quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O ESPINHO DA RACHADINHA

O réu que preside a Câmara mantém trancados a sete chaves cento e tantos pedidos de impeachment em desfavor de Jair Bolsonaro, e o procurador-vassalo se faz de cego quando se trata de investigar os malfeitos de seu suserano (ou não cumpre seus deveres constitucionais por estar ocupado demais distribuindo polpudos contracheques a seus subordinados).

Há no Ministério Público Federal 1.145 procuradores. A pretexto de antecipar vantagens e quitar privilégios atrasados, Augusto Aras autorizou o pagamento de contracheques em dezembro que variaram de mais de R$ 100 mil a quase meio milhão de reais. Beneficiaram-se 720 procuradores. Um deles beliscou R$ 471 mil.

Não bastasse a arquitetura constitucional que o autoriza a “jogar parado”, o chefe do Ministério Público conta com a cumplicidade geral do Senado, que a aprovou sua renomeação e se furta a analisar pedidos de impeachment contra ele, do STF, que impediu a tramitação de representações no Conselho Superior do MPF, e da advocacia garantista por autodeclaração, que aplaudiu a recondução do dito-cujo ao cargo.

Dessa "inércia" e de "atos protelatórios” se fez governo irresponsável, inimputável e incontrolável. Aras vendeu "descriminalização da política" e entregou extinção da punibilidade da delinquência pública. Não denuncia ação política nenhuma — nem mesmo diante da abundância de provas da política de morte que afeta crianças na pandemia —, embora simule diligência por meio de "averiguações preliminares" e pedidos sigilosos que dificultam acusar o golpe.

Essa omissão holística tem numerosos exemplos desde 2019. Contra precedentes da própria PGR, o procurador não se opôs a iniciativas do presidente contra urnas eletrônicas, defendeu legalidade do "orçamento secreto" — maior engrenagem de compra de voto da história brasileira — e não questionou as ameaças de Bolsonaro a conselheiros da Anvisa — apenas anunciou "providências" para protegê-los.

Ainda mais gritantes foram suas posições em torno da CPI. Quando Bolsonaro tentou obstruir a instauração da comissão e pressionou o senador Jorge Kajuru a pedir o impeachment de ministros do STF, Aras não viu crime ou ilegalidade (apenas uma “perspectiva pessoal”). Instalada a CPI, recusou-se a investigar fatos e denúncias que foram surgindo no processo (como da Covaxin).

Contrariando a tradição da própria instituição que chefia, o taifeiro do capetão argumentou que seria preciso esperar o relatório final da CPI — e ministra Rosa Weber alertou-o de que ele não poderia ser só "espectador". Concluído o relatório (de 1.200 páginas) que imputa uma dezena de crimes ao mandatário, esperou 30 dias e pediu ao STF providências que não sabemos quais são, solicitou sigilo — e o STF aceitou — e abriu novo capítulo de "averiguações preliminares", como se a CPI fosse apenas uma pré-preliminar.

Nenhuma denúncia, nenhum inquérito sequer. Aras bloqueou quase tudo que pôde. Sobraram procedimentos heterodoxos que o STF, com advertências à paralisia do PGR, viu-se forçado a instaurar. Das 276 ações que o PGR propôs no período, apenas uma foi contra o governo, em tema inofensivo para Bolsonaro. A jornalista Renata Lo Prete foi cirúrgica na avaliação do descalabro: "Bolsonaro está disposto a delinquir na vacinação das crianças porque perdeu o medo. No momento, ninguém está com medo de parar na cadeia".

A ausência de medo se explica. Aras libera Bolsonaro, Bolsonaro libera subordinados, como Queiroga, e incita militantes, como a turba que ameaçou de morte conselheiros da Anvisa. Nessa bolsa de valores, cadeira no STF vale mais que vida de crianças. Soaria demagógico e hiperbólico, não estivéssemos falando de Jair Bolsonaro e Augusto Aras.

Bolsonaro soube antes de ser empossado que a rachadinha cairia sobre a cabeça de seu primogênito, e desde então vem se empenhando em esconder o escândalo debaixo do tapete. Com a ajuda de Bibo Pai, Bobi Filho realizou nos tribunais superiores o sonho de todo réu: travar o processo e matar provas.  Juridicamente, esquivou-se da sentença condenatória; politicamente, condenou-se junto com o pai ao convívio com a suspeição perpétua.

Amigo e ex-assessor de Jair Bolsonaro na campanha de 2018, Waldir Ferraz (vulgo Jacaré) declarou à revista Veja que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do capitão, chefiou um esquema de rachadinha que incluía os gabinetes do ex-marido, na Câmara Federal, de Zero Um, na Alerj, e de Zero Dois, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Exceto pelo fato de ter saltado de lábios amigos, a entrevista não injetou novidades no drama do presidente. Hoje, graças a investigações jornalísticas e do Ministério Público, sabe-se que Bolsonaro comanda uma organização familiar que explorou durante três décadas uma holding da rachadinha com sede no seu gabinete, em Brasília, e filiais nos mandatos dos filhos Flávio e Carlos, no Rio. 

Dos cinco filhos que Bolsonaro teve em três casamentos, somente a caçula Laura, que tem 11 anos — não é alvo de investigações. Afora o célebre caso de Zero Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério Público apuram suspeitas contra Eduardo, Carlos e Renan Bolsonaro, que incluem tráfico de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como o Congresso e o Supremo.

Flávio tentou desqualificar a entrevista do amigo do pai, mas deu com os burros n’água porque a coisa foi gravada. Bolsonaro se irrita quando lhe perguntam sobre a origem do dinheiro depositado pelo operador Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama — chegou mesmo a manifestar o desejo de "encher de porrada" a boca de um repórter. Há dois meses, disse que pretende participar de debates presidenciais, desde que não sejam abordados assuntos familiares — trata-se claramente de um pretexto para a fuga.

Há duas alternativas para Bolsonaro: ou providencia argumentos melhores ou abandona a pose de 2018, quando tripudiava da corrupção alheia. Se a entrevista do amigo Waldir serviu para alguma coisa foi para lembrar a Bolsonaro que ele entrou em 2022 com o espinho da rachadinha cravado no pé.

Com Josias de Souza