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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

NÃO PODE DAR CERTO — SEXTA PARTE


O fim da ditadura militar não foi uma “consequência natural do espírito democrático” dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido a manifestações populares pró-diretas que, em 1983, reuniram cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária (na Cidade Maravilhosa) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (em Sampa). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também na capital paulista), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

ObservaçãoOs manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo NevesLeonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

Os movimentos pelas “Diretas Já” pugnavam pela aprovação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira, que visava restabelecer as eleições diretas suspensas pelos militares desde 1964. No dia da votação, exatos 20 anos após o golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada, ou por outra, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que consideramos um mal necessário.

O desgaste dos militares propiciou a vitória de Tancredo Neves sobre Paulo Maluf  em 15 de janeiro de 1985. A raposa mineira derrotou o turco lalau por 480 votos a 180 num colégio eleitoral formado por deputados federais, senadores e delegados das Assembleias Legislativas dos Estados. O então presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB, mas acabou preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney, entregou a Tancredo o programa "Nova República", que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros aguardavam ansiosamente o dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos, mas o que deveria ser a festa da democracia transformou-se em luto nacional: Tancredo foi hospitalizado horas antes da cerimônia e dado como morto 38 dias e 7 cirurgias depois. Seu sepultamento em São João Del Rey (MG) produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente de toda a história republicana do Brasil.

Após embates jurídicos acerca da possibilidade de Ulysses ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o José Sarney, vice na chapa de Tancredo e expoente do coronelismo nordestino de cabresto, deveria assumir a Presidência, e foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Oficialmente, o verdugo do Planalto é o 38º presidente desta desditosa banânia, que, também oficialmente (segundo dados da plataforma de monitoramento do ministério da Saúde) está prestes a superar 600 mil vítimas fatais da Covid — segundo diversos infectologistas, imunologistas e outros "istas", cerca de ¾ dessas mortes poderiam ter sido evitadas se o luminar do negacionismo que ainda ocupa a Presidência tivesse agido com um mínimo de competência no gerenciamento da pandemia, em vez de dar ouvidos a um bando de lunáticos desvairados, membros eméritos de um desprezível "gabinete paralelo", segundo o qual o mandatário de fancaria deveria apostar na imunidade de rebanho, cagar e andar para máscaras, isolamento e vacinas, como isso bastasse para a economia voltar a crescer e o projeto "reeleitoreiro" do rascunho do mapa do inferno se concretizar.

Antes de focar esse despresidente bizarro e sua desprezível caterva de apoiadores despirocados, há que dedicar alguns parágrafos à súcia de imprestáveis que presidiram esta banânia desde a redemocratização. Antes, porém, destaco algumas curiosidades:

A cidade de Salvador (BA) foi a capital deste arremedo de banânia entre 1549 e 1763. No Rio, o Palácio do Itamaraty sediou o Executivo Federal até 1897, quando Prudente de Moraes e seu staff passaram a ocupar o Palácio do Catete. A ideia de transferir o DF para o interior era antiga; em 1761, o Marques de Pombal fez essa sugestão, que José Bonifácio ressuscitou em 1823. Mas foi no final dos anos 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que Brasília foi construída do nada, no meio do nada, para ser o novo Distrito Federal, e o Palácio do Planalto, inaugurado em 21 de abril de 1960, a nova sede do governo federal.

O que pouca gente sabe é que Curitiba foi capital da República por três dias — de 24 e 27 de março de 1969 — e que, desde e o golpe militar que substituiu a monarquia parlamentarista pela república presidencialista, em 1899, o Brasil teve nove presidentes eleitos de forma direta dos quais apenas quatro completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, vencedor daquela que é considerada a primeira eleição verdadeiramente democrática do Brasil, em 1945; Juscelino Kubitschek, eleito em 1955; Fernando Henrique Cardoso, eleito no primeiro turno dos pleitos de 1994 e 1998; e o "ex-corrupto" Lula, que se elegeu no segundo turno em 2002 e 2006. Dos outros cinco, Getúlio Vargas “foi suicidado” com um tiro no peito, digo, foi encontrado morto com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, após ser acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e de 27 generais (sempre eles!) exigirem publicamente sua renúncia (sua "carta-testamento" se notabilizou pelas palavras finais: "saio da vida para entrar na História").

Em outubro de 1955, quando JK foi eleito, a ala conservadora, os militares, Café Filho — que passou de vice a titular com o “suicídio” de Vargas — e o presidente da Câmara Carlos Luz — que assumiu interinamente a Presidência com o afastamento de Café — urdiram um golpe de Estado para impedir a posse do presidente eleito. Assim que subiu de posto, Luz substituiu o general Henrique Lott pelo também general Álvaro Fiúza de Castro no comando do Ministério da Guerra. Sentindo o cheiro do golpe, Lott depôs Luz (que foi impichado em 11 de novembro, 4 dias após a posse) e alçou ao cargo o então presidente do Senado, Nereu Ramos. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes da República numa única semana.

 Continua...

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

RETROSPECTIVA — TERCEIRA PARTE

Conhecimentos não-empíricos, como os obtidos através de inexatos livros de História, não autorizam ninguém a pleitear volta dos fardados ao poder. 

A ditadura instituída pela assim chamada Revolução de 1964 foi um golpe militar desfechado na madrugada de 1º de abril, quando líderes civis e militares conservadores depuseram o então presidente João Goulart e empossaram o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias que prevaleceram durante o período mais repressivo do regime. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que poria fim, dali a 11 longos anos, à malfadada ditadura — que se estendeu por intermináveis 21 anos, durante os quais, além de Castello, outros quatro generais presidiram o país, a saber: Costa e SilvaMédiciGeisel Figueiredo

O desgaste do governo militar propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que derrotou Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), em 15 de janeiro de 1985. graças à união do PMDB à chamada Frente Liberal (formada por dissidentes do partido que dava sustentação ao militares). 

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. O processo só foi concluído graças a manifestações populares pró-diretas que reuniram cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária e 1 milhão no Vale do Anhangabaú. A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé, em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

ObservaçãoOs movimentos pró “Diretas Já” pugnavam pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas. Os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes políticos do quilate de Ulysses GuimarãesTancredo NevesLeonel BrizolaFernando Henrique Cardoso e Lula, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida, e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

O deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março — data prevista para a posse do primeiro civil na Presidência em 21 anos. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado 12 horas antes da cerimônia e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois, levando para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros.

O sepultamento do político em São João Del Rey (MG) produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente do Brasil.

