Em sociedades democráticas bem-sucedidas existem verdadeiros tribunais superiores de justiça — e não repartições públicas que obedecem a ordens de ditaduras, ou grupos de ação política e outras degenerações patológicas — e funcionam com bastante precisão um mecanismo chamado “jurisprudência”.
Trata-se, em linguagem comum, do histórico das decisões tomadas ao longo do tempo pelos magistrados — o conjunto de suas sentenças, manifestações e despachos, cuja linha tende a se repetir caso após caso, no passado e no presente.
A jurisprudência é um instrumento essencial para a prestação da justiça. É o meio mais poderoso, mais acessível e mais compreensível para todos — advogados, clientes, governos e a população em geral — terem uma informação fundamental em qualquer democracia: como a justiça está aplicando a lei neste ou naquele assunto. É isso que fornece aquela que talvez seja a marca mais importante de uma justiça responsável, decente e lógica — a previsibilidade.
Isso não existe no Brasil de hoje. Num país em que o Supremo Tribunal Federal se transformou há muitos anos num centro de atividade política, onde o que vale são os desejos, as posições ideológicas e os interesses pessoais dos ministros, a justiça superior decaiu para uma situação exatamente oposta à que deveria ter: sua característica principal, hoje, é ser imprevisível.
É um recuo para um estágio primitivo das sociedades, onde o cidadão não conta com a proteção sistemática da lei. O que funciona, unicamente, é a vontade de quem tem o poder de mandar na justiça naquele momento — o faraó, o ditador ou, no atual caso brasileiro, o ministro do Supremo.
Justiça que depende das vontades pessoais dos juízes não é justiça. É essa coisa que temos hoje por aqui. Não se trata de um ponto de vista; é a conclusão dos fatos objetivos, à disposição de todos e do conhecimento geral. Há exemplos diários.
Fato: o ministro Edson Fachin afirmou publicamente, num despacho ao presidente Luiz Fux, que o trabalho da justiça no combate à corrupção “tem sido pautado pela legalidade constitucional”.
Fato: três meses depois, em março de 2021, tomou a prodigiosa decisão de anular todas as ações penais contra o ex-presidente Lula por um detalhe burocrático miserável — CEP errado, no seu entender. Ou seja: tudo estava perfeitamente legal num dia, segundo o ministro, mas de repente virou ilegal, segundo o mesmo ministro. Prever o que, desse jeito?
Fato: dias atrás o ministro Gilmar Mendes disse, também em público, que a Lava-Jato tinha obtido confissões por meio de “tortura” – o que transforma os criminosos em vítimas e a autoridade judiciária em autora de crime previsto no Código Penal Brasileiro.
Fato: o ministro Gilmar Mendes, em 2015, declarou que a Lava-Jato era um modelo de virtude, e que o PT dos governos Lula e Dilma estava executando um processo para se perpetuar no poder através do roubo de dinheiro público; calculou, até, em quantos bilhões eles tinham metido a mão até aquele momento.
As reencarnações canarinhas da deusa Themis formaram maioria pela rejeição da denúncia de corrupção passiva oferecida pela PGR contra Arthur Lira, atual presidente da Câmara e guardião dos 145 pedidos de impeachment em desfavor do Messias que não miracula, bem como para arquivar um inquérito contra os senadores Renan Calheiros e Jader Barbalho.
Lira foi denunciado em 2019 pelo suposto recebimento de propina de R$ 1,6 milhão da Queiroz Galvão, mas, no ano seguinte, a procuradoria pediu a rejeição da própria acusação. Na época, o ministro-relator Fachin entendeu que não poderia rejeitar a denúncia de maneira individual, e submeteu o caso ao plenário. Agora, com o julgamento de um recurso apresentado pela defesa de Lira contra a decisão de levar a denúncia ao plenário, sua excelência concordou com a mudança de opinião da PGR, destacando em seu voto que houve a constatação da insuficiência de elementos mínimos para dar justa causa à denúncia quanto ao crime de corrupção imputado ao parlamentar.
Acompanharam Fachin os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, e as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia. O presidente da Câmara disse que recebeu a notícia “com muita tranquilidade, sempre acreditando na justiça”.
Volto a enfatizar que foi Fachin quem deu início à lavagem da ficha imunda de Lula e propiciou sua conversão à esdrúxula condição de ex-corrupto ao decidir, com seis anos de atraso, que os processos contra o líder máximo da ORCRIM petista não deveriam ter sido julgados em Curitiba porque envolviam uma roubalheira que não se ateve apenas à Petrobras.
O Supremo lavou o prontuário do petralha-mor sob o argumento de que as culpas atribuídas a ele precisariam ser submetidas a um novo julgamento na Justiça Federal de Brasília, fazendo com que a prescrição se tornasse tão certa quanto o dia suceder à noite e a noite suceder ao dia.
Ao alvejar a ficha imunda do agora ex-corrupto e candidato a uma terceira passagem pelo Planalto, a Procuradoria esclareceu que o cálculo do tempo de prescrição foi feito com base nas penas impostas pela 5ª Turma do STJ, realçando, nas entrelinhas, que a sentença que levou o deus pai da Petelândia a passar uma temporada na cadeia foi julgada em três instâncias do Judiciário.
Sergio Moro, então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, condenou o acusado a 9 anos e 6 meses de cadeia. O TRF-4, sediado em Porto Alegre, elevou a pena para 12 anos e um mês. Acionado pela defesa de Lula, o STJ reduziu a sanção a 8 anos, 10 meses e 20 dias. O molusco foi socorrido pela idade (ele tem 76 anos), pois o prazo de prescrição cai pela metade no caso dos septuagenários.
Considerando que no Brasil a Justiça solta os bandidos e prende o “xerife” que os encarcerou, Moro foi declarado parcial pelo plenário do STF, por 7 votos a 4 e com os auspícios do eminente semideus togado Gilmar Mendes.
Três vivas ao povo brasileiro e aos trouxas que acreditam na justiça tupiniquim.
Com J.R. Guzzo