A ditadura militar que Bolsonaro tanto admira foi um período nebuloso da história do país do futuro que nunca chega. Ao longo de 21 anos, o obscurantismo e a estupidez provocaram um apagão na cultura e geraram hiperinflação e arrocho salarial, mas jamais produziram um presidente com personalidade mais autoritária do que o que ora pugna pela reeleição. Nenhum outro mandatário tupiniquim flertou tanto e tão abertamente com o golpe quanto o atual, e golpes já não se dão com tanques, mas pelo desmonte das instituições. Dá medo imaginar o que Bolsonaro faria se tivesse o poder de um Geisel. Se isso lhe parece surreal, saiba que não é de todo impossível. Haja vista os últimos acontecimentos. Se ganhar mais um mandato, o "mito" dos atoleimados pode destruir a democracia por completo.
Atribui-se a Martin Luther King uma frase de valor inquestionável e que calça como uma luva a conjuntura atual: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”. É preocupante que os maiores interessados na preservação da democracia não se mobilizem. Metade do Congresso Nacional — incluindo boa parte da oposição — segue Artur Lira e Ciro Nogueira e se vende a Bolsonaro pelos bilhões do orçamento secreto. Parafraseando Churchill, alimentam o crocodilo na esperança de serem devorados por último.
Mais grave ainda são as idas e vindas dos aspirantes a candidato da terceira viva. Se não puser o ego de lado e apoiar “de verdade” o membro que tiver chances reais de furar a polarização, essa seleta confraria jamais conseguirá enterrar Lula e Bolsonaro em outubro.
Eduardo Leite não sobreviveu às prévias tucanas e ameaçou abandonar o ninho. Mas voltou atrás, tornou a voltar atrás e, se nada mudar, disputará novamente ao governo do Rio Grande do Sul). Ciro Gomes dificilmente abdicará de sua candidatura (parece que o boquirroto faz questão de ser derrotado pela quarta vez). Doria já se desentendeu com Alckmin, Leite, Jereissati, Aníbal etc. Se não consegue unir o próprio partido, como pretende unir a oposição?
Alckmin migrou para o PSB para ser vice de Lula (e protagonizou um espetáculo vergonhoso numa tentativa patética e nada convincente de demonstrar a admiração que dedica a seu mais novo amigo de infância), esperando caminhar próximo do petista nas articulações de alianças. Mas o ex-presidiário, como o petismo bem sabe, viaja sozinho. Além de não ser chamado a ajudar na estratégia, o ex-tucano tem ficado em silêncio justamente por não ter propostas claras definidas pela campanha para defender. Sa esperança, segundo interlocutores, é que o lançamento da pré-candidatura o ajude a ter mais espaço para dar entrevistas e participar mais do jogo eleitoral.
Moro não encontrou no Podemos o apoio que desejava. Migrou para o União Brasil e teve as asas podadas pelo neto de Toninho Malvadeza. Depois que o UB lançou a candidatura de Bivar (que tem tantas chances de se eleger presidente quanto eu tenho de ser ungido papa), o “soldado da democracia” periga ter de esperar 2024 para se candidatar a vereador.
O PT de Lula continua sendo Lula e Lula continua sendo o PT. E assim será até o egum mal despachado ser finalmente exorcizado. Em 1985, na eleição indireta entre Paulo Maluf, homem da ditadura e corrupto notório, e Tancredo Neves, democrata indiscutível e de caráter ilibado, o PT impôs o voto nulo e expulsou quem votou no político mineiro, que acabou sendo eleito, mas morreu sem tomar posse.
Estadistas como Tancredo sacrificam os interesses pessoais, e até a vida, pelo país. Os políticos de hoje parecem dispostos a sacrificar o país por seus interesses pessoais (se arriscam a sacrificar os dois).
Com Ricardo Rangel