Após algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o rebotalho do coronelismo nordestino José Sarney, vice na chapa vencedora, deveria assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

É no mínimo curioso o fato de que muita gente que nem era nascida quando a eleição de Tancredo marcou o fim da ditadura se diz saudosa dos "anos de chumbo". Essa caterva compareceu em peso nas manifestações de 7 de Setembro último, para beber as palavras golpistas de seu despirocado “mito”.

Enquanto os brasileiros não se conscientizarem de que voto é coisa séria — e não perceberam a força que têm —, continuaremos amargando agentes públicos fisiologistas, vendilhões e ladrões. E, guardadas as devidas proporções, o mesmo raciocínio vale para o Poder Judiciário.

Como instituição, tanto a Presidência da República quanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal merecem nosso mais profundo respeito. Mas daí a dizer que o atual chefe do Executivo (bem como os que o precederam desde a "redemocratização"), os 513 deputados federais, os 81 senadores e os 11 togados supremos merecem o mesmo tratamento é confundir alhos com bugalhos.

ObservaçãoConfundir alhos com bugalhos é o mesmo que trocar as bolas, ou, por extensão, meter os pés pelas mãos. O que muita gente não sabe é que bugalhos são bulbos comestíveis de textura semelhante à do alho, cujo formato de pênis inspirou um fado que os marujos lusitanos cantavam nos tempos de Cabral: “Não confundas alhos com bugalhos / Nem tampouco bugalhos com caralhos”.

Continua...

sábado, 7 de janeiro de 2017

SAUDOSISMO - CUIDADO COM O QUE VOCÊ DESEJA

Para alguns, a palavra “saudade” existe somente no português; para outros, isso não passa de um mito. Verdade ou não, o termo ficou em 7º lugar no ranking das palavras mais difíceis de traduzir da empresa britânica Today Translations.

Saudade deriva do latim solitas, solitatis, que, em latim, significa “solidão”, “desamparo”, “abandono”. Daí o significado de “desejo de um bem do qual se está privado”; “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”.

Segundo a professora Luísa Galvão Lessa, Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ e membro da Academia Brasileira de Filologia, os demais idiomas têm dificuldade em traduzir ou atribuir um significado preciso a “saudade”, mas o fato de uma língua não ter palavra que, por si mesma, possa traduzir-se por “saudade” não significa que o povo que a fala não conheça tal sentimento. Tal conceito pode ser, nessa língua ou em outras, expresso por mais de uma palavra. No inglês, por exemplo, têm-se várias tentativas: homesickness (equivalente a saudade de casa ou do país), longing e to miss (sentir falta de uma pessoa); no castelhano, te extraño; no francês, j’ai regret, e no alemão, Ich vermisse dish.

Talvez essas expressões não definam com exatidão o sentimento luso-brasileiro de saudade, mas aí já é outra história; para os propósitos deste preâmbulo, interessa dizer que a lembrança é o elo que liga o passado ao presente, e que é fundamental separar a saudade do saudosismo de achar que tudo era melhor, mais bonito e mais feliz.

Saudosistas, não raro, idolatram um passado que nunca existiu. Um exemplo disso é que, diante do calamitoso cenário político atual, algumas pessoas dizem ter saudades dos tempos da ditadura, mas, quando se vai se ver, nem se conheciam por gente nos assim chamados “anos de chumbo”. E conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História, não autorizam, salvo melhor juízo, pleitear volta dos militares.

A ditadura militar foi instituída em março de 1964, com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco, e se estendeu ao longo de 21 anos, sob o comando dos generais Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante os “anos de chumbo”, o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que, 11 anos depois, poria fim no regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves ― o primeiro presidente civil em mais de duas décadas ―, embora quem assumiu o posto foi seu vice, José Sarney.

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo, e tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido às manifestações populares pró-diretas, que em 1983, reuniram 1,5 milhão de pessoas na Candelária (RJ) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (SP). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também em São Paulo), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE” ― note que os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone, pois a internet era então uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

Observação: Em rápidas pinceladas, a “Revolução de 1964” ― cuja data “comemorativa” é 31 de março ― foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril daquele ano, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram o presidente João Goulart, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados, e a emenda foi rejeitada, a despeito do clamor das ruas. Em outras palavras, o povo foi traído pelos políticos, para variar. Mas o desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar.

Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães ― que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Paulo Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney ― entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses. Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado na véspera da posse e faleceu em 21 de abril (num dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país, seu esquife foi acompanhado por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho de São João Del Rey, onde o corpo do político foi sepultado).

Depois de algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) assumir a presidência, prevaleceu o entendimento de que José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria ser empossado. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal, como veremos no próximo capítulo desta retrospectiva. Abraços a todos e até lá.

Confira minhas atualizações diárias sobre política em www.cenario-politico-tupiniquim.link.blog.br/

domingo, 19 de setembro de 2021

COISAS DO BRASIL



O habito não faz o monge nem a faixa, o presidente. Há que haver conteúdo sob ou por detrás desses adereços indumentários. Notadamente o enfeite tiracolar transferido pelo ex-presidente a seu sucessor na cerimônia de posse — que, desde os idos de 1972, acontece sempre no dia 1º de janeiro do ano subsequente ao da eleição e tem início na Catedral de Brasília, a despeito do inciso VI do artigo 5º da Constituição. Coisas do Brasil.

Depois de desfilar no Rolls Royce Presidencial até o prédio do Congresso Nacional, Bolsonaro assinou o termo de posse, jurou "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil" e recebeu de Michel Temer a faixa presidencial.

Bolsonaro jamais leu a Constituição que jurou defender e, como o escorpião da fábula, é incapaz de contrariar a própria natureza. Apesar de reconhecer que não nasceu para ser presidente, mas para ser militar, foi expelido da Escola de Oficiais do Exército por indisciplina e insubordinação (mas acabou sendo absolvido das acusações pelo STM). No ano seguinte, elegeu-se vereador e depois deputado federal por sete mandatos consecutivos, ao longo dos quais aprovou dois míseros projetos e colecionou mais de trinta ações criminais. Em 2018, foi alçado à Presidência por uma esdrúxula conjunção de fatores, entre os quais um mal explicado atentado que sofreu durante um ato de campanha em Juiz de Fora (MG). 

