Chamava-se “Escalada” o folhetim que a TV Globo levou ao ar entre janeiro e agosto de 1975. Feita esse necessária contextualização, vamos ao que interessa.
Faltam menos de 5 meses para a eleição presidencial (eu diria “eleições” se houvesse ao menos a certeza de que haverá segundo turno, lembrando que, desde FHC, em 1994 e 1998, nenhum postulante a inquilino do Planalto liquidou a fatura de uma pancada só). A julgar pelo que está exposto na vitrina, a terceira via virou Viúva Porcina — aquela que foi sem nunca ter sido. Restam João Doria e Simone Tebet — que, somados, têm menos votos que o perdedor convicto Ciro Gomes. Ou um pouco mais que isso.
Dados divulgados pela Genial/Quaest na quarta-feira 11 indicam que, depois de crescer oito pontos percentuais em três meses e reduzir de 22 para 14 pontos a desvantagem em relação a Lula, o candidato à reeleição parou de crescer em maio e está com 31% da intenções de voto (contra 46% do ex-presidiário). Ciro e Doria registraram, respectivamente, 9% e 4%. Nos dois principais cenários pesquisados, o picareta dos picaretas supera numericamente a soma dos demais adversários (46% a 44%), o que, em tese, lhe dá chance de vencer no primeiro turno.
Ao escolher Braga Netto para vice, Bolsonaro deixou claro (pela enésima vez) que pretende buscar nas Forças Armadas o respaldo para o autogolpe. “Só Deus me tira da Presidência”, disse o “mito” dos apalermados em diversas oportunidades. Caso seja reeleito, seu segundo mandato será uma gestão totalitária, com novos e mais virulentos ataques ao Congresso e ao STF. Se o resultado das urnas não lhe for favorável, o capetão tentará anular o processo alegando fraude. Não à toa, ele vem atacando a democracia e a Justiça Eleitoral e tentando intimidar que se coloca em seu caminho. E como desgraça pouca é bobagem, a alternativa é o ex-presidiário (ora na versão "ex-corrupto").
Parte da culpa por esse descalabro é eleitorado — que dela não está disposto a abrir mão. Os motivos que levam a essa singela conclusão são de uma obviedade ululante. Da feita que eles foram enumerados em diversas oportunidades, poupo o leitor (e a mim) de mais uma desgostante repetição. Relembro apenas que, a despeito de os demais postulantes à Presidência em 2018 estarem mais para um elenco de filme de horror que qualquer outra coisa, nada justifica a escalação da marionete do então presidiário e do duble de mau militar e parlamentar medíocre para o embate final.
Bolsonaro é a encarnação cuspida e escarrada do escorpião da fábula. Só não vê quem não quer — como as “instituições”, que pecam por subestimá-lo e não defenestrá-lo, a despeito dos famigerados discursos golpistas de Sete de Setembro. De nada adianta prender cães danados na corrente; para evitar o mal maior, é imperativo sacrificá-los.
Déspota em estado bruto e eivado de ambições golpistas inegáveis, o mandatário de fancaria almeja a volta da ditadura do coturno sob seu comando. A escalada de discursos radicais é a prova provada da vileza de suas intenções. Mas, e daí? — como disse o próprio, sobre a possiblidade de milhares de brasileiros perderem a vida para a Covid.
Reconhecer o óbvio seria o primeiro passo para desativar a bomba-relógio programada para explodir daqui a cinco meses. Mas de que adiantam 145 pedidos de impeachment se o presidente da Câmara é seu guardião constitucional e deve o cargo a Bolsonaro e ao escuso “orçamento secreto”? Para que servem todas as evidências de crimes comuns contra o pajé da cloroquina se o chefe da PGR age se porta como um patético vassalo?
Com a rasura intelectual e o pendores psicopáticos que fazem parte de sua natureza, o caudilho em gestação alimenta o que há de mais primitivo e tosco em certos setores da sociedade. Nada do que ele diz é verdade, mas qualquer coisa que disser arrancará aplausos de seus seguidores fanáticos e os estimulará a defender causas obscurantistas, quando não criminosas.
A ficha precisa cair. Um candidato em pleno comando da máquina conspira para piorar o ambiente com medidas onipotentes a granel. Não há como ser conivente com seu “jeitinho” arrivista. Reações tímidas e condescendentes custarão caro a um povo que já não tem condições sequer de pagar por um botijão de gás (e quando tem, não lhe sobra dinheiro para comprar o que cozinhar, de modo que dá no mesmo).
