonaro queria um desmentido quanto às fake news e à exigência de vacinas, mas o general Paulo Sérgio lhe explicou num café da manhã que apenas alinhou suas medidas com as da Defesa.

Segundo recente levantamento feito pelo g1, dos 58 compromissos assumidos durante a campanha, Bolsonaro cumpriu integralmente apenas 20, o que corresponde a 34% do total. Outros 19% foram cumpridos apenas parcialmente, e 47% não foram cumpridos até o momento (e provavelmente não serão).

Magalhães Pinto dizia que “política é como as nuvens; a gente olha e elas estão de um jeito, olha de novo e elas já mudaram”. Com os instrumentos que lhe dão o cargo e sua base de apoio, Bolsonaro ainda tem chances de passar ao segundo turno.

Continua...