Bolsonaro disputa com Dilma — o poste com que Lula empalou os brasileiros em 2010 — o título de pior mandatário desde a redemocratização (e não por falta de concorrentes de peso). Com a autoridade de quem sabe das coisas, o general Ernesto Beckmann Geisel — penúltimo presidente da ditadura e mentor intelectual da reabertura política lenta, gradual e segura — definiu o então capitão da ativa comoum caso completamente fora do normal, inclusive mau militar”.

O último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo (povo que, segundo ele, "não sabe nem escovar os dentes, quanto mais votar para presidente"), negou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney (faixa a gente transfere para presidente, não para vice, e esse é um impostor). Coisas do Brasil.

A título de contextualização, vale lembrar que a Revolução de 1964 — cuja data “comemorativa” é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, por líderes civis e militares conservadores, a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo.

Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário. Coisas do Brasil.

O desgaste do governo propiciou a vitória de Tancredo Neves em um colégio eleitoral — por 480 votos contra 180, a raposa mineira derrotou Paulo Maluf (que era apoiado pelos militares) depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal — formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. 

Em janeiro de 1985, o deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar. Mas Tancredo foi hospitalizado 12 horas antes da cerimônia e teve o óbito declarado 38 dias e sete cirurgias depois — ironicamente, no feriado de 21 de abril, data em que o Brasil homenageia Tiradentes, o mártir da independência. Coisas do destino.

Tancredo levou para o túmulo a esperança de milhões de brasileiros, mas deixou de herança um neto que  envergonharia o país e um mix de oligarca maranhense, escritor, poeta e acadêmico chamado José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, mais conhecido como “Zé do Sarney”. A possibilidade de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ser guindado ao Palácio do Planalto chegou a ser cogitada, mas prevaleceu o entendimento de que caberia a José Sarney, vice na chapa de Tancredo e rebotalho do coronelismo nordestino, assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Observação: A origem da alcunha — que o político maranhense usava para fins eleitorais desde 1958 e acabou incorporando oficialmente em 1964 — é atribuída ao fato de seu pai ter sido batizado Sarney de Araújo Costa em homenagem a um inglês de conhecido como Sir Ney, em cuja fazenda José Ribamar nasceu. Coisas do Maranhão.

Fisiologista como poucos e puxa-saco de carteirinha dos poderosos de plantão, Sarney (o filho) sobreviveu à ditadura, mas sua infausta gestão à frente da Presidência foi marcada pela hiperinflação. Tanto o Plano Cruzado quanto os "pacotes econômicos" que se lhe sucederam foram baseados no congelamento de preços e salários, e da feita que repetir o mesmo erro várias vezes esperando produzir um acerto é a melhor definição de idiotice que eu conheço, não causou estranheza o fato de todos fazerem água em questão de meses. 

Em 20 de fevereiro de 1987, pressionado pela queda nas reservas cambiais, Sarney fez um pronunciamento em rede nacional anunciando a suspensão, por tempo indeterminado, do pagamento dos juros da dívida externa — evitando usar a palavra "moratória", como se isso produzisse algum resultado positivo (ou menos negativo) na medida adotada. Coisas do Brasil.

Sarney deixou a Presidência com a popularidade em patamares abissais, tanto que transferiu seu domicílio eleitoral para o recém-criado Estado do Amapá, pelo qual teria chances de conseguir uma vaga no Senado. Como era esperado, seus adversários impugnaram se insurgiram contra o cambalacho, mas o STF o avalizou. Conta-se que o ministro Celso de Mello, que teve os ombros recobertos pela suprema toga graças ao oligarca maranhense, votou pela impugnação da candidatura do benfeitor. 

O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos quis saber por quê. Mello respondeu que a Folha havia publicado que Sarney tinha os votos certos de vários ministros e citara seu nome como um deles. "E você votou contra porque a Folha noticiou que votaria a favor?", perguntou Saulo. "Exatamente", respondeu Mello. E Saulo: "Então você é um juiz de merda!"

Sarney deixou a vida pública em 2014, aos 83 anos, a pretexto de se dedicar à literatura em tempo integral. Conta-se que, após um dilúvio assolar o Maranhão, a então governadora Roseana Sarney — filha do macróbio — telefonou ao pai para informar que metade do Estado estava debaixo d’água. Sarney perguntou-lhe candidamente: "A sua metade ou a minha?

Nas eleições gerais de 2018, os pimpolhos do velho cacique maranhense foram penalizados na urnas: nem Zequinha se reelegeu deputado, nem Roseana — que governou o Maranhão por quatro legislaturas desde 1995 — conseguiu desbancar o pecedebista Flavio Dino — que se reelegeu governador com 59,29% dos votos válidos.

Como dito parágrafos acima, Figueiredo se recusou a transferir a faixa presidencial a Sarney. Não foi o primeiro nem o único caso na história republicana do Brasil. Coisa de país de terceiro mundo? Não necessariamente. Nos EUA, o ex-presidente Donald Trump, ídolo e muso inspirador do capitão-cloroquina, não só deu trabalho para ser desencalacrado do cargo como não compareceu à cerimônia de posse de Joe Biden, o que representa uma quebra de protocolo na tradição democrática americana, mas, como dito, encontra apoio na ala conservadora da política brasileira.

Na história do Brasil, o exemplo mais recente de um chefe do Executivo que se recusou a comparecer à posse de seu sucessor foi Figueiredo, conforme já foi dito nesta postagem. Sobre Sarney, o general disse à revista IstoÉ, pouco antes de sua morte, em 1999: "Sempre foi um fraco, um carreirista. De puxa-saco passou a traidor. Por isso não passei a faixa presidencial para aquele pulha. Não cabia a ele assumir a Presidência".

A quebra de protocolo em Brasília foi relembrada pelo neto do general, minutos depois de o presidente americano anunciar que não compareceria à posse do sucessor. "Meu avô também não compareceu à posse de seu sucessor, que chegava ao poder de forma ilegítima. Agiu conforme suas convicções. Assim devem fazer os homens de caráter!", postou no Twitter o empresário Paulo Figueiredo Filho. Coisas do Brasil.

Figueiredo não foi o único a se recusar a cumprir os ritos de transição no Brasil. A República ainda engatinhava quando Floriano Peixoto, que governou de 1891 a 1894, decidiu não comparecer à posse de Prudente de Morais porque não via com bons olhos a chegada de um civil ao poder. Afonso Pena também não passou a faixa a seu sucessor, Nilo Peçanha (e nem poderia, porque Nilo era vice de Pena, a quem substituir em virtude de sua morte, em 1909). Em 1954, Café Filho viu-se presidente do dia para a noite e começou a governar o país sem a bênção de seu antecessor, Getúlio Vargas, que "foi suicidado" com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954.

