sábado, 30 de abril de 2022

SOBRE LULA E O COMITÊ DE DIREITOS HUMANOS DA ONU


Na última quinta-feira, o Comitê de Direitos Humanos da ONU — que monitora o cumprimento dos principais tratados de direitos humanos adotados pela Assembleia Geral da ONU, mas atua de forma independente da Organização — afirmou que Moro e os procuradores da Lava-Jato foram parciais em relação a Lula e instou o governo brasileiro a assegurar que quaisquer outros procedimentos criminais contra o petista cumpram com as garantias do devido processo legal, de maneira a prevenir violações semelhantes no futuro. A decisão não tem efeito jurídico, mas já está sendo usada politicamente pelos que apoiam a volta do criminoso à cena do crime (nas palavras do ex-tucano Geraldo Alckmin, que deixo o ninho tucano para disputar a vice-presidência na chapa encabeçada pelo dublê de palanque ambulante e camelô de empreiteiras).


“Conseguimos o reconhecimento não apenas no Brasil, mas também em uma corte mundial, de que a Operação Lava-Jato, o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol atuaram de forma ilegal, arbitrária e afrontando um tratado internacional da ONU”, comemorou Cristiano Zanin, já sonhando em ocupar uma cadeira no STF se o maior dos governantes desde Tomé de Souza for reconduzido ao Palácio do Planalto nas eleições de outubro.

 

Em agosto de 2018, numa manifestação assinada por Sarah Cleveland e Oliver de Frouville, o comitê afirmou que o Brasil devia garantir ao então presidiário o direito de disputar as eleições, numa clara ofensa à soberania nacional. Lula permaneceu preso e inelegível, a despeito dos esforços do relator da Lava-Jato no STF. Na ocasião, vestindo a toga de ministro do TSE, o ministro Fachin passou duas horas inteiras torturando a razão e a lei brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Ele reconheceu que não havia nenhuma dúvida legal de que o Lula estava inelegível, mas alegou que “uma força superior” anulava a lei nacional. 

 

Essa “força superior” não era a Corte Internacional de Haia ou a Assembleia Geral da ONU, mas apenas dois sujeitos que faziam parte de um comitê de dezoito consultores da ONU em direitos humanos, sem nenhum poder funcional senão o de emitir pareceres, que acharam que Lula tinha o direito de se candidatar à Presidência. Mesmo assim, a insânia foi submetida ao TSE, que negou por 6 votos a 1 o pedido da defesa Lula. O espantoso foi ter havido um voto a favor — justamente o voto de Fachin, que não fez o mais remoto sentido. O que diria Fachin se os dois consultores dissessem que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a monarquia? Acharia que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena de ficar na ilegalidade internacional? 

 

Se um ministro da nossa suprema corte defende um troço desses, não há como confiar em nada do que o homem venha a decidir — como ficou claro mais adiante, quando Fachin despertou da “epifania” que lhe mostrou — com quase seis anos de atraso — que a Justiça Federal do Paraná não era competente para processar e julgar Lula. E assim restaram anuladas as condenações, as provas e todos os demais elementos dos processos envolvendo o hoje “ex-corrupto” e o tríplex no Guarujá e o sítio em Atibaia. 

 

Observação: Graças ao instituto da prescrição, essas e outras ações criminais que tinham o picareta dos picaretas na condição de réu jamais serão julgadas novamente. E ainda que assim não fosse, o petralha precisaria reencarnar meia dúzia de vezes até que uma eventual condenação transitasse em julgado. Dizem que gatos têm sete vidas, mas eu jamais ouvi dizer que isso se aplica também a gatunos.   

Causa espécie, nessa e noutras histórias similares, a ligeireza com que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os outros togados se acharam na obrigação de cumprimentar o colega dissidente pelo “brilhantismo” do seu voto. Fachin, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que massacraram cada palavra que ele disse. E todos acharam igualmente “brilhante” a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa armou com essa comissão da ONU. 

 

Na peça inicial, de julho de 2016, os advogados de Lula (que seria preso dali a pouco menos de dois anos) sustentaram que quatro artigos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU foram violados, entre os quais os que garantem a qualquer cidadão o direito a um tribunal independente e imparcial e o de ser presumido inocente até que se prove a culpa por lei. Três anos depois de fazer uma defesa enfática da atuação Moro na Lava-Jato ao comitê, o governo brasileiro afirmou que a questão estava superada, pois o STF havia reconhecido a incompetência da 13.ª Vara Federal de Curitiba para julgar o ex-presidente e a parcialidade do juiz que o condenou (vale destacar que a sentença referente ao sítio de Atibaia foi proferida pela juíza federal substituta Gabriela Hardt).

