Fala-se muito no “Estado Democrático de Direito”, mas pouco se diz e nada se faz em relação à incompatibilidade de seus princípios com o pensamento e as ações do duble de presidente-palanque e usina de criar crises institucionais. A penúltima produção que emergiu do esgoto palaciano foi uma resposta (contra-ataque?) à condenação do deputado-troglodita-bolsonarista Daniel Silveira pelo plenário do STF, vencido o voto do ministro cuja maior virtude foi tomar muita tubaína com o responsável por sua indicação.
Ao sacar da cartola o nome do desembargador piauiense Kássio Nunes Marques, nosso insigne (ficante) presidente descumpriu a promessa de indicar alguém “terrivelmente evangélico” para a vaga do ministro Celso de Mello. Dono de um currículo de dar inveja ao professor, oficial da reserva da Marinha e evangélico Carlos Alberto Decotelli, que teria se tornado o primeiro negro a ocupar um cargo na Esplanada dos Ministérios se não fosse tão mestre, doutor e pós-doutor quanto eu sou comendador, o magistrado em questão, ao ter a indicação presidencial aprovada pelo Senado, contribuiu para denegrir ainda mais a imagem do STF aos olhos da parcela pensando da população. Nunes Marques foi empossado em meio a suspeitas, com uma trajetória acadêmica questionável e companhias no mínimo duvidosas. Seu nome foi colocado na mesa do capetão pelo advogado e mafioso de comédia Frederick Wassef, com a aprovação de Flávio “Rachadinha” Bolsonaro e de Ciro Nogueira — este último, que é presidente licenciado do PP e atual ministro-chefe da Casa Civil da Presidência, referiu-se ao indicado como “nosso Kássio”.
Em sua estreia na 2ª Turma da Corte, Nunes Marques votou pela confirmação da liminar (concedida por Gilmar Mendes) que soltou o promotor Flávio Bonazza, acusado de receber mais de R$ 1 milhão da máfia dos transportes no Rio, e retirou o caso dele da Lava-Jato fluminense. No julgamento sobre a possibilidade de Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia serem reeleitos presidente do Senado e da Câmara, respectivamente, deu voto favorável ao primeiro e contrário ao segundo, em sintonia com os desejos do padrinho. Mais adiante, votou a favor de Lula no caso envolvendo o depoimento de Antonio Palocci e atendeu a um pedido do PDT para suspender trecho da Lei da Ficha Limpa que determina que o prazo de inelegibilidade de oito anos para condenados terá efeito após o cumprimento da pena.
No julgamento de Silveira, nem o ministro-pastor André Mendonça — segundo apadrinhado do capetão e (esse, sim) terrivelmente evangélico — ousou divergir da maioria, embora tenha defendido a redução da pena. Como sua decisão não agradou à caterva bolsonarista (nem a líderes evangélicos como Malafaia e companhia), o magistrado justificou seu voto pelas redes sociais, tornando ainda mais burlesca uma situação já bastante patética.
Escusado encompridar esta postagem elencando despautérios do parlamentar retrocitado ou enumerando bandeiras eleitoreiras que Bolsonaro agitou durante a campanha e enfiou em local incerto e não sabido quando subiu a rampa palaciana. Mas não custa relembrar que o “mito” dos apatetados prometeu propor o fim da reeleição e do indulto presidencial. Mas nunca se mente tanto quanto antes de uma guerra, durante uma campanha eleitoral e depois de uma pescaria.
Em novembro de 2018, Bolsonaro disse o seguinte: “Se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último”. “Fiel a sua palavra”, concedeu indultos a agentes de segurança condenados por crimes considerados culposos no final de 2019, 2020 e 2021. No feriado de Tiradentes, talvez por conta das festividades carnavalescas que pipocaram extemporaneamente cá e acolá, pensou que bem poderia ser Natal, e como Natal combina com indulto presidencial (aquele que deixaria de existir no seu governo), concedeu a graça do indulto individual a seu valoroso escudeiro.
Bolsonaro tomou sua magnânima decisão — que não livra o assecla da inelegibilidade — antes do trânsito em julgado da condenação, e o patente desvio de finalidade — que fere os princípios da impessoalidade e da moralidade — deu azo a um sem-número de questionamentos apresentados pela oposição, enquanto parlamentares não-bolsonaristas avaliam as medidas cabíveis, que podem ser desde um novo pedido de impeachment do mandatário até uma ação questionado a graça presidencial no STF.
Na segunda-feira 25, a Associação Brasileira de Imprensa encaminhou um Informe ao Relator Especial da ONU sobre Independência de Juízes e Advogados, denunciando a “graça” concedida por Bolsonaro a Silveira. No documento, a ABI afirma que o decreto “afronta a democracia, a separação de poderes, a independência do Judiciário e a administração da Justiça”. A Entidade solicitou uma reunião com o Relator da ONU, com a participação de outras entidades da sociedade civil, e espera que a Comissão se “posicione sobre as violações ocorridas com uma nota pública”.
Continua...