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quarta-feira, 8 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — TERCEIRA PARTE



Peguemos nossa máquina do tempo e teletransportemo-nos do século XVI — quando os lusitanos botaram as patas na terra do pau-brasil, até o ano de 1808 — quando a Família Real Portuguesa, ameaçada pelo Tratado de Fontainebleau, mudou-se de mala e cuia para sua colônia, que então foi promovida de a Reino Unido. Feita essa breve escala, avancemos até o final de agosto de 1822, semanas antes do célebre “Grito do Independência” — que Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, cuja reprodução ilustra esta postagem, e que Evaristo da Veiga poetizou, no Hino da Independência, aludindo à ruptura dos grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil.

Em agosto de 1822, o príncipe regente D. Pedro deslocou-se à província de São Paulo para acalmar a situação, depois de uma rebelião contra José Bonifácio. No dia 7 de setembro, voltando de Santos (SP), sua alteza recebeu três cartas. Uma, com ordens de seu pai para que retornasse a Portugal e se submetesse ao rei e às Cortes. Outra, do próprio Bonifácio, que o aconselhava a romper com Portugal, e a terceira, de sua esposa, Maria Leopoldina de Áustria, apoiando a decisão do ministro e advertindo: "O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece." 

Impelido pelas circunstâncias, D. Pedro teria desembainhado a espada e rompido os laços de união política com Portugal com a célebre frase "Independência ou Morte!" (menos de 1 mês depois ele foi aclamado imperador do Brasil, com o título de D. Pedro I, e coroado em 1 de dezembro na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, mas isso não vem ao caso para o escopo desta abordagem).

A representação dos intrépidos viajantes na obra do ilustre pintor — que poderia ser apreciada ao vivo e em cores se o Museu do Ipiranga não estivesse fechado ao público desde 2013 (para obras de restauro e modernização que certamente estarão datadas quando e se forem concluídas e o museu, reaberto um dia) —, trajando vistoso uniformes de gala e montados em garbosos puros-sangues, não condiz com a realidade. Talvez porque o quadro foi encomendado para retratar a independência do Brasil como um ato heroico, como se a iniciativa tivesse surgido da necessidade de se construir uma nação. Não foi bem isso, mas esses detalhes não vêm ao caso para os efeitos desta análise.

D. Pedro e distinta comitiva (não mais que uma dezena de pessoas) montavam mulas, e não os cavalos, já que a viagem era longa e boa parte dela era feita pela Serra do Mar, o que demandava montarias fortes e resistentes, e não simplesmente elegantes. Também por isso sua alteza e companhia estavam suados, sujos e amarfanhados. O rio Ipiranga não passava de um córrego, e “grito” não se deu exatamente às suas margens, mas numa colina que ficava nas imediações. E o local não foi escolhido por ser bucólico e servir de pano de fundo para a efeméride — o préstito imperial só parou ali para que D. Pedro, acometido de poderosa caganeira, pudesse aliviar os intestinos. E já que estava “soltando um barro”, sua alteza soltou também o histórico grito da independência.

A proclamação da República é outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar que pôs fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apeou do trono D. Pedro II e implementou o presidencialismo republicano como forma de governo. Vejamos isso em detalhes.

Meses após o Marechal Deodoro da Fonseca proclamar a República, o Brasil já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder: o livro Fastos da Ditadura Militar no Brasil, escrito em 1890 pelo advogado paulistano Eduardo Prado, que foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.

Na visão do empresário Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tataraneto de D. Pedro II e militante do movimento de direita Acorda Brasil "a proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo". Sua tese é esposada pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).

O jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do “golpe”, mas pondera que o debate sobre a legitimidade da República é sobre "quem legitima o quê", o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer regime político. Segundo ele, a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe". "O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.

Já o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade da USP, assevera que é possível, sim, falar em golpe na fundação da República, mas questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um revisionismo histórico incabível. "Se pensarmos que a monarquia era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.