Após o impasse entre Figueiredo e Sarney, somente dois presidentes eleitos diretamente (FHC e Lulareceberam e passaram a faixa a seus sucessores. O primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar — o pseudo caçador de marajás Fernando Collor de Mello — recebeu a faixa de Sarney em março de 1990, mas renunciou ao mandato em dezembro de 1992 (e foi impichado mesmo assim, de modo que não passou a faixa a Itamar Franco).

Itamar, por sua vez, tomou posse em uma cerimônia breve e só usou a faixa presidencial no último de seus dois anos e três dias de governo, quando a colocou sobre os ombros de FHC. O tucano, presidente por dois mandatos, cumpriu o mesmo protocolo na posse de Lula, em 2003. Oito anos depois, foi a vez de Dilma ser destituída em um processo de impeachment — e não comparecer à posse de Michel Temer. Em janeiro de 2019, o vampiro do Jaburú repassou a faixa ao mandatário de fancaria que, por mal de nossos pecados, diz que "só Deus o tira da cadeira presidencial". Coisas do Brasil.

Bolsonaro na presidência era tudo de que o os brasileiros não precisavam, mas tornou-se a única alternativa válida depois que o ilustríssimo eleitorado tupiniquim o escalou para enfrentar o bonifrate do presidiário de Curitiba no segundo turno do pleito de 2018. Voltando à paráfrase de Bolsonaro a uma fala de Figueiredo, “plagiar é, implicitamente, admirar”, como bem disse o intelectual lusitano Júlio Dantas. Mas a pergunta que não quer calar é: se não nasceu para ser presidente, por que Bolsonaro fez da reeleição seu projeto de governo?

"Prometo que, se eleito, vou trabalhar noite e dia, durante os quatro anos do meu mandato… para ser reeleito”. Eis a promessa mais sincera e verdadeira feita pelo então candidato, como salientou o ex-delegado federal Jorge Pontes num artigo publicado em Veja. "Teremos um lapso de quatro anos praticamente jogados fora, destinados apenas à pavimentação de mais um — improvável — mandato presidencial", profetizou o policial, em agosto do ano passado.

Assim, graças à verdadeira herança maldita deixada pelo grão-duque do Tucanistão, assistimos a um mandatário eleito com juras de grandes mudanças e discursos anti-establishment emular Dilma, a inesquecível, e fazer o diabo para se reeleger.

A vitória de Bolsonaro foi um caso clássico de emenda pior que o soneto. Embora seja preferível acender a vela a amaldiçoar a escuridão, unir forças com os sectários do bolsonarismo boçal para evitar a volta da cleptocracia lulopetista foi como libertar da garrafa um gênio malfazejo e não saber como prendê-lo de volta. E urge fazê-lo, pois o Brasil dificilmente sobreviverá a mais cinco anos sob o descomando desse mafarrico.  

Segundo a revista eletrônica Crusoé, o presidente de fato desta banânia (falo do centrista Ciro Nogueira) disse a um empresário que Bolsonaro está "cada vez mais mercurial e incontrolável". O diagnóstico perturbador do ministro recém-empossado com promessas de carta branca jamais cumpridas reflete o estado de ânimo atual de setores do Centrão e de boa parte do Congresso. Embora estejam bem servidos em postos estratégicos e se lambuzando no poder desde que que o chefe do Executivo de festim lhes entregou a chave do cofre, a centralhada já entendeu que a aliança tem prazo de validade, e que esse prazo não é longo. Para as marafonas do parlamento, Bolsonaro é um político fadado ao infortúnio, seja pelo impeachment, pela cassação no TST ou derrota nas urnas. E convenhamos que não é preciso ser nenhum "Nostradamus" para fazer tal previsão.

Ainda segundo a reportagem, depois que o desembarque do governo passou a ser debatido a sério entre os partidos que compõem o Centrão, o presidente pato-manco enviou pelo líder do governo na Câmara — o ilibadíssimo Ricardo Barros, a quem o senador Omar Aziz, relator da CPI do Genocídio, se refere como responsável por um balcão de negócios com o Congresso que está a todo vapor — o recado de que continua em pé o esforço para conter possíveis defecções em sua base de apoio.

Entrementes, a despeito da carestia, a inflação oficial segue acima do esperado. O IPCA, medido pelo IBGE, acelerou para 9,68% no acumulado em 12 meses, levando a uma onda de revisões entre os economistas. Na segunda-feira, 13, o Boletim Focus, do Banco Central, registrou a 23ª alta consecutiva da mediana das projeções para o IPCA no fim de 2021, que agora está em 8%. Mas isso é assunto para uma próxima postagem.

domingo, 11 de outubro de 2020

A RENÚNCIA DE JÂNIO, SUAS CONSEQUÊNCIAS E OUTRAS CURIOSIDADES — FINAL



Há inúmeras teorias sobre a renúncia de Jânio, mas parece ser consenso que o ex-presidente apostava em fortes manifestações, com o povo clamando nas ruas por seu retorno ao poder. Não à toa, ele apresentou sua carta-renúncia e voou para São Paulo (levando a faixa presidencial), onde permaneceu durante horas, aparentemente esperando uma reação de apoio que não aconteceu — fala-se que um arranjo urdido nos bastidores teria impedido que a população soubesse onde ele estaria quando a notícia da renúncia fosse divulgada.

Aceita a renúncia, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu interinamente a chefia do Executivo — já que os militares vetaram a ascensão do vice, João Goulart, devido a sua fama de “comunista”. Mazzilli foi apenas uma figura decorativa, já que os três ministros militares do governo Jânio formaram uma junta provisória e presidir o Brasil até a adoção do regime parlamentarista, que foi implementado duas semanas depois e reduziu os poderes presidenciais, levando os militares a permitir que Jango assumisse a presidência.

Curiosidades: 1) O primeiro Primeiro-Ministro do parlamentarismo tupiniquim foi o político mineiro Tancredo de Almeida Neves, que dali a 24 anos, seria eleito o primeiro presidente civil pós-ditadura militar. 2) No ano seguinte a sua renúncia, Jânio disputou novamente o governo de São Paulo, mas foi derrotado por seu velho desafeto Ademar de Barros.

A experiência parlamentarista foi revogada por um plebiscito em 6 de janeiro de 1963. Duas semanas depois, Jango assumiu a presidência — que era sua por direito desde a renúncia de Jânio —, mas foi deposto pelo golpe de 1964, que deu início à ditadura militar que só terminaria em janeiro de 1985, durante o governo do general João Figueiredo, com a vitória de Tancredo Neves (MDB) sobre Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral composto de senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais.
 