A cabeça de um golpista, diz o jornalista Carlos José Marques, funciona de maneira diferente, diabólica, e pega a todos de surpresa porque suas estultices são desprezadas, menosprezadas, relativizadas ou tratadas com desdém. Não há como combater tais ameaças com tapinhas nas costas ou cafezinho. A época do deixa disso já ficou para trás. Um novo estágio de risco foi escalado. Os confrontos diuturnos com o Judiciário já não são simples cortina de fumaça. Bolsonaro quer peitar a Justiça e extinguir ordem democrática constituída. E o pior é que, se ninguém se opuser, ele vai conseguir.
Para concluir: seis anos atrás, durante o mandato-tampão do vampiro do Jaburu, eu publiquei um texto de Guilherme Fiúza (quando o conspícuo jornalista ainda não se havia tornado bolsonarista de carteirinha, talvez porque o bolsonarismo ainda não se havia cristalizado). Reproduzo um excerto:
Os dias eram assim: José Carlos Bumlai, o laranja da revolução, o amigo fiel do chefe da gangue progressista e solidária que arrancou as calças do povo, é solto pelo STF. José Dirceu foi o próximo da lista da alforria, identificado como maestro do Mensalão e do Petrolão, ou seja, um guerreiro do povo brasileiro pelo direito sagrado de garfar os cofres públicos sem perder a ternura.
O ideal é que a Justiça dê liberdade logo a todos esses heróis da história recente, para que eles possam começar tudo outra vez. Caminhando e cantando e seguindo o cifrão. Vamos parar de perseguir esses revolucionários estoicos. Ligue a TV e veja como eles eram lindos. E românticos. O fato de terem chegado ao poder e acabado todos em cana por ladroagem é um detalhe.
Ninguém quer ficar lembrando notícia ruim. Se Hollywood pode cultivar Hugo Chávez como salvador do Terceiro Mundo (a Venezuela sangrenta e arrasada não coube no roteiro), por que não podemos continuar envernizando os anos de chumbo? A revolução de Jim Jones também foi linda. Por que ficar lembrando aquele incidente no final, com a morte de uns 900 seguidores por suicídio e assassinato? Mania de botar defeito em tudo.
A libertação de Bumlai e Dirceu é um episódio emocionante se você imaginar quanto os amigos deles lutaram por liberdade nos anos 1960. Quem disse que utopia não vira realidade? Valeu a pena sonhar: depois da ditadura vem a abertura (da porteira). Eles até se compararam a Nelson Mandela ― ou seja, estão com a maquiagem em dia. Basta dar uma retocada quando o carcereiro chegar, e correr para os braços do povo como ex-presos políticos. O Brasil adora esse tipo de herói. A cama de Lula está feita.
(...) Voltando à narrativa da gloriosa revolução socialista contra a direita malvada, a conta fecha de forma comovente. Faça a estimativa do custo de todos os advogados contratados a peso de ouro por nosso batalhão de heróis enrolados com a polícia por anos a fio e conclua sem medo de errar: estão podres de ricos. E é com esses advogados, com essa fortuna e com a boa vontade que esse charme todo suscita nos bons amigos do Judiciário que eles estão articulando a abertura (das celas).
Talvez você ainda se lembre de que Dirceu, em pleno julgamento como réu do mensalão, continuou faturando com o Petrolão (...) Talvez você tenha registrado que, já em 2014, com a força-tarefa de Curitiba a todo vapor desvendando o escândalo, as engrenagens do esquema continuavam em marcha, inclusive para abastecer a reeleição de Dilma, a presidenta mulher revolucionária do bem. Parece incrível, mas os dias eram assim.
Diante de uma quadrilha virtuosa como essa, que parece ter como característica especial a desinibição, é providencial que o STF comece a soltar os seus principais integrantes. Afinal, os fatos mostram que eles não vão fazer nada de mais, afora girar sua fortuna, reciclar os laços de amizade e voltar a irrigar seus negócios – que tiveram 13 anos de esplendor e ultimamente deram uma caída, prejudicados por fascistas invejosos.
Contratar pesquisas de opinião mostrando que Lula já é o próximo presidente e manifestos de intelectuais à la carte está pouco. É preciso que a Justiça tire os revolucionários do xadrez para que Lula não tenha mais de ficar zanzando por aí de jatinho sem saber direito onde pode pousar. Chega de constrangimento. Que a perseguição a esses homens de bem termine de vez e Lula possa chegar cheio de moral diante de Sergio Moro, dizer que o corrupto é ele, e depois comemorar com um churrasco no tríplex de Guarujá, que ninguém é de ferro.
Como se vê, antes de sucumbir ao bolsonarismo boçal o cara era um profeta.