Resumo da ópera:

Com o fim do governo provisório e a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o Congresso Nacional guindou o marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República Velha — ou República das Oligarquias. Ou seja: a primeira república tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar, foi eleito indiretamente e “convidado” a deixar o cargo pelas Forças Armadas cerca de 2 anos depois. 

Ao longo de 130 anos de história republicana, o Brasil teve até hoje 35 presidentes, que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro da Fonseca, foram de alguma maneira apeados do poder. E como o que começa mal tende a piorar, a possibilidade de o atual inquilino do Palácio do Planalto sofrer uma ação de despejo são reais. E, cá entre nós, já está mais que na hora.

Continua...

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

MORO LÁ — SERÁ? (PARTE 2)

 

Comemora-se hoje o 132º aniversário de outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar desfechado com o fito de pôr fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apear do trono D. Pedro II e implementar o presidencialismo republicano como forma de governo. 

Meses depois de o Marechal Deodoro da Fonseca proclamar a República, o Brasil já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder: o livro Fatos da Ditadura Militar no Brasil, escrito em 1890 pelo advogado paulistano Eduardo Prado, que foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.

Na visão do empresário Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tataraneto de D. Pedro II e militante do movimento de direita Acorda Brasil, "a proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo". Sua tese é esposada pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).

O jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do “golpe”, mas pondera que a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe". "O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.

Já o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade da USP, assevera que é possível, sim, falar em golpe na fundação da República, mas questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um revisionismo histórico incabível. "Se pensarmos que a monarquia era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.

Resumo da ópera: Com o fim do governo provisório e a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o Congresso Nacional guindou o Marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República Velha — ou República das Oligarquias. Dito de outra maneira, a primeira república tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar, foi eleito indiretamente e “convidado” a deixar o cargo pelas Forças Armadas. Ao longo de 132 anos de história republicana, o Brasil teve até hoje 35 presidentes, que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro, foram de alguma maneira apeados do poder. E como o que começa mal tende a piorar, o atual inquilino do Palácio do Planalto só continua no Palácio do Planalto (quando não está passeando ou promovendo motociatas, naturalmente), porque o povo brasileiro não tem vergonha na cara. Está na hora de mudar. E de aprender a votar.

 Dito isso, passemos à postagem do dia:

Ainda sobre Sérgio Moro, diz Dora Kramer que o discurso de candidato a Presidente na cerimônia de filiação ao Podemos não significa que será esse o destino do ex-juiz na vida política que agora inaugura; que todos os pretendentes ao Planalto nessa altura entram no jogo desse modo e que ele prometeu mundos e fundos — como erradicar a pobreza no Brasil. Diz ainda que sua fala, típica de um "cristão-novo", não contribuiu para reduzir desconfianças e desaprovações — dada a atitude de candidato a justiceiro dotado de capacidade de resolver todas as mazelas, muitas delas decorrentes “da degeneração da classe política”, e que Moro pareceu apostar excessivamente na credulidade das pessoas nesse tipo de pretendente a herói, mostrando-se verde na política e ainda completamente referido na figura do magistrado cujo único fator de direção é o próprio juízo a respeito do certo e do errado. Será?

Conforme eu ponderei no post anterior, Moro jamais foi o candidato dos meus sonhos. Por outro lado, em vista do que está colocado no tabuleiro, talvez ele seja a peça mais importante do jogo. Sua filiação ao Podemos, partido que se posicionou o tempo todo para recebê-lo como candidato a Presidente, mira o espectro eleitoral das forças de centro-direita do país, frustradas pelo mau desempenho administrativo de Bolsonaro e as alianças com os partidos do chamado Centrão, sobretudo o PP, o PL e o Republicanos. Seu discurso na cerimônia de filiação deixou isso muito claro e tende a galvanizar apoios dos eleitores decepcionados com o capitão-negação e certos setores da sociedade que apoiavam incondicionalmente a Lava-Jato, como os militares. 

