Apesar de o Brasil estar a 12 mil quilômetros da zona de confronto, a Rússia invadiu a campanha eleitoral canarinha. Numa inédita declaração conjunta, os pré-candidatos à Presidência Felipe D’Ávila, João Doria, Sergio Moro e Simone Tebet afirmaram que “não há espaço para neutralidade”.
Ciro Gomes não participou, mas já havia se alinhado na crítica ao morubixaba de festim, que diz não ser contra nem a favor, muito pelo contrário, embora devesse se alinhar com as nações que defendem a soberania da Ucrânia e a solução pacífica do conflito. Menos mal que nosso despirocado e o descabelado premiê britânico concordem sobre a necessidade de um “cessar-fogo urgente” (uma conclusão deveras impressionante!). Mas falta combinar com os russos (literalmente).
Observação: A Rússia declarou um "cessar-fogo parcial" de 5 horas e disse que seu Exército pararia ataques "localizados" neste sábado. No entanto, logo em seguida chegou a informação de que a retirada dos habitantes de Mariupol — porto estratégico ucraniano cercado pelas forças russas —, que deveria começar antes do meio-dia (horário local), foi adiada porque as forças russas "continuam bombardeando Mariupol e seus arredores".
Bolsonaro reza pela cartilha da “neutralidade” e uniu o discurso à ação esbaldando-se nas praias do Guarujá, enquanto os tanques de Putin atravessavam as fronteiras da Ucrânia. “Ele quis dizer equilíbrio”, repetiu ad nauseam o chanceler Carlos França, num esforço aparentemente inútil de tradução da dicotomia entre a simpatia do chefe pela guerra de Putin e os dois votos do Brasil na ONU condenando a invasão da Ucrânia.
Bolsonaro não sofre de insanidade, desfruta de cada segundo dela, escreveu Josias de Souza em sua coluna. Em meio à guerra no leste europeu, desloca seu ritual insano do Ministério da Saúde para a pasta das Relações Exteriores — uma das graças do momento é assistir ao malabarismo que a diplomacia brasileira realiza para se ajustar à predileção do capitão por Putin sem macular os princípios seculares da política externa que estão sendo bombardeados na Ucrânia.
No Tribunal Penal de Haia, frequentado por Bolsonaro
na condição de denunciado, o governo brasileiro recusou-se a aderir a uma ação
solicitada por 39 países contra a Rússia. Alegou que a iniciativa não
contribui para o restabelecimento da paz. Na ONU, a diplomacia
brasileira votou a favor de resoluções contra a Rússia, mas com ressalvas. Na
decisão mais recente, o representante do Brasil criticou as potências
ocidentais por impor "sanções seletivas" à Rússia e por enviar armas
ao governo ucraniano. Argumentou que essas iniciativas prolongam a crise
Bolsonaro defendeu a "neutralidade" do Brasil numa entrevista em que negou que Putin promove um massacre na Ucrânia, e ironizou o povo ucraniano por entregar o seu destino nas mãos de um presidente comediante (olha quem fala!). O chanceler Carlos França, traduzindo o bolsonarês para o português, disse que "quando o presidente usou neutralidade, é no sentido de imparcialidade, não é no sentido de indiferença." O ministro das Relações Exteriores é o novo Marcelo Queiroga da Esplanada. Sai de cena a implicância com as vacinas e sobe ao palco a simpatia por Vladimir Putin.
Há mais de três décadas, o patriota extremado que se casou com a pátria e foi morar no déficit público dispõe de tudo o que o dinheiro do contribuinte pode comprar. No Planalto, não precisou do faturamento da holding familiar da rachadinha para bancar suas despesas. Graças aos cartões corporativos, nem precisa fazer contas antes de usufruir da mordomia — como fez ao torrar R$ 900 mil numa semana de férias em Santa Catarina.
Indagado a respeito numa entrevista, Bolsonaro disse: “Se foi R$ 900 mil, vou pegar no cangote de alguém lá. Não tem cabimento. Eu fiquei, se não me engano, seis ou sete dias". Detalhe: o capitão manifestou essa revolta com o custo da boquinha catarinense enquanto gozava novas férias — pela décima vez em três anos, sua alteza e indefectível séquito tiraram a barriga da miséria no Guarujá. Costuma-se dizer que dinheiro não traz felicidade, mas o capetão demonstra — e continuará demonstrando até o final do mandato — que essa é uma questão irrelevante quando o dinheiro é dos outros.
Lula, por sua vez, reuniu-se na Cidade do México com o presidente Manuel López Obrador, que optou manter “boas relações” com a Rússia, não aderir às sanções financeiras e criticar empresas privadas ocidentais pelo que chama de “censura” à mídia estatal russa. Na ambiguidade, os “queridinhos do eleitorado tupiniquim” estão isolados no debate público sobre um conflito com os Estados Unidos e a Europa para restauração do império desmoronado na Guerra Fria. Segundo o jornalista José Casado, Lula chegou mesmo a justificar a ação de Putin, em velada crítica aos EUA e à União Europeia: “A gente está acostumado a ver que as potências, de vez em quando, fazem isso sem pedir licença.”
Há quem veja nessa convergência traços da sedução autoritária representada por Putin, que também encanta Viktor Orbán (Hungria), Aleksandr Lukashenko (Bielorrússia), Nicolás Maduro (Venezuela), Daniel Ortega (Nicarágua) e Miguel Díaz-Canel (Cuba), entre outros. Essa ambivalência (ou neutralidade) pode custar caro, seja dentro do país — porque os eleitores irão às urnas acossados pelos efeitos da guerra de Putin (o petróleo começou o dia cotado a mais de US$ 100 por barril) — e fora das fronteiras nacionais — porque os adversários da Rússia prometem “lembrar de quem não está do nosso lado”, como avisou o vice-presidente da Comissão Europeia no Parlamento Europeu.
J.R. Guzzo pondera que, diante da assimetria de poderio bélico, a invasão da Ucrânia pela Rússia deveria ter começado e acabado no mesmo dia. Como não acabou — e a cada dia que passa o país mais fraco ganha força política e o mais forte perde gás —, a solução seria trocar a vitória inicialmente pretendida por algum arranjo que permita aos russos dizerem que a operação deu certo e, portanto, já pode ser encerrada. Mais uma vez, falta combinar com os russos.
Na segunda rodada de negociações, Rússia e Ucrânia chegaram a um entendimento sobre a criação conjunta de corredores humanitários, mas a perspectiva de uma trégua continua distante. Nas palavras do presidente da França, que conversou com o carniceiro russo, “o pior está por vir”.
No mercado, um lado está otimista, já que a tensão geopolítica pode fazer com que o banco central americano adie as altas nos juros dos EUA. De outro, está ressabiado, com receio de o barril de petróleo chegar a US$ 120, US$ 125, o que aceleraria a inflação global (afinal, o que as pessoas consomem no dia a dia não chega às lojas e aos supermercados de bicicleta).