Há no Ministério Público Federal 1.145 procuradores. A
pretexto de antecipar vantagens e quitar privilégios atrasados, Augusto Aras
autorizou o pagamento de contracheques em dezembro que variaram de mais de R$
100 mil a quase meio milhão de reais. Beneficiaram-se 720 procuradores. Um
deles beliscou R$ 471 mil.
Não bastasse a arquitetura constitucional que o autoriza a
“jogar parado”, o chefe do Ministério Público conta com a cumplicidade
geral do Senado, que a aprovou sua renomeação e se furta a analisar
pedidos de impeachment contra ele, do STF, que impediu a tramitação de
representações no Conselho Superior do MPF, e da advocacia garantista
por autodeclaração, que aplaudiu a recondução do dito-cujo ao cargo.
Dessa "inércia" e de "atos protelatórios” se
fez governo irresponsável, inimputável e incontrolável. Aras vendeu
"descriminalização da política" e entregou extinção da punibilidade
da delinquência pública. Não denuncia ação política nenhuma — nem mesmo diante
da abundância de provas da política de morte que afeta crianças na pandemia —,
embora simule diligência por meio de "averiguações preliminares" e
pedidos sigilosos que dificultam acusar o golpe.
Essa omissão holística tem numerosos exemplos desde 2019. Contra
precedentes da própria PGR, o procurador não se opôs a iniciativas do
presidente contra urnas eletrônicas, defendeu legalidade do "orçamento
secreto" — maior engrenagem de compra de voto da história brasileira — e
não questionou as ameaças de Bolsonaro a conselheiros da Anvisa —
apenas anunciou "providências" para protegê-los.
Ainda mais gritantes foram suas posições em torno da CPI.
Quando Bolsonaro tentou obstruir a instauração da comissão e pressionou
o senador Jorge Kajuru a pedir o impeachment de ministros do STF,
Aras não viu crime ou ilegalidade (apenas uma “perspectiva pessoal”).
Instalada a CPI, recusou-se a investigar fatos e denúncias que foram
surgindo no processo (como da Covaxin).
Contrariando a tradição da própria instituição que chefia, o
taifeiro do capetão argumentou que seria preciso esperar o relatório final da CPI
— e ministra Rosa Weber alertou-o de que ele não poderia ser só
"espectador". Concluído o relatório (de 1.200 páginas) que imputa uma
dezena de crimes ao mandatário, esperou 30 dias e pediu ao STF
providências que não sabemos quais são, solicitou sigilo — e o STF
aceitou — e abriu novo capítulo de "averiguações preliminares", como
se a CPI fosse apenas uma pré-preliminar.
Nenhuma denúncia, nenhum inquérito sequer. Aras
bloqueou quase tudo que pôde. Sobraram procedimentos heterodoxos que o STF,
com advertências à paralisia do PGR, viu-se forçado a instaurar. Das 276
ações que o PGR propôs no período, apenas uma foi contra o governo, em
tema inofensivo para Bolsonaro. A jornalista Renata Lo Prete foi cirúrgica
na avaliação do descalabro: "Bolsonaro está disposto a delinquir na
vacinação das crianças porque perdeu o medo. No momento, ninguém está com medo
de parar na cadeia".
A ausência de medo se explica. Aras libera Bolsonaro,
Bolsonaro libera subordinados, como Queiroga, e incita militantes,
como a turba que ameaçou de morte conselheiros da Anvisa. Nessa bolsa de
valores, cadeira no STF vale mais que vida de crianças. Soaria
demagógico e hiperbólico, não estivéssemos falando de Jair Bolsonaro e
Augusto Aras.
Bolsonaro soube antes de ser empossado que a
rachadinha cairia sobre a cabeça de seu primogênito, e desde então vem se
empenhando em esconder o escândalo debaixo do tapete. Com a ajuda de Bibo Pai,
Bobi Filho realizou nos tribunais superiores o sonho de todo réu: travar o
processo e matar provas. Juridicamente, esquivou-se
da sentença condenatória; politicamente, condenou-se junto com o pai ao
convívio com a suspeição perpétua.
Amigo e ex-assessor de Jair Bolsonaro na campanha de
2018, Waldir Ferraz (vulgo Jacaré) declarou
à revista Veja que a advogada Ana Cristina Valle, ex-mulher do
capitão, chefiou um esquema de rachadinha que incluía os gabinetes do ex-marido,
na Câmara Federal, de Zero Um, na Alerj, e de Zero Dois, na Câmara
Municipal do Rio de Janeiro.
Exceto pelo fato de ter saltado de lábios amigos, a entrevista não injetou novidades no drama do presidente. Hoje, graças a investigações jornalísticas e do Ministério Público, sabe-se que Bolsonaro comanda uma organização familiar que explorou durante três décadas uma holding da rachadinha com sede no seu gabinete, em Brasília, e filiais nos mandatos dos filhos Flávio e Carlos, no Rio.
Dos cinco filhos que
Bolsonaro teve em três casamentos, somente a caçula — Laura,
que tem 11 anos — não é alvo de investigações. Afora o célebre caso de Zero
Um e as rachadinhas, a PF e o Ministério
Público apuram
suspeitas contra Eduardo, Carlos e Renan Bolsonaro, que incluem tráfico
de influência, contratação de funcionários fantasmas e envolvimento na
organização de manifestações que pediram o fechamento de instituições como
o Congresso e o Supremo.
Flávio tentou desqualificar a entrevista do amigo do
pai, mas deu com os burros n’água porque a coisa foi gravada. Bolsonaro
se irrita quando lhe perguntam sobre a origem do dinheiro depositado pelo operador
Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama — chegou mesmo a manifestar o
desejo de "encher de porrada" a boca de um repórter. Há dois
meses, disse que pretende participar de debates presidenciais, desde que não
sejam abordados assuntos familiares — trata-se claramente de um pretexto
para a fuga.
Há duas alternativas para Bolsonaro: ou providencia
argumentos melhores ou abandona a pose de 2018, quando tripudiava da corrupção
alheia. Se a entrevista do amigo Waldir serviu para alguma coisa foi
para lembrar a Bolsonaro que ele entrou em 2022 com o espinho da
rachadinha cravado no pé.
Com Josias de Souza