A pré-candidatura de Moro cria mais problemas para Bolsonaro do que para os partidos de oposição, no primeiro turno — caso chegue ao segundo, aí a história será outra. O ex-juiz não esconde as mágoas com Bolsonaro. Desde sua saída do governo, ele vem tendo a sua imagem de juiz competente e íntegro desconstruída — a primeira por sucessivas decisões do STF, e a segunda pelos adversários políticos da operação anticorrupção da qual foi artífice e é o principal símbolo, que o acusam de parcialidade.

A entrada de Moro no Podemos, partido que tem 10 deputados federais e nove senadores, mexe com a tabuleiro eleitoral de 2022 porque ocupa um quadrante à direita que seria fundamental para a reeleição de Bolsonaro. Trata-se de uma legenda independente em relação ao governo no Senado, mas nem tanto na Câmara — Moro é ligado ao senador Álvaro Dias (PR), ex-candidato à Presidência pela legenda, que articulou sua filiação. Sua candidatura é contingenciada por Bolsonaro, que supostamente conta com o apoio de 25% do eleitorado, e também pelos pré-candidatos da chamada "terceira via", Henrique Mandetta (DEM), Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Simone Tebet (MDB-MS) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), além dos tucanos João Doria (SP) e Eduardo leite (RS), todos mirando o chamado centro democrático, e do pedetista Ciro Gomes, mais à esquerda.

A filiação de Moro encerra um ciclo político antissistema, que surgiu nas manifestações contra o funesto governo de Dilma, prosperou com a campanha por seu impeachment, mandou recados para todos os partidos nas eleições municipais de 2016 e culminou com a não menos funesta eleição de Bolsonaro, em 2018. A anunciada filiação do capetão ao partido de Valdemar Costa Neto e a articulação de sua federação governista com o PP e o Republicanos consolidam um bloco político de direita no poder, no âmbito do sistema partidário existente, que ganha até mais nitidez programática.

Moro seria o herdeiro natural desse sentimento antissistema, que procurou capitalizar com seu discurso, mas o Podemos, o Novo e o MBL já estão no leito natural da política eleitoral: o Congresso e o seu sistema partidário. A consolidação de sua candidatura vai depender muito mais do poder de alavancagem do apoio popular à Lava-Jato do que de alianças, que serão restritas devido aos ressentimentos dos políticos tradicionais com sua atuação naquela operação.

A conferir.

Com Ricardo Rangel Luiz Carlos Azedo

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A SUPREMA UNIÃO


O país do futuro que nunca chega e tem um imenso passado pela frente nunca passou de uma republiqueta de bananas. Sua independência — proclamada quando o então príncipe regente esvaziava os intestinos — foi comprada, a Proclamação da República foi um golpe militar (o primeiro de muitos) e a redemocratização deu no que deu. Nossa corte suprema, que era para ser um tribunal constitucional, tornou-se a 4ª instância da justiça criminal, e seus membros, "onze ilhas incomunicáveis" (noves fora quando se trata de aumentar os próprios salários e se autoconceder toda sorte de mordomias).
 
Esse arquipélago de monocracias — que ficou evidente durante o apogeu da Lava-Jato — deixou clara a necessidade de modificar o modo como os semideuses togados são indicados. Os candidatos a ocupar assentos no Olimpo do Judiciário são indicados presidente da República e referendados pelo Senado. O art. 101 da Constituição determina que os candidatos sejam brasileiros natos, tenham entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e "notável saber jurídico", mas não exige formação jurídica nem registro na OAB. Em outras palavras, mesmo quem não pode exercer atividades típicas dos advogados está apto a ocupar uma cadeira no STF caso seja amigo do presidente da República e consiga o aval de pelo menos 41 dos 81 senadores numa sabatina meramente formal. Desde a Proclamação da República, apenas cinco indicados foram vetados — todos durante a gestão de Floriano Peixoto.
 
Numa guinada impressionante de comportamento — e determinante para os destinos do país nos últimos anos —, nossa corte suprema, que havia virado vidraça quando as togas derrubaram a prisão em segunda instância e libertando da cadeia o hoje presidente eleito, assumiu de forma corajosa a defesa da ciência (e das vidas) e funcionou como anteparo aos constantes arroubos antidemocráticos de Bolsonaro. Por conta disso, o "mito" dos apatetados elegeu o Judiciário como seu principal inimigo político e atiçou seus seguidores mais radicais contra o STF e o TSE. 
 