Observação: Segundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência 12 horas antes da cerimônia de posse. Também oficialmente, o mineiro foi declarado morto 38 dias e sete cirurgias depois — por uma ironia do destino, no feriado de Tiradentes, o “mártir da independência”. Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney, de quem se tornara inimigo desde que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, dizia Figueiredo, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Por outro lado, a mágoa que o último presidente da ditadura militar guardava do político maranhense era bem menor que a resistência da caserna a Ulysses Guimarães.  

Com a eclosão da ditadura, Jânio teve os direitos políticos cassados e só tornou disputar uma eleição em 1985, quando derrotou o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Eduardo Matarazzo Suplicy e se elegeu prefeito de São Paulo. Sua vitória surpreendeu a todos, inclusivo os institutos de pesquisa, tanto que o pomposo grão duque tucano se deixou fotografar aboletado na cadeira de prefeito, o que levou Jânio a desinfetá-la ao tomar posse, dizendo: "Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram".

Em sua derradeira empreitada político-administrativa, Jânio repetiu seus lances populistas habituais: pendurou uma chuteira em seu gabinete (para ilustrar o suposto desinteresse em prosseguir na política), proibiu jogos de sunga e de biquínis fio-dental no Parque do Ibirapuera, forçou a demissão de alunos homossexuais da Escola de Balé do Teatro Municipal, aplicou multas de trânsito pessoalmente e fechou os oito cinemas que exibiriam no ano seguinte (após o término de seu mandato, portanto) o filme A Última Tentação de Cristo, por considerá-lo desrespeitoso à fé cristã.

Ao mesmo tempo em que criava factoides midiáticos estapafúrdios, o ex-presidente investiu na iluminação e pavimentação de centenas de quilômetros de vias públicas, criou a Guarda Civil Metropolitana, abriu os túneis da Avenida Juscelino Kubitschek, inaugurou o Corredor Santo Amaro, reformou o Vale do Anhangabaú, restaurou bibliotecas públicas e teatros (entre eles o Teatro Municipal) e concebeu pessoalmente um sistema viário de múltiplos túneis que conectavam avenidas vitais de São Paulo — obras caríssimas e complexas que foram interrompidas por sua imprestável sucessora, mas retomadas e concluídas pelo alcaide seguinte. Nesse meio tempo, ele se licenciou diversas vezes para cuidar tanto de sua saúde quanto da de sua mulher, Eloá Quadros (falecida em 1990). 

Jânio terminou sua derradeira gestão com apenas 30% de aprovação e apoiou a candidatura de João Leiva (em detrimento de João Mellão Netto e Marco Antonio Mastrobuono, que integraram seu secretariado). Mas quem venceu o pleito foi a petista paraibana Luíza Erundina (que, juntamente com Celso Pitta e Fernando Haddad, compõe o trio dos piores alcaides da história de São Paulo). Visivelmente abalado com a vitória do PT, o prefeito em final de mandato viajou para Londres (a pretexto de passar as festas de final de ano na cidade que tanto admirava), deixado a cargo do secretário Claudio Lembo a incumbência de representá-lo na cerimônia de posse da petista.

Foi também devido à saúde debilitada que Jânio declinou do convite do PDS para disputar a presidência em 1989 e anunciou sua aposentadoria definitiva da política. Após a morte de dona Eloá, passou o tempo de vida que lhe restava entre casas de repouso e quartos de hospitais, e três derrames cerebrais mantiveram-no em estado vegetativo durante meses; Em 16 de fevereiro de 1992, ele finalmente passou desta para melhor, deixando de herança cerca de 70 imóveis — sua única filha, Dirce “Tutu” Quadros, chegou a denunciá-lo por corrupção, e ela parecia saber das coisas: durante a Operação Castelo de Areia, a PF revelou que Jânio tinha US$ 20 milhões depositados na Suíça em uma conta secreta.

Agora a cereja do bolo: Em agosto de 1991, exatos 30 anos após sua renúncia, sabendo que não lhe restava muito tempo de vida, o ex-presidente confidenciou ao neto os verdadeiros motivos de sua renúncia, e Jânio Quadros Neto os revelou em entrevista concedida ao Fantástico em 1999. 

Como quem acompanhou atentamente esta sequência deve ter concluído, a renúncia foi uma tentativa de golpe com o propósito de reassumir ungido pelo povo e, portanto, com mais poderes, mas as palavras que Jânio usou para explicá-la ao neto (depois de definir a presidência como “a suprema ironia, pois por um lado era um inferno, mas por outro era melhor que um orgasmo”) foram as seguintes:

“A minha renúncia era pra ter sido uma articulação. Eu nunca imaginei que seria de fato aceita. Tudo foi muito bem planejado, organizado. Eu mandei o vice-presidente [Jango] em uma visita oficial à China, o lugar mais longe possível. Assim ele não estaria no Brasil para assumir no meu lugar ou fazer articulações políticas.

Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência e pensei que os militares, os governadores e principalmente o povo jamais aceitariam minha renúncia. Pensei que iriam exigir que eu ficasse no poder, porque Jango era inaceitável para a elite. Achei também que era impossível que ele assumisse porque todos iriam implorar para que eu ficasse.

Renunciei no Dia do Soldado porque queria sensibilizar os militares, conseguir o apoio deles. Imaginei que o povo iria às ruas seguido pelos militares. Os dois me chamariam de volta. Achei que voltaria para Brasília com glória.

Ao renunciar, eu pedi um voto de segurança a minha permanência no poder, porque isso é feito frequentemente pelos primeiros ministros lá na Inglaterra. E fui reprovado. Deu tudo errado.

A renúncia foi uma estratégia política que não deu certo e também foi o maior fracasso político da história republicana do país, o maior erro que cometi. E o país pagou um preço muito alto."

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

COISAS QUE SÓ ACONTECEM NO BRASIL


Dizem que a jabuticaba (fruta) e a saudade (palavra) são exclusividades tupiniquins, mas não é verdade. Apesar de ser nativa da Mata Atlântica, a jabuticabeira está presente em outros países da américa latina, como México e Argentina. E o vocábulo "saudade" tem similares em espanhol (soledad), no catalão (soledat) e em várias outras línguas neolatinas.

