segunda-feira, 2 de maio de 2022

GASTANDO BOA VELA COM MAU DEFUNTO


Faltando 5 meses para o pleito presidencial, com um sacripanta em campanha permanente e um palanque ambulante liderando as pesquisas desde o dia em que deixou a cadeia, o fato de a tal “terceira via” ser uma obra de ficção é no mínimo preocupante. Sabe-se até agora que o nome do candidato será anunciado no próximo dia 18, e que o escolhido será o postulante que tiver mais chances de romper a polarização. Falta convencer os pré-candidatos preteridos a apoiar o ungido.

Depois que Eduardo Leite jogou a toalha (se nada mudar, ele concorrerá novamente ao governo do Rio Grande do Sul) e uma conspirata eliminou Sergio Moro, restaram João Doria e Simone Tebet — além de Ciro Gomes, que disputou o Planalto em 1998, 2002 e 2018 e jamais chegou ao segundo turno. O cearense de Pindamonhangaba deve concorrer pela quarta vez, mas não necessariamente como candidato da terceira via, embora tenha se mostrado menos avesso ao consórcio com a saída de Moro.

Doria aparece nas pesquisas atrás de Lula, de Bolsonaro e dos votos nulos, mas sua rejeição supera a dos concorrentes. Luciano Bivar, presidente do União Brasil e algoz da candidatura de Moro, simulou interesse em se lançar candidato, mas, pelo andar da carruagem, seu partido deve focar as eleições proporcionais (quanto maior a bancada na Câmara, tanto maior a quota-parte nos fundos eleitoral e partidário).

No final de 2021, o Datafolha atribuía a Lula 47% das intenções de voto, contra 21% de Bolsonaro. Em março deste ano, o escore era 43% a 26%. Em meados do mês passado (já sem Moro na disputa), 42% a 33%. Pelo que se vê, o esfacelamento da terceira via levou os eleitores de Moro para as hostes bolsonaristas — donde a redução da distância que separa o sociopata do ex-presidiário. Isso significa que, sem uma candidatura alternativa (exceto a de Ciro Gomes, caso se queira pensar nele dessa forma), os nem-nem tendem a optar pelo “candidato da situação” em detrimento do “candidato da oposição”. Triste Brasil.

Desencalacrar o Bolsonaro — e o Centrão — é fundamental, mas uma possível volta de Lula et caterva — mais o Centrão — é apavorante. O lançamento tardio da candidatura alternativa só não traz mais benefícios para o “mito” dos apatetados do que a pura e simples inexistência dessa opção. E fica mais nítido a cada dia que a mão que digita o voto será levada mais pelo fígado do que pelo cérebro.

Goste-se ou não de nhô ruim e nhô pior, não se pode menosprezar o carisma e o poder de convencimento de ambos, sobretudo diante de um eleitorado composto majoritariamente por muares descerebrados. O ex-presidiário sabe que o “mito ungido por Deus” — e que só Deus tira da cadeira presidencial, segundo o próprio — vai lhe dar trabalho, e que subestimá-lo pode ser fatal: com ou sem terceira via, a possibilidade de a fatura ser liquidada no dia 2 de outubro é tão improvável quanto a de o sociopata se conformar com sua eventual derrota nas urnas.

Se a tal terceira realmente soçobrar, a culpa não poderá ser atribuída aos líderes nas pesquisas — eles nada fizeram que pudesse ser visto como destruidor por absoluta falta de algo a ser destruído, já que nada de consistente foi construído até agora. O tema está colocado há pelo menos dois anos, e em algum momento a rejeição a Bolsonaro e a Lula criou uma avenida que atraiu diversos aspirantes ao Planalto que surgiram do nada e vêm desaparecendo sem deixar vestígios. 

De Huck a Mandetta, passando por Daciolo (glória a Deus!), Amoêdo, Pacheco e mais um elenco no qual o mais vistoso era Doria, todos foram caindo por desistência, um a um, até que Moro, depois muitas idas e vindas, acabou indo. Ou tentando ir. As justificativas vão de razões pessoais/profissionais a alegações vagas sobre desempenho fraco nas pesquisas. É de se perguntar: desempenho baseado no quê? Nesse tempo todo falou-se — e continua a se falar — em buscar “quem”, mas não se investiu em dizer à sociedade o que mesmo esse pessoal pensava em fazer com o Brasil.

Impedir a reeleição de Bolsonaro e interditar a volta de Lula pareceu pouco a um eleitorado que parece ter se resignado a ficar com o já conhecido, o menos repelido de acordo com o gosto do freguês, e assim deixar que o pleito presidencial se resuma a uma patética briga de torcidas. O cardápio ficou restrito a Doria, Tebet, um improvável Bivar e uma tentativa de levar Ciro à mesa sob o argumento de que, sozinho, ele não chegará a lugar algum. Resta saber aonde ele iria — ou irá, caso adira a uma parceria na qual não é bem-visto pela forma nem pelo conteúdo.

Estacionado num longínquo terceiro lugar nas pesquisas, Ciro vem calibrando o discurso para vender uma imagem que episódios como o ocorrido na feira agrícola de Ribeirão Preto não ajudam a compor. O eleitor que rejeita tão Lula quanto Bolsonaro pode dizer a si mesmo que, palavrão por palavrão, melhor ficar com o desbocado conhecido. A língua ferina, que já custou a Ciro muitos votos em eleições passadas, dificilmente o ajudará a conquistar os votos de que precisa para chegar ao segundo turno se ele continuar a usá-la ara ofender mães alheias ou mandar provocadores se autofornicarem.

Candidaturas a chefes de governo não são fruto de geração espontânea. Requerem ações meticulosas, persistência, desprendimento, investimento pesado, faro fino para o movimento dos ventos, união de forças, gigantesca vontade de vencer e, sobretudo, marca. A existência de uma ou mais ideias-força é essencial para abrir caminho rumo à razão do eleitorado (pausa para as gargalhadas), mas o que se vê por aí é descuido, inconstância, mesquinhez, falta de discernimento, incapacidade de captar e capitalizar as demandas do público, desunião, hesitação, fragilidade nas ações, descrença no propósito e, sobretudo, ausência de marca.

Uma possibilidade de ideia-força da frente ampla foi encampada por Lula, e duas das promessas de candidaturas com aderência popular — de Doria (pela vacinação e bom governo em São Paulo) e de Moro (pelo combate à corrupção) — naufragaram nos equívocos da soberba e da inabilidade política de seus autores. A rondar a hipótese do infortúnio, toma conta do ambiente a suspeita de que o centro não tenha sido incompetente, mas propositalmente adepto do corpo mole de resultados a ser negociados com quem seja eleito ou reeleito.

Triste Brasil.

Com Dora Kramer e Josias de Souza