Para fazer frente a esses ataques, as togas utilizaram sabiamente o princípio de que a união faz a força, atuando de forma sincronizada pela preservação da instituição em meio a críticas ferozes e com inimigos que continuam à espreita, em vigília permanente. O movimento pela suprema união teve uma espécie de marco zero com a abertura do inquérito das fake news em 2019 — medida controversa tomada de ofício (sem provocação de outro órgão) por Dias Toffoli, então presidente do STF, que àquela altura só tinha o apoio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes — ao segundo foi entregue, sem sorteio, a relatoria do inquérito, num procedimento incomum que gerou reação dos demais ministros, do Ministério Público e do mundo jurídico. Com o passar do tempo e o avanço das apurações, contudo, as resistências internas foram sendo superadas e o plenário legitimou a investigação em andamento.
 
O processo de união se solidificou ao longo das eleições, diante dos frequentes ataques infundados dos bolsonaristas contra as urnas eletrônicas e o resultado do pleito. Um exemplo recente foi a decisão dos ministros, tomada em plenário virtual, ratificando a decisão de Moraes que determinou à PRF o desbloqueio de centenas de trechos de rodovias obstruídos por bolsonaristas radicais. Vale destacar que os dois ministros indicados pelo chefe do Executivo não se somaram aos esforços da maioria, mas a discordância da dupla não chegou a prejudicar o espírito de corpo que tomou conta do Supremo.
 
Depois da derrota de Bolsonaro, emissários palacianos convidaram Gilmar Mendes, Luiz Fux e Nunes Marques para conversas com o presidente no Alvorada. Mendes, atual decano da corte, convocou uma reunião com seus pares, para que a decisão sobre o encontro fosse coletiva. Moraes ponderou que, antes de o tribunal conversar com o mandatário, era oportuno que ele reconhecesse o resultado das urnas. Ele ainda não o fez, mas, em seu primeiro pronunciamento público, autorizou seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, a anunciar o início da transição. Foi a senha para que os magistrados decidissem, coletivamente, divulgar uma nota enfatizando esse aspecto. Diante disso, Bolsonaro foi recebido no Supremo, e a reunião aconteceu em clima amistoso. 
 
A corte está tão coesa que mesmo ministros que tinham desavenças públicas fizeram as pazes no último mês. A partir da definição sobre o futuro de Ricardo Lewandowski, que terá de se aposentar por idade em maio próximo, mas pode antecipar sua saída para assumir o Ministério da Defesa no próximo governo, Lula deve dar início ao processo de escolha de seu sucessor no STF. Há consenso de que a segunda cadeira a ficar vaga em 2023, com a aposentadoria da ministra Rosa, deverá ser ocupada por uma mulher. Isso tem feito com que os candidatos homens já estejam em plena campanha para a primeira vaga. 
 
Lula tem dado sinais de que quer pacificação e diálogo institucional, mas os atos golpistas na porta dos quartéis e a escalada recente da violência fizeram a corte se manter mobilizada. A princípio, nada muda, pois os ministros enxergam riscos no horizonte e entendem que só a suprema união pode seguir garantindo a normalidade institucional no país.

Com Veja 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

A CONFEITARIA DA REPÚBLICA


 

Em uma passagem de “Esaú e Jacó”, Machado de Assis anota que o fato mais relevante da transição do Império para a República foi a faixa da confeitaria do centro da cidade do Rio de Janeiro, que passou a exibir os dizeres “Confeitaria da República” onde antes se lia “Confeitaria do Império”.

 

O Brasil é realmente um país sui generis. Sua independência não foi conquistada, mas comprada a peso de ouro (literalmente). Mais adiante, o país foi tomado das elites do Império e entregue às elites da República. Com a Proclamação da República, vieram a eleições democráticas, e com elas o direito ao voto, que os brasileiros devem exercer compulsoriamente. Para piorar, a plebe ignara cultiva uma curiosa predileção por eleger quem lhe diga o que fazer e se habituou a manter no poder quem sempre lá esteve — e os poderosos, a manter na sarjeta quem com ela já se acostumou. 