A originalidade portuguesa foi a extensão do termo a situações que não a "solidão devida à falta do lar". Para nós, "saudade" é algo como "a dor de uma ausência que temos prazer em sentir" — ou, na definição dos dicionaristas, um "sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar, ou à ausência de experiências prazerosas já vividas". Aliás, quem tem prazer em sentir dor é masoquista.

Não restam dúvidas de que o Brasil está longe de ser um país sério. A propósito, quem proferiu a célebre frase "le Brésil n’est pas un pays serieux", frequentemente atribuída ao general francês Charles de Gaulle, foi na verdade o diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza Filho, genro do presidente Artur Bernardes. E quem disse que "O Brasil não é para principiantes" (ou para "amadores", conforme a versão dessa história) foi mesmo o saudoso maestro Tom Jobim (brasileiro até no nome).

Saudosistas não raro idolatram um passado que nunca existiu. No Brasil, alguns vão mais além: gente que nem sequer era nascida quando a eleição de Tancredo Neves pôs termo à ditadura militar diz "sentir saudades dos anos de chumbo" e (pasmem!) apoia o desgoverno do inquilino de turno do Planalto — uma aberração que apoiamos para evitar a volta do lulopetismo corrupto, sem imaginar, àquela altura, que estávamos removendo o pino de uma granada de efeito retardado, desarrolhando a garrafa que prendia um efrite (ou ifrit) megalômano, abrindo a caixa de Pandora, enfim, deixo por conta do freguês a escolha da melhor analogia.

Desde a posse, esse mau militar e parlamentar medíocre nada fez senão articular sua reeleição. Quanto aos inúmeros problemas que o país enfrenta (em parte pela incompetência chapada de seu mandatário de fancaria), sua excelência vem fazendo o que continuará a fazer se não for impedido — ou seja, o que ele disse ter feito para a CPI do Genocídio. E assim, de cagada em cagada, o cagão vai esmerdeando o lema chauvinista e enjoadinho que associou à sua campanha: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos".

Conhecimentos não-empíricos, de segunda-mão, obtidos através de inexatos livros de História não autorizam quem quer que seja a pleitear volta dos fardados ao poder. A ditadura militar, instituída em março de 1964 com a deposição do então presidente João Goulart e a posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco se estendeu por intermináveis 21 anos, ao longo dos quais ocuparam o Palácio do Planalto os generais Costa e SilvaMédici, Geisel e Figueiredo, nessa ordem. 

Em 1968, o “linha-dura” Costa e Silva decretou o AI-5, produzindo um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros que prevaleceram durante o período mais repressivo do governo militar. Em 1974, Geisel deu início ao lento processo de abertura que poria fim, 11 anos depois, ao regime de exceção com a eleição (indireta) de Tancredo Neves — o primeiro presidente civil em mais de duas décadas (que baixou ao hospital 12 horas antes da cerimônia de posse e morreu 38 dias e 7 cirurgias depois).

O fim da ditadura não foi uma “consequência natural do espírito democrático” de Geisel e Figueiredo nem tampouco transcorreu sem turbulências e acidentes de percurso. Aliás, o processo de abertura só foi concluído devido a manifestações populares pró-diretas que reuniram, em 1983, cerca de 1,5 milhão de pessoas na Candelária (na Cidade Maravilhosa) e 1 milhão no vale do Anhangabaú (em Sampa). A mais emblemática delas lotou a Praça da Sé (também na capital paulista), em janeiro de 1984, com 300 mil pessoas carregando faixas e vestindo camisetas onde se lia a inscrição “EU QUERO VOTAR PARA PRESIDENTE”.

Observação: Os manifestantes apareceram espontaneamente para ouvir e aplaudir líderes como Ulysses Guimarães, Tancredo NevesLeonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, Lula e outros políticos, além de artistas e intelectuais que se revezavam ao microfone. Em meados dos anos 1980, a Internet ainda era uma ilustre desconhecida e as redes sociais só surgiriam e se popularizariam quase duas décadas depois.

A “Revolução de 1964” — cuja data comemorativa é 31 de março — foi um golpe de Estado desfechado na madrugada de 1º de abril, quando líderes civis e militares conservadores derrubaram Jango — a pretexto de afastar do poder um grupo político que supostamente flertava com o comunismo. Nos movimentos pró “Diretas Já”, pugnava-se pela aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que visava restaurar o direito às eleições diretas, que havia sido suspenso pelos militares. No dia da votação, exatos 20 anos depois do golpe, uma manobra de bastidores tirou da Câmara 112 deputados. A despeito do clamor das ruas, a emenda foi rejeitada — em outras palavras, o povo foi traído (mais uma vez) pela classe política, o câncer social que, infelizmente, é um mal necessário.

O desgaste do governo propiciou a eleição (indireta) de Tancredo Neves, que venceu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral (por 480 votos a 180), depois de unir o PMDB à chamada Frente Liberal, formada por dissidentes do PDS, que dava sustentação ao governo militar. Em janeiro de 1985, o então deputado federal Ulysses Guimarães — que chegou a ser cogitado para disputar a presidência da República pelo PMDB contra o pedessista Maluf, mas acabou sendo preterido pela chapa “mista” formada com o PFL de Sarney — entregou a Tancredo o programa denominado Nova República, que previa eleições diretas em todos os níveis, educação gratuita, congelamento de preços da cesta básica e dos transportes, entre outras benesses.

Com esperança e ânimos redobrados, os brasileiros ansiavam pela chegada do dia 15 de março, data prevista para a posse do primeiro presidente civil depois de 21 anos e, consequentemente, a volta dos militares às casernas. Mas o que deveria ser a festa da democracia se transformou em luto nacional: Tancredo foi internado 12 horas antes da cerimônia de posse morreu 38 dias e 7 cirurgias depois. O sepultamento do político — em São João Del Rey (MG) — produziu um dos maiores cortejos fúnebres já vistos no país: o féretro foi seguido por mais de 2 milhões de pessoas por São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, a caminho da cidade natal daquele que foi, sem jamais ter sido, o maior presidente do Brasil.

Após algumas discussões jurídicas sobre a possibilidade de o então presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães) ser guindado ao Palácio do Planalto, prevaleceu o entendimento de que o rebotalho do coronelismo nordestino José Sarney, vice na chapa de Tancredo, deveria assumir a Presidência. E foi o que aconteceu, para o bem e para o mal.

