No Brasil, o Legislativo recorre ao Judiciário sempre que lhe dá na telha, e depois reclama da judicialização da política. No Supremo, uma parte das togas que um dia apoiaram a mais bem sucedida operação anticorrupção da história desta banânia resolveu seguir o dono do circo. Com o fim da prisão em segunda instância e mais uma penca de decisões teratológicas, a 2ª turma desmontou a Lava-Jato e, com o aval do plenário, recolocou no tabuleiro da sucessão presidencial um criminoso condenado em três instâncias (por uma dezena de magistrados, mas apenas um deles foi considerado parcial).
O chefe do Executivo diz que sua presidência é “uma missão divina” e que só Deus o tira da “cadeira”, deixando evidente que não aceitará uma provável derrota nas unas. Com a conivência produzida pelo orçamento secreto, o réu que preside a Câmara "choca" 145 pedidos de impeachment, o vassalo alçado e reconduzido à chefia da PGR “não vê” indícios de crimes comuns nos atos e omissões de seu suserano e o STF e o TSE se fecham em copas para “não agravar a crise institucional”. Completa esse formidável cenário surreal o ex-presidiário mais famoso do Brasil, ora guindado à curiosa situação de “ex-corrupto”, silenciar sobre o que seu pretenso futuro adversário diz e faz.
Na brilhante contextualização feita em outra vida por certo ex-governador paulista (ora travestido de bobo da corte do pontífice da seita do inferno), Lula quer “voltar à cena do crime” — sendo de seu interesse, portanto, que o ainda mandatário desta republiqueta continue espalhando fezes até a eleição (sem Bolsonaro no páreo, as chances de o petralha se reeleger despencam vertiginosamente).
Na última quarta-feira, Bolsonaro voltou a cutucar o STF com o pé para ver os togados mordem. Depois de limpar o rabo com as supremas togas ao indultar Daniel Silveira, nosso indômito capitão fez saber que seu decreto “foi constitucional” e avisou que decidirá quais decisões do Supremo ele cumprirá ou não.
Em menos de uma semana, o miliciano do Planalto e seus acólitos promoveram um parlamentar troglodita de ameaça à democracia para a de popstar do Legislativo. Com a pena de quase nove anos de cadeia perdoada, Silveira foi escolhido como membro de cinco comissões na Câmara — entre as quais a de Constituição e Justiça. O problema não está no fato de os deputados qualificam um malfeitor, mas no destaque concedido ao par condenado, que desqualifica o Legislativo.
Interessa a Bolsonaro alavancar a própria candidatura à reeleição na esteira da repercussão de um conflito com o Judiciário. Para tanto, aposta em tumultuar o processo eleitoral e em criar instabilidade institucional. Mas as togas começam a desenhar a saída da crise em despachos no processo envolvendo Silveira e nas ações movidas por três partidos para anular a “graça” conferida a ele pelo chefe do Executivo.
Os ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber avisaram que a decisão definitiva será do plenário. Como não há data prevista para o julgamento, Silveira continua sentenciado à prisão, multas e inelegível, com todos os processos em andamento. A premissa para o relógio do STF começar a andar é a publicação do “acórdão condenatório” — quando então passa a valer a extinção das penas, como prevê o decreto.
Segundo Moraes, indulto, graça ou clemência são cabíveis somente após o fim do processo penal — o “trânsito em julgado” —, conforme a coletânea de decisões, ou jurisprudência, “amplamente majoritária” nos tribunais superiores. Ainda segundo o magistrado, “a concessão do indulto extingue a pena, mas não o crime, de modo que não são afastados os efeitos secundários do acórdão condenatório [sentença], dentre os quais a interdição do exercício de função ou cargo públicos.”
Assim, o caso já estaria liquidado em pelo menos um aspecto: Silveira vai ficar inelegível e impedido de ocupar qualquer cargo ou função pública a partir da condenação, mesmo que o Supremo considere constitucional o decreto de Bolsonaro. Quanto ao mandato parlamentar, o problema não é do Judiciário. Somente as duas casas legislativas podem cassar mandatos. Mas isso só pode ser decidido após a publicação do acórdão.
É difícil imaginar que deputados e senadores se disponham a enfrentar o eleitorado (mesmo que estejamos falando de uma récua de muares munidos de título eleitoral), em ano de eleições, defendendo um parlamentar condenado por crimes contra a Constituição e por ameaça de morte a juízes e seus familiares. Além disso, para deixar ex-PM elegível, como pretende o decreto presidencial, precisariam dispor de tempo para votar mudanças tanto na Lei de Ficha Limpa — um dos poucos símbolos anticorrupção que sobraram — quanto na própria Constituição. O tempo da Justiça é diferente, mais relativo do que na política. Mas a questão é que não raro o espírito de porco, digo, espírito de corpo fala mais alto, e abre-se espaço para a coincidência de interesses nos Três Poderes — que podemos chamar de “jeitinho”.
Tanta coisa já aconteceu com Silveira que as pessoas esquecem quem é o personagem. Trata-se de um ex-PM que passou seis anos na corporação, puxou 26 dias de xadrez, colecionou 14 repreensões e duas advertências. Que trabalhou como cobrador de ônibus antes de entrar para a polícia e se valia de atestados médicos falsos para faltar ao serviço. E que foi eleito na aba do bolsonarismo depois de destruir uma placa com o nome da vereadora assassinada Marielle Franco. Uma democracia em que um sujeito como Daniel Silveira é prestigiado no Parlamento é um regime com a cabeça a prêmio.
Com Josias de Souza, José Casado e Ricardo Rangel