 

Falar em democracia num país em que o voto é obrigatório para quem tem entre 18 e 70 anos de idade é uma piada. A eleição de nossos “representantes” deveria ser vista como uma ação de eleitores racionais e interessados, mas tudo se faz para conquistar o voto de indivíduos politicamente despreparados e desqualificados. Inclusive levar as urnas até tribos indígenas perdidas nos confins da floresta amazônica, onde silvícolas que sequer falam português e conhecem apenas o cacique da tribo exercem seu “sagrado direito de votar para Presidente”.

 

No período eleitoral, essa postura se traduz num mantra destinado sobretudo aos jovens. Jovens que não sabem escolher as próprias cuecas, mas são bombardeados com “vote, vote, vote, tire o título de eleitor e vote”, como se a democracia realmente dependesse deles. Às vésperas de completar 18 anos, minha prioridade era tirar a carteira de habilitação. Alistamento militar e título eleitoral eram meras consequências (e não necessariamente bem-vistas) da maioridade. Votei pela primeira em 1978, durante a “abertura lenta, gradual e segura” do governo Geisel — não havia então eleições para Presidente da República, e os governadores dos Estados eram indicados, e não eleitos pelo povo.

 

Há ainda os que pregam que não se deve votar nem branco nem nulo, pois o povo precisa ser responsável pela escolha dos eleitos. Ora, votar branco ou nulo não é também uma escolha? Não figuram essas opções entre as oferecidas pelas urnas eleitorais? Se a escolha do eleitor for por nenhum dos candidatos disponíveis, por que ser obrigado a optar por um candidato “menos pior”, que a cada eleição cava ainda mais fundo o buraco daquilo que entendemos por pior?

 

O mantra para que os jovens votem e os demais não anulem o voto ou votem em branco nada tem a ver com o “aperfeiçoamento” do processo democrático. Forçar alguém a participar da democracia é tudo, menos uma atitude democrática. O que há é o de sempre: uma ânsia por  nos conduzir a manter no poder quem nele sempre esteve. Ao final, trocarão a plaquinha de uma confeitaria qualquer do centro de qualquer cidade e nos manterão na sarjeta, aguardando por mais quatro anos o momento de lembrar como nosso voto é relevante para a democracia.

 

Com André Marsiglia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

... SEMPRE TEM ESPAÇO PARA PIORAR!


Assim como o “Descobrimento”, a “Inconfidência Mineira”, o “Grito do Independência” e um sem-número de episódios que os compêndios didáticos romancearam, glamourizaram e ornamentaram com requififes chauvinistas, a “Proclamação da República” entrou para a História como um “bravo ato patriótico”, mas na verdade foi um golpe de Estado político-militar (o primeiro de muitos, diga-se) que tinha tudo para dar errado, inclusive falta de apoio do povo, que assistiu bestializado aos acontecimentos, sem entender o que se passava.

A ideia de transformar o Brasil numa República já era manifesta em muitas revoltas. Os militares, vitoriosos da Guerra do Paraguai, aproximaram-se dos republicanos, a exemplo da Igreja Católica, depois que D. Pedro II anulou suas medidas contra a maçonaria, e os fazendeiros, descontentes com a abolição da escravatura, que os privou da mão de obra gratuita do negros. 

O marechal Deodoro da Fonseca — idoso, enfermo e monarquista — relutava em protagonizar a troca do regime demandada por lideranças civis e fardados liderados por Benjamin Constant, mas a falsa notícia de que sua prisão havia sido decretada acabou por convencê-lo a insurgir-se contra o Império.

Substituída a monarquia constitucional parlamentarista pelo presidencialismo republicano, D. Pedro II e família foram exilados. Deodoro, que não só era amigo pessoal do Imperador, mas também lhe devia favores, ofereceu 5 mil contos de réis para ajudar na mudança. D. Pedro recusou, mas disse que levaria de bom grado um travesseiro com terra do Brasil (para repousar sua cabeça quando fosse sepultado). 