Sem embargo, há por estas bandas gente que — repito — sequer era nascida quando a eleição de Tancredo marcou o fim da ditadura, mas se diz saudosa dos "anos de chumbo". E tudo indica que essa escumalha comparecerá em peso às manifestações pró-governo marcadas para o próximo dia 7. Quem viver verá que haverá, então, mais jovens rinchando bestagens do que sessentões — que cresceram e adolesceram em meio à ditadura — defendendo o fechamento do Congresso e a prisão dos ministros do STF, entre outras sandices.

Longe de mim passar a impressão de que, em minha desvaliosa opinião, nossos parlamentares façam jus a rasgados elogios. E o mesmo se aplica a atual composição da mais alta corte de Justiça tupiniquim. Como instituições, tanto a Presidência da República quanto o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal merecem nosso mais profundo respeito. Mas daí a dizer que o atual chefe do Executivo (assim como os que o precederam desde a "redemocratização"), os 513 deputados federais, os 81 senadores e os 10 togados supremos (seriam 11 se alguém já tivesse ocupado a vaga aberta com a aposentadoria do primo de Collor) merecem o mesmo tratamento é confundir alhos com bugalhos.

Observação: Confundir alhos com bugalhos é o mesmo que trocar as bolas, ou, por extensão, meter os pés pelas mãos. O que muita gente não sabe é que bugalhos são bulbos comestíveis de textura semelhante à do alho, cujo formato de pênis inspirou um fado que os marujos lusitanos cantavam nos tempos de Cabral: “Não confundas alhos com bugalhos / Nem tampouco bugalhos com caralhos”.

Retomando o fio da meada, ou melhor, remetendo ao título desta postagem — que tomei emprestado do artigo publicado por Ricardo Rangel em Veja — e que transcrevo mais adiante —, há coisa que parecem acontecer somente no Brasil (e ainda dizem que Deus é brasileiro!).

Ao contrário do que escreveu Karl Marx, a história nem sempre se repete como tragédia ou farsa. Às vezes — para o bem ou para o mal — ela reproduz fielmente o passado.

A julgar pelo exercício de futurologia que institutos como Datafolha, Ibope, Vox Populi, Paraná Pesquisas e assemelhados chamam de pesquisas de intenções de voto, o ex-presidiário travestido de "ex-corrupto" e o maníaco que (ainda) ocupa o Palácio do Planalto abrilhantarão o segundo turno do pleito presidencial de 2022. E a menos que o imprevisto tenha voto decisivo na assembleia dos acontecimentos, o picareta dos picaretas fará picadinho do capitão despirocado. Ao que parece, tudo depende do que acontecer no próximo dia 7 (vide postagem anterior). Enfim, quem viver verá. Enquanto isso, passo a palavra a Rangel.  

O presidente da República declarou que o Supremo não tem direito de abrir inquérito de ofício. O governo federal entrou com ação no Supremo pedindo ao Supremo que revogue o artigo do regimento interno do Supremo que permite ao Supremo que abra inquérito de ofício.

O advogado do presidente da República cantou uma mulher casada e fugiu correndo quando o marido da mulher o perseguiu com uma faca.

O presidente da República convocou para o golpe (que ele chama de “contragolpe”). Quando a convocação vazou, irritou-se.

Um cantor convocou para o golpe. Quando a convocação vazou, declarou-se magoado, triste, depressivo e chorou em entrevista. Ao sofrer busca e apreensão, declarou que não tem medo de ir para a cadeia, que não é frouxo, não é mulher. E novamente pediu desculpas em nova entrevista, desta vez na cama.

Um deputado aventou a hipótese de que o cantor tenha usado dinheiro público para comprar uma prótese peniana. O líder da associação dos produtores de soja desmentiu o cantor, que havia citado seu nome como participante do golpe, e deu como explicação a hipótese de ele ter “tomado umas pingas”. Após sofrer busca e apreensão, o líder desfilou com tratores na porta da Polícia Federal.

O presidente da República entrou com ação de impeachment contra ministro do Supremo.

Um comediante fez ameaças aos ministros do Supremo e pediu o fechamento do tribunal e do Congresso.

Vários coronéis da PM, inclusive um da ativa, comandante de cinco mil homens, convocaram para o golpe — que tem data, hora e local marcados com um mês de antecedência e conhecidas pelo público.

Os militares avisaram que não vão poder comparecer.

EM TEMPO: Na manhã do último sábado, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, nosso indômito capitão compartilhou com a récua de muares que vão ao Nirvana com suas bolsonarices a seguinte profecia: "Eu tenho três alternativas para o meu futuro: estar preso, estar morto ou a vitória. Pode ter certeza de que a primeira alternativa não existe. Estou fazendo a coisa certa e não devo nada a ninguém. Sempre onde o povo esteve, eu estive". Esqueceu-se sua excelência de uma quarta possibilidade, que, pelo andar da carruagem, tende a ser a mais provável: a derrota.

No âmbito judicial, Bolsonaro é investigado em cinco inquéritos. O assim chamado inquérito das fake news, que tramita no STF, investiga um esquema de disseminação sistemática e organizada de informações falsas com o objetivo de fragilizar as instituições e a democracia. Outro inquérito, no TSE, investiga o mandatário por ataques sem provas às urnas eletrônicas e tentativa de deslegitimar o sistema eleitoral brasileiro. Além disso, nos últimos dias, aliados do presidente foram alvo de operações contra atos ofensivos à democracia e às instituições do Estado.

Bolsonaro também enfrenta desgaste nos campos político e econômico, com inflação, desemprego e pobreza em alta, e o risco de apagão no fornecimento de energia elétrica, diante do baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas. Em Goiânia, ao lado de líderes evangélicos, o presidente discursou por cerca de 20 minutos. No fim, disse: "Deus me colocou aqui, e somente Deus me tira daqui", repetindo uma frase já comum em declarações do presidente. Já do lado de fora da igreja, tirou fotos com apoiadores e tomou caldo de cana. Depois de falar com o público, ele se encontrou com políticos e empresários de Goiás em um local onde foram colocadas tendas e montado um palco. 

Alea jacta est.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

... E PODE PIORAR AINDA MAIS

 

Desde sempre que os brasileiros são vocacionados a eleger representantes ladrões e mandatários populistas e imprestáveis. Jânio Quadros é um bom exemplo. Sua renúncia levou ao golpe de 64 e aos subsequentes 21 anos de ditadura militar. Senão vejamos.

Eleito em outubro de 1960, no apagar das luzes do governo de Juscelino Kubitschek — que se notabilizou por construir Brasília do nada, no meio do nada, para suceder ao Rio como Distrito Federal —, o advogado, professor de português, político e cachaceiro inveterado “homem da vassoura” assumiu a Presidência em janeiro do ano de 1961, prometendo “varrer” toda a sujeira da vida pública brasileira. Depois de passar 206 dias mandando “bilhetinhos” para auxiliares e se preocupando com questiúnculas — como rinhas de galo, corridas de cavalo, biquinis nas praias e maiôs cavados em concursos de misses —, o demagogo, "movido por forças terríveis", renunciou ao cargo. 

Na manhã do dia 25 de agosto, após ser acusado por Carlos Lacerda — que viria a ser um dos articuladores civis do Golpe de 1964 e a ganhar o epíteto de “demolidor de presidentes” — de tramar um “golpe de gabinete”, Jânio informou à primeira-dama, dona Eloá, que deixariam Brasília naquela tarde. No Planalto, antecipou aos ministros-chefes das casas Civil e Militar a manchete dos jornais do dia seguinte: “Comunico aos senhores que renuncio, hoje, à Presidência da República. Ajustem o novo Brasil às exigências do Brasil novo. Com esse Congresso, eu não posso governar”.

Findo o desfile do Dia do Soldado, Jânio encarregou o ministro da Justiça de entregar ao presidente do Senado sua carta-renúncia e voou para a Base Aérea de Cumbica, levando consigo a faixa presidencial (que a essa altura não mais lhe pertencia) e a esperança de o pedido não ser aceito — ou de o renunciante de festim ser reconduzido ao cargo por uma manifestação de apoio popular, o que lhe permitira governar sem ser "incomodado pelo Congresso". Mas faltou combinar com os russos.

Mais preocupados em impedir a posse de Jango, os militares esqueceram Jânio, e o povo só poderia ser mobilizado por um partido janista se seu líder tivesse permitido sua existência. 

Assim, enquanto o país mergulhava na crise provocada pelo veto à promoção do vice a titular, o já ex-presidente embarcou com a mulher num cargueiro com destino à Europa, o presidente da Câmara assumiu (decorativamente) a chefia do Executivo e os ministros militares (que governaram de fato nas semanas seguintes) implementaram a toque de caixa o parlamentarismo. 

Com os poderes limitados e tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro, o “vice comunista” foi autorizado a assumir a presidência como chefe de Estado. Mas a experiência parlamentarista foi tão conturbada quanto curta: um plebiscito realizado em 6 de janeiro de 1963 restabeleceu o presidencialismo. 

Jango finalmente assumiu o cargo que era seu por direito, mas foi deposto, quinze meses depois, pelo golpe de 1964. Fica evidente, portanto, que a incipiente democracia tupiniquim havia entrado em parafuso em 25 de agosto de 1961, com a renúncia do populista cachaceiro.

Sobre o golpe: Em 1964, partidos de esquerda, grupos comunistas e seus associados discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado, se pela luta armada ou pelo caminho reformista. Naquela época, a ampla maioria da esquerda era reformista — pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações. 

Jango, filiado ao PTB getulista, estava claramente no campo da esquerda. Ainda que houvesse comunistas em seu governo e no entorno, o presidente nada tivesse de comunista, a exemplo de ilustres membros do seu gabinete durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas, que eram, no máximo, socialdemocratas, trabalhistas ou nacionalistas.

Como o grupo comunista era claramente minoritário, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento dos gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura (mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha, e no governo Lula, mas isso é outra conversa). 

Em 1964, no auge da “Guerra Fria” o mundo estava dividido entre os EUA e a URSS. As plataformas reformistas — aqui, no Chile, na Argentina etc. — procuravam se aproximar não propriamente da União Soviética, mas do “Bloco do Terceiro Mundo”, que se declarava independente, mas pendia para a esquerda, ou seja, era adversário dos EUA, que, nessa disputa, patrocinavam ditaduras direitistas para, como se dizia na época, evitar a ditadura comunista.

Não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista. Nem pela via reformista, nem pela luta armada. A melhor chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira era a de ser massacrada, como de fato aconteceu. Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis. 

Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam era simplesmente Ocidente versus Pacto de Varsóvia (a frente militar da URSS). O Congresso chancelou a derrubada de Jango e elegeu presidente o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, marechal Humberto de Alencar Castello Branco. Mas só o fez porque a alternativa era o fechamento.

Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe, achando que seria um interregno necessário para garantir a eleição presidencial de 1965, que seria disputada entre Juscelino Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador, liberal, democrata). Mas não tardaram a se arrepender, e foram abandonando o governo militar à medida que este radicalizava, transformava-se numa verdadeira ditadura e dava sinais de que tencionava se perpetuar no poder. Lacerda, apoiador do golpe, terminou cassado e se uniu a JK, também cassado, numa frente pela democracia.

O Congresso funcionou durante os 21 anos de ditadura — noves fora os breves momentos em que ousou discordar do regime — e “elegeu” todos os presidentes, mas somente depois que os generais de quatro estrelas decidiam quem seria o mandatário de turno. 

Partidos políticos foram proibidos, a imprensa, censurada, opositores — tanto democratas quanto comunistas —, presos, torturados e mortos. Quando a política econômica finalmente fracassou — com recessão, dívida externa explosiva e inflação —, a ditadura caiu e os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso num processo conduzido por políticos habilidosos.

Em 1985, Tancredo Neves (MDB) derrotou Paulo Maluf (ARENA) por 480 a 180 votos de um colégio eleitoral formado por senadores, deputados federais e membros das assembleias legislativas estaduais. Mas quis o destino o presidente eleito fosse internado 12 horas antes da posse e dado como morto 38 dias e 7 cirurgias depois — ironicamente, no dia 21 de abril, feriado que homenageia Tiradentes, o Mártir da Independência.  

ObservaçãoSegundo a versão oficial, uma diverticulite obrigou Tancredo a ser submetido a uma cirurgia de emergência horas antes da posse. Também oficialmente, sua morte se deu no dia 21 de abril, depois de outras sete cirurgias. O general João Figueiredo se recusou a passar a faixa ao vice, José Sarney — um reles traidor, segundo o fardado, já que o ex-presidente da ARENA e representante do regime militar no Congresso deixara o partido governista e se juntara à oposição. “Faixa a gente transfere para presidente. Não para vice, esse é um impostor”, disse o general, que deixou o Planalto assim que a votação no Congresso foi encerrada. Ainda assim, a mágoa que o último presidente da ditadura guardava do repulsivo oligarca maranhense era menor que a resistência da caserna ao deputado Ulysses Guimarães.

Continua...