quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

DO LIMÃO À LIMONADA


A estratégia é antiga, mas funciona. Bolsonaro a explorou com maestria em 2018, quando, num ato de campanha em Juiz de Fora, a um mês do primeiro turno das eleições, foi esfaqueado na barriga por um lunático que, mais adiante, a Justiça reputou inimputável.

Mesmo depois de ter sido liberado pelos médicos para participar dos debates, o então candidato do PSL se fechou em copas. Uma sábia decisão. Entre outros fatores que concorreram para sua vitória no segundo turno, não ter sido feito picadinho pela oratória de Ciro Gomes foi fundamental.

A história se repetiu em julho do ano passado, quando uma crise de soluços levou o presidente de volta ao Hospital Vila Nova Star (não havia vagas no SUS de Brasília), onde foi diagnosticado com uma obstrução intestinal (sequela da tal facada).

Aventou-se na época a necessidade de uma nova cirurgia, mas acabou que "o paciente respondeu bem ao tratamento convencional" (nada como um bom purgante, sobretudo para quem “por onde passa, vai lançando fezes”, como bem pontuou o senador Omar Aziz, então presidente da CPI do Genocídio, a quem o capetão qualificou de “cara de capivara”).

Dias antes de ser internado, Bolsonaro levou um puxão de orelha do ministro Luiz Fux por acusar o TSE de fraude nas eleições. Antes mesmo de receber alta, voltou a atacar o ministro Luís Roberto Barroso, chamando-o de "imbecil" e "idiota". Quando nada, a breve passagem pelo hospital livrou o pajé da cloroquina da reunião com os presidentes do STF e do Congresso.

Mais uma vez, a história se repete. Cônscio de que sua força política e suas chances de se reeleger aumentam quando é internado, Bolsonaro voltou das férias em Santa Catarina para sua posição preferida, qual seja a de vítima de sequelas da fatídica facada. 

Internado no Hospital Vila Nova Star, sob os cuidados de um dos cirurgiões mais bem pagos do Brasil — que interrompeu suas férias nas Bahamas para acudir seu paciente VIP —, o mandatário faz do limão a limonada que lhe permite sumir do mapa durante alguns dias, depois dar de ombros para as vítimas das enchentes na Bahia e de exercitar seu negacionismo escrachado posicionando-se contra a vacinação de crianças.

Mais uma vez, a história se repete. Um boletim médico divulgado na manhã de ontem informou que "o quadro de suboclusão intestinal se desfez, não havendo indicação cirúrgica", e que a situação do chefe do Executivo "segue satisfatória", embora ainda não houvesse previsão de alta.

AtualizaçãoBolsonaro divulgou nas redes sociais uma imagem informando que recebeu alta hospitalar na manhã desta quarta-feira (5).

Não se nega que a saúde de Bolsonaro inspira cuidados. Desde a facada em setembro de 2018, ele foi submetido a quatro operações (a última delas aconteceu em setembro de 2019). Mas é evidente que, neste momento, lhe é mais que oportuno “sair de cena” até os brasileiros esquecerem (e vão esquecer, mesmo aqueles que foram mais duramente castigados pelas chuvas na Bahia) o amontoado de asnices que seu indômito líder protagonizou nas últimas semanas.

Parece até que tudo foi programado. Num movimento escapista, Bolsonaro baixa ao hospital para esperar a poeira baixar e depois voltar com tudo, de maneira heroica, sobrevivendo a um “risco fatal” e animando a escumalha que o tem na condição de “mito”. Não fossem os benefícios políticos conquistados com o atentado — que voltam à lume com a nova internação —, a trajetória do dublê de mau militar e parlamentar medíocre teria sido muito diferente. 

Fora dos debates, escondido dos adversários e, principalmente, fazendo papel de vítima, Bolsonaro conseguiu votos que jamais conquistaria se estivesse saudável. “Doente”, ele é um lobo em pele de cordeiro, por mais que pairem dúvidas sobre sua condição real. Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?

Não será surpresa se o capetão recorrer mais vezes à velha e batida fórmula eleitoral-intestinal que o levou à vitória em 2018. É possível que, nos próximos meses, ele passe mais tempo hospitalizado do cumprindo suas funções presidenciais (que, de resto, jamais se preocupou em cumprir). Quanto mais próximas as eleições, maiores as complicações e mais frequentes as internações e consequentes remissões à facada de 2018.

Tampouco causa espécie a “doença” do presidente ser a única que importa ao presidente, como evidencia seu descaso com o sofrimento das famílias dos quase 620 mil conterrâneos mortos pela Covid e as vítimas das recentes enchentes na Bahia. 

Como se vê, não foi só para a CPI que sua alteza cagou. E como também se vê, tudo gira em torno do seu umbigo, ou melhor, de seu intestino, que será o centro das atenções neste ano de eleições.

Bolsonaro não tem alma, mas que que rezemos por ela. Vive implorando piedade. Noves fora a récua de muares que não enxergam um palmo adiante do focinho, poucos brasileiros se dignarão de ter pena de alguém que despreza a vida humana e debocha da desgraça dos compatriotas. E muitos eleitores hão de se lembrar disso.