Observação: A quem interessar possa, sugiro a leitura de A História das Constituições Brasileiras, do historiador e professor Marco Antonio Villa.

Deodoro comandou o Governo Republicano Provisório (1889 a 1891) e foi escolhido presidente pelo colégio eleitoral formado por senadores e deputados da Assembleia Constituinte. Mas sua relação tensa com as oligarquias e os muitos desafetos que colecionou durante a gestão renderam-lhe um vice da oposição (o também marechal Floriano Peixoto).

Deodoro substituiu todos os governadores por políticos de sua confiança, mas nem assim conseguiu evitar que as bancadas estaduais do Congresso articulassem um projeto de lei que lhe reduziria os poderes. Em represália, dissolveu o Congresso e decretou estado de sítio. O vice-presidente recorreu ao comandante do Encouraçado Riachuelo, que ameaçou bombardear a capital federal se o presidente não capitulasse. Sua excelência não pensou duas vezes.  

Com a renuncia de Deodoro (em 23 de novembro de 1891), Floriano Peixoto assumiu a presidência e a exerceu até 15 de novembro de 1894, quando, meio que a contragosto, deu posse a Prudente de Moraes, que entrou para a História como primeiro presidente civil e eleito pelo voto direto. Sua gestão foi marcada turbulências e dificuldades, mas isso é conversa para outra hora.

Esse breve relato resume o primeiro e o segundo dos muitos golpes de Estado ocorridos desde a proclamação da República. Oficialmente, Bolsonaro é o 38º presidente desta banânia, e, também oficialmente (segundo dados da plataforma de monitoramento do ministério da Saúde) o Brasil ultrapassou a marca de 190 mil mortes pela Covid. Mas um levantamento realizado pela organização Vital Strategies, formada por pesquisadores e especialistas independentes, dá conta de que esse número pode ser superior a 220 mil. Mas isso também é outra conversa.

Observação: De 1549 a 1763, a capital do Brasil foi Salvador (BA). No Rio, o Palácio do Itamaraty sediou o Executivo até 1897, quando Prudente de Moraes e seu staff passaram a ocupar o Palácio do Catete. A ideia de transferir a capital para o interior era antiga; em 1761, o Marques de Pombal fez essa sugestão, que José Bonifácio ressuscitou em 1823, mas foi no final dos anos 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que Brasília foi construída do nada — e no meio do nada — para ser o novo DF, e o Palácio do Planalto, inaugurado em 21 de abril de 1960 para ser a nova sede do Executivo Federal. O que pouca gente sabe é que Curitiba foi capital federal por três dias, de 24 e 27 de março de 1969.   

Desde 1945, o Brasil teve nove presidentes eleitos de forma direta. Desses, apenas quatro completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, vencedor daquela que é considerada a primeira eleição verdadeiramente democrática do Brasil, em 1945; Juscelino Kubitschek, eleito em 1955; Fernando Henrique Cardoso, vencedor do segundo pleito pós-ditadura militar, em 1994; e Lula, eleito em 2002 e reeleito em 2006. Integrante dos cinco restantes, Getúlio Vargas “foi suicidado” com um tiro no peito, digo, foi encontrado morto com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, após ter sido acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e de 27 generais exigirem publicamente sua renúncia. O político gaúcho deixou uma "carta-testamento" que se notabilizou pelas palavras finais (“saio da vida para entrar na História”).

Em outubro de 1955, quando Juscelino Kubitschek se elegeu presidente, a ala conservadora e os militares, com o apoio de Café Filho  que passou de vice a titular com o “suicídio” de Vargas  e do presidente da Câmara, Carlos Luz — que assumiu interinamente a presidência da República quando do afastamento de Café  urdiram um golpe de Estado para impedir a posse de JKAssim que subiu de posto, Luz substituiu o general Henrique Lott pelo também general Álvaro Fiúza de Castro no comando do Ministério da Guerra. Sentindo o cheiro do golpe, Lott depôs Luz (que ficou apenas 4 dias no cargo e foi impichado em 11 de novembro) e empossou Nereu Ramos, então presidente do Senado. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes numa única semana.

