No Brasil, o crime compensa — e como compensa, escreveu Diogo Mainardi em O Antagonista.
Sergio Moro deixou isso bem claro na entrevista que concedeu no último domingo ao Canal Livre, ao comentar a anulação das condenações de Lula e o desmonte das conquistas na luta contra a corrupção.
Boa parte dos logradouros públicos brasileiros tem nome de ladrão — seja ladrão político ou ladrão que comprou político. Todos devidamente homenageados. Tem ladrão de esquerda, de direita, de centro, e de muito pelo contrário: roubam os cidadãos de tudo o que é lado, em raro espetáculo de democracia absoluta. Roubam no pequeno dinheiro das verbas de gabinete, nas emendas parlamentares e nos gigantescos contratos governamentais.
A Lava-Jato foi um ponto tão extraordinariamente fora da curva que chamou a atenção do mundo — e sofreu a reação em curso. A ladroagem é tão explícita no Brasil que ninguém mais repara. Veja-se, por exemplo, a sucessão de mansões no Lago Sul, em Brasília. Quem com o teto de salário de político, juiz ou funcionário público pode ter uma casa daquelas? Ah, é que o sujeito já tinha patrimônio antes. My ass! Contam-se nos dedos da mão direita do molusco eneadáctilo os que eram ricos antes de se lambuzar com dinheiro público. Ah, mas o dinheiro é da mulher ou do marido, profissionais de sucesso, ou dos filhos, que se provaram gênios da raça. My ass!
Um romano de 2 mil anos atrás, não lembro o nome,
disse: “Nenhum homem de bem se torna rico de repente”. O
problema não é ser rico, é a locução adverbial. Há muitos “ricos de
repente” no Brasil, e não só no meio político. Uma penca de
malandros da iniciativa vaso sanitário, também conhecida como privada, aprendeu
a fazer ótimos negócios em Brasília e adjacências estaduais ou municipais. Além
de abrigar advogados especializados em embargos auriculares, esse ecossistema
conta com gafanhotos conhecidos como consultores ou gerenciadores de crises,
cuja tarefa consiste em tirar ladrão dos holofotes da imprensa. Outra chusma
especula no mercado financeiro em cima da desgraça alheia. Somos o país
da locupletação adverbial.
Sim, vale a pena roubar no Brasil, sempre valeu. Sim, o crime compensa no Brasil, sempre compensou. Ou não estaríamos pessimamente colocados nos rankings de corrupção feitos por organismos internacionais. Mas tudo bem: seja do esgoto oficial, seja da iniciativa vaso sanitário, eles devolvem uma parte ínfima do que embolsam aprovando esmolas assistenciais para continuar no poder, promovendo "circos" para o povo ou patrocinando ações caritativas com o dinheiro do pagador de impostos que surrupiaram — o que é marketing gratuito.
O quadro é emoldurado por aqueles que choram lágrimas de crocodilo em vídeos na internet ou passeiam de helicóptero para ver pobre se ferrando em enchentes que não são desastres naturais, mas desastres de desumanidade em cidades precárias e horrendas.
Vale a pena roubar no Brasil. Vale a pena roubar o Brasil.
***
A exemplo das operações Satiagraha e Castelo
de Areia, a Lava-Jato jamais foi vista com bons olhos
por políticos em geral e por corruptos em particular, sobretudo porque se
embrenhou nos esquemas de financiamento de campanhas e nas relações entre o
empresariado e os donos de cargos eletivos.
Com o impeachment de Dilma e a troca de
comando no Planalto, a pressão aumentou barbaramente — como evidenciou o diálogo
vazado e publicado em maio de 2017 pela Folha, no qual ouvia-se o então
senador Romero Jucá, unha e carne com o então presidente Michel
Temer, sugerir a Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que
uma "mudança" no governo federal resultaria em um pacto para
"estancar a sangria" (representada pela Lava-Jato, na
qual ambos eram investigados).
Segundo o então procurador-geral Rodrigo Janot,
as nomeações de Jucá, Sarney Filho e Fabiano
Silveira para o ministério de Temer tinham por
objetivo criar uma “ampla base de apoio” para conter as investigações.
Depois que Eunício Oliveira foi eleito presidente do Senado, a
Câmara confirmou sua intenção de também ser comandada por um alvo da Lava-Jato (falo
de Rodrigo Maia, codinome “Botafogo” na delação da Odebrecht,
que era acusado de ter recebido dinheiro para defender os interesses da
empreiteira e de favorecer a OAS).