 

Segundo matéria da CNN, a manifestação de novembro de 2021 foi a sexta resposta do Brasil apresentada à ONU desde 2017. Na oportunidade, o Estado brasileiro afirmou que as alegações levadas por Lula ao Comitê da ONU não deveriam mais ser consideradas. Da feita que o Judiciário brasileiro acatou os recursos apresentados pela defesa, quaisquer limitações aos direitos políticos do petista deixaram de existir. Três anos antes, a alegação levada pelo Brasil ao Comitê dizia que a acusação de parcialidade de Moro era infundada, que Lula pretendia “confundir e enganar” o colegiado ao apontar direcionamento da Justiça, e que o argumento de perseguição política era “uma afronta às instituições”. 

 

Em março de 2019, o governo brasileiro anotou que “Lula afirmava erroneamente que o ex-juiz interveio na eleição presidencial” e que as alegações de parcialidade eram “ilações subjetivas e ofensivas”. Em novembro do ano passado, porém, o documento entregue ao colegiado não fez qualquer menção a Sergio Moro. Uma vez que as alegações do autor foram aceitas pelo Judiciário brasileiro, informou o governo, a queixa do ex-presidente deixava de ser necessária. A defesa do petista, por seu turno, sustentou que, a despeito das decisões do Supremo, as violações ao Pacto foram consumadas e precisariam ser analisadas pelos integrantes do colegiado — o que de fato aconteceu dias atrás.

 

Sobre a conclusão do Comitê, Deltan Dallagnol afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que “vai esperar ter conhecimento do teor da decisão antes de decidir se vai se manifestar”. Também por meio de nota, Moro disse que as conclusões do comitê foram extraídas de decisão do Supremo que ele considera “um grande erro judiciário”, que o comitê “não nega a corrupção na Petrobras ou afirma a inocência de Lula”, que a condenação do ex-presidente “foi referendada por três instâncias do Judiciário e passou pelo crivo de nove magistrados” e que é possível constatar (no relatório do Comitê) “robustos votos vencidos que não deixam dúvidas de que a minha atuação foi legítima na aplicação da lei, no combate à corrupção e que não houve qualquer tipo de perseguição política”.

 

Nossa democracia pode estar adulta, como dizem alguns, mas aberrações como essas, somadas à nefasta polarização — que, anotem aí, ainda vai produzir muita merda —, sugerem que sua idade mental é de 3 anos. Quanto tempo ela resistirá até ir para o espaço é difícil dizer. Pode demorar um tanto mais, um tanto menos. Para a maioria dos brasileiros, porém, tanto faz — estão pouco ligando para o assunto, e quando ligam é para torcer contra. Mas os que se dizem democratas ou ganham a vida nos cargos, funções e atividades que a democracia fornece, esses estão contribuindo ao máximo para que tudo vá o mais breve possível para o buraco.

 

No que tange à soltura de Lula, a anulação de suas condenações e à lavagem às pressas de sua ficha imunda (com inequívoco propósito de recolocar o sevandija no tabuleiro do jogo sucessório), o que põe a existência da democracia cada vez mais em risco nesta banânia é a falta de lógica comum. Como é possível o país ter democracia se, ao mesmo tempo, tem uma corte suprema que chancela decisões surreais como a do ministro Edson Fachin? Ou se tem uma coisa ou a outra. O plenário da nossa mais alta corte se tornou o que se poderia chamar de insegurança jurídica ambulante — ou seja, o oposto do que um regime democrático precisa. Onde está a lógica?

 

Nossos mais altos tribunais de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, onde a solidariedade entre os sócios se pratica através da puxação de saco automática e perene. Asinus asinum fricat, poderiam dizer os togados uns aos outros — não são eles que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público não entender nada? Pois então. Mais um pouco de latim pode vir a calhar num tribunal que é o retrato vivo de uma democracia na UTI. 


Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência individual de um “capinha” (salário de até R$ 12 mil por mês, mais horas extras), cujas atribuições se resumem basicamente a ajeitar a poltrona quando o chefe vai se sentar à mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a Rainha Elizabeth II tem um serviço assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do mundo. Mas os ministros acham isso normal, como acham normal se autoconcederem aumentos absurdos de salário e uma vasto leque de mordomias (dois meses de férias por ano, aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora) enquanto uma parcela substantiva da população precisa escolher entre comprar comida ou comprar um botijão de gás de cozinha. Isso é simplesmente desigualdade. 


Como acreditar numa democracia onde a maior corte de justiça vive abertamente com direitos individuais superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está assim, imagine-se o resto.