O resto fica para o próximo capítulo.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — QUARTA PARTE



Como vimos no capítulo anterior, o Brasil viveu um regime monárquico — entre a proclamação da independência, em 1822, e a da república, em 1889. O processo histórico em que se desenvolveu o fim da monarquia e a ascensão da república perpassa por uma série de transformações que levou à tomada do poder pelos militares. Em outras palavras, o país iniciou sua fase republicana a partir de um golpe militar — com a devida venia de quem possa pensar diferente, eu entendo que não há que falar em “revolução” quando não existe participação popular.

A assim chamada Velha República teve início com a proclamação, em 1889, e terminou com a chamada “Revolução de 1930”. Entre o fim do Império e a posse de Prudente de Morais, em 1894, apenas militares ocuparam a presidência, donde esse período ficou conhecido como República da Espada.

Morais foi o primeiro presidente civil do Brasil, e sua posse deu início a alternância entre representantes das oligarquias rurais do sudeste brasileiro (conhecida como política do café com leite em da aliança nas indicações para presidentes entre São Paulo e Minas Gerais), que durou até 1930, mas já vinha dando sinais de enfraquecimento desde 1914. As revoltas tenentistas no RS, em 1923, e em SP, em 1924, somadas à insatisfação das oligarquias com a eleição de Júlio Prestes, em 1930, resultaram no impedimento do presidente eleito. Assim, outro golpe militar empurrou a Velha República para a cova.

Uma “junta governista” assumiu o poder em 24 de outubro de 1930 e passou o bastão a Getúlio Vargas em 03 de novembro daquele ano, dando início ao “governo provisório” que durou até julho de 1934, quando o mesmo Vargas foi eleito indiretamente (conforme os ditames da Constituição de 1934). Iniciava-se então o assim chamado “governo constitucional”. 

No dia 10 de novembro de 1937, mediante mais um golpe de estado, Vargas instituiu o Estado Novo e assim manteve-se no poder até outubro de 1945, quando outro golpe o apeou da presidência.

Observação: Os primeiros anos da Era Vargas foram marcados pelo clima de tensão entre as oligarquias e os militares — principalmente no estado de São Paulo —, o que levou à Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1935, a Aliança Nacional Libertadora promoveu a Intentona Comunistamais uma tentativa de golpe. Vargas aproveitou o episódio para declarar estado de sítio e ampliar seus poderes políticos.

Com a queda de Vargas, o general Eurico Gaspar Dutra assumiu a presidência, e uma Assembleia Constituinte criou nossa quinta Constituição, que estabeleceu os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

 Em 1950, Vargas voltou ao cenário político e, graças a sua “postura nacionalista” venceu as eleições presidenciais com o apoio de empresários, das Forças Armadas, de grupos políticos do Congresso e da União Nacional dos Estudantes, entre outros. Mas a oposição a seu governo cresceu, e em 23 de agosto de 1954, após ser acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda — e de 27 generais exigirem publicamente a renúncia — Vargas foi suicidado, digo, encontrado morto, com um tiro no peito, na manhã do dia 24. deixando uma "carta de despedida" que será reproduzida em outra postagem, ao final desta sequência.

Após o breve governo de Café Filho (de 24.08.1954 a 11.11.1955), de Carlos Luz (que durou apenas 3 dias) e de Nereu Ramos (de 11.11.1955 a 31.01.1956), Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a presidência em janeiro de 1955, prometendo realizar “cinquenta anos de progresso em cinco de governo”. E, mui mineiramente, mudou a capital federal do Rio de Janeiro para o meio do nada, digo, para o centro do país. E assim, em 21 de abril 1960 “nascia” nossa querida Brasília.

Observação: A transferência da capital federal para o interior do país era defendida desde o período colonial e passou por vontades políticas distintas e muitas mudanças de governo até se transformar em realidade. Não obstante, como em tudo mais neste país, havia objetivos escusos na mudança da sede do governo federal, mas uma análise mais detalhada terá de ficar para uma próxima oportunidade.