No início de fevereiro, o então secretário-executivo do
Programa de Parcerias em Investimentos do governo foi promovido a ministro da
Secretaria Geral da Presidência — cargo recriado por Temer para
abrigar Moreira Franco. A nomeação se deu três dias depois que
o STF homologou as delações da Odebrecht e foi vista
como uma forma de livrar o sogro de Rodrigo Maia das “garras” de Sergio
Moro.
Ao contrário do que ocorreu quando Lula estava
na mesma situação, o STF autorizou a nomeação de Moreira Franco,
e Temer decidiu indicar seu ministro da Justiça — Alexandre
de Moraes — para a vaga aberta na Corte com a morte de Zavascki.
A nomeação chamou atenção porque o então ministro, que era homem de confiança
de Temer, poderia vir a julgar o presidente caso ele fosse
denunciado pela PGR (apenas em uma delação da Odebrecht no
âmbito da Lava-Jato, o vampiro do Jaburu fora citado 43 vezes).
Amigo pessoal de Temer e crítico contumaz
Moro, o ministro Gilmar Mendes pouco falou sobre as
decisões do juiz de Curitiba enquanto a Lava-Jato tinha
o PT e o governo Dilma na mira. No retorno do
recesso de 2017, porém, sua alteza voltou à carga e passou a criticar as
prisões provisórias, vistas pelos defensores da força-tarefa como importantes
para o avanço das investigações.
“Temos um encontro marcado com as alongadas prisões que
se determinam em Curitiba. Temos que nos posicionar sobre este tema que
conflita com a jurisprudência que desenvolvemos ao longo desses anos”,
disse a divindade suprema. Em despacho publicado três dias depois, sem citar o
ministro nominalmente, Moro afirmou que não cederia “à pressões políticas”.
No apagar das luzes de 2019, Dias Toffoli, presidente
do STF e autor do Voto de Minerva que sepultou a prisão
em segunda instância, disse que a Corte não se oporia se Congresso alterasse o
artigo 283 do Código de Processo Penal para definir de uma vez por todas em que
momento a prisão de um criminoso condenado deve ocorrer. Com o voto do eminente
ministro, a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, que já vinha
capengando desde 2016 — graças à virada de casaca de Gilmar Mendes —
voltou a ser a de que o cumprimento da pena só pode ocorrer após o
trânsito em julgado da sentença, o que no Brasil significa
dizer "no dia de São Nunca".
Observação: Mesmo tendo sido reprovado em dois
concursos para magistratura, Toffoli foi guindado ao STF por
Lula, em retribuição aos serviços prestados a ele e ao PT.
Sem currículo, sem conhecimento, sem luz própria e sem os laços com a rede
protetora do partido nem os referenciais do padrinho petralha, o novato foi
buscar apoio em Gilmar Mendes, que é quem melhor encarna a figura
do velho coronel político — e de quem o Maquiavel de Marília, já
consolidado no habitat, absorveu a arrogância, a grosseria, a falta de limites
e o uso da autoridade da forma mais arbitrária possível.
Vários projetos de lei e PECs visando
restabelecer a prisão em segunda instância surgiram na sequência da decisão do STF,
mas a Covid fez com que 2020 terminasse com tudo da forma como
começou. No começo de 2021, Executivo enviou ao Congresso uma
relação de 35 assuntos que gostaria de ver aprovados, mas a prisão em
segunda instância não estava entre ele e nem Arthur Lira nem Rodrigo
Pacheco usaram o tema como forma de angariar votos nas disputas que os
levaram a comandar, respectivamente, a Câmara e o Senado.
Somente a insistência dos parlamentares realmente
comprometidos com o combate à corrupção conseguiria fazer a coisa avançar e
restaurar (ao menos em tese) o império da moralidade, mas eles próprios
reconheceram em diversas ocasiões que o momento político não era adequado.
Quando temas como a CPI da Covid e a PEC
do Voto Impresso finalmente saíram da frente, abriu-se uma janela de
oportunidade para a comissão especial da PEC 199/19 votar o
texto que acabou se tornando o preferido dos congressistas e finalmente
submetê-lo ao plenário da Câmara, mas uma jogada regimental
de última hora travou tudo. Antevendo a derrota, o relator retirou seu
parecer, alegando que o relatório não tinha sido discutido com aqueles que
haveriam de votá-lo.
Por essas e outras, 2021 terminou sem qualquer definição
acerca do assunto, evidenciando que há na Câmara um grupo disposto a usar
sua força para que tudo permaneça como está. Aliás, continua em curso no Congresso
uma das estratégias para a destruição da Lava-Jato e de seu
legado: rejeitar os projetos de lei que fortaleçam a investigação e a punição
dos crimes de colarinho branco e aprovar projetos que dificultem a vida de
promotores, procuradores e juízes.
Continua...