Mais detalhes sobre esses governos virão nas próximas postagens. No final desta novela, relembraremos as gestões abortadas, ou seja, os governos em que, por alguma razão, os mandatários deixaram o campo antes que o apito do árbitro marcasse o final da partida.

OBSERVAÇÃO: Hoje, 9 de julho, comemora-se no estado de São Paulo a Revolução Constitucionalista de 1932, que será comentada, em algum momento, ao longo das próximas postagens. Dada a situação atípica que atravessamos neste ano de 2020, o governo paulista antecipou o feriado, visando reforçar o isolamento social e conter o avanço do coronavírus. Como eu postei sobre informática no "feriado" antecipado, não o farei hoje. Amanhã tudo volta a ser como antes no Quartel de Abrantes. Pelo menos no que concerne à minha pauta de postagens.

Continua no próximo capítulo...

segunda-feira, 28 de julho de 2025

SOBRE LUIZ FUX, O NÚCLEO GOLPISTA E "OTRAS COSITAS MÁS"

DEBATES ENTRE PESSOAS RAZOÁVEIS NÃO GERAM CONFLITOS, GERAM NOVAS IDEIAS. 

Depois que um golpe de Estado (o primeiro de muitos) substituiu a monarquia parlamentarista do Império pelo presidencialismo republicano, em 1889, mais de três dúzias de brasileiros ocuparam a Presidência. Fernando Henrique foi o mais próximo de um estadista que tivemos desde a "redemocratização" — lembrando que a renúncia de Jânio, em 1961, pavimentou o caminho para o golpe de 1964 e os subsequentes 21 anos de ditadura. Mas Lord Acton ensinou que o poder corrompe, e FHC, que ninguém resiste à picadura da mosca azul. 

 

Em 1997, o tucano de plumas vistosas comprou a PEC da reeleição e, rezando pelo catecismo de Geraldo Vandré — segundo o qual "quem sabe faz a hora, não espera acontecer" —, derrotou Lula já no primeiro turno do pleito de 1998. Mas faltaram-lhe novos coelhos para tirar da velha cartola e, quatro anos depois, o petista venceu José Serra, levando o PT ao poder. A partir de então, o Brasil passou a ser governado como uma usina de processamento de esgoto: a merda entra pela porta das urnas e muda de aparência, mas o que sai na posse do novo governante continua sendo merda — reciclada, mas ainda merda. 

 

Não que a coisa fosse melhor em outro momento da nossa história. A sementinha da corrupção foi plantada em Pindorama nos idos 1500, quando, em sua famosa carta, Pero Vaz de Caminha pediu ao rei D. Manuel que intercedesse por seu genro. Trezentos anos depois, o país passou de colônia a reino-unido, mas somente porque a família real portuguesa se desabalou para o Rio de Janeiro para fugir de Napoleão Bonaparte. Nossa independência — paga a peso de ouro — foi proclamada por D. Pedro I enquanto esvaziava os intestinos, e a Proclamação da República, despida do glamour que lhe atribuem os livros de História, não passou de um golpe de Estado político-militar (o primeiro de muitos, como dito anteriormente). 

 

Até o início do século XIX, nosso país não tinha uma corte constitucional. A "Casa da Suplicação do Brasil" foi criada em 1808, mas a função de corte suprema só se solidificaria 1829, com a criação do "Supremo Tribunal de Justiça" — que passou a se chamar "Supremo Tribunal Federal" com a proclamação da República. Hoje, além do papel de corte composicional, cabe ao Supremo processar agentes públicos com foro especial por prerrogativa de função e julgar recursos extraordinários contra decisões de outros tribunais. Mas aquela conversa de que juízes são isentos, apolíticos e apartidários não passa de cantilena para dormitar bovinos. Os magistrados não só tomaram gosto pela política — e quem conquista poder político não abre mão dele facilmente — como também sucumbiram à nefasta polarização, que dividiu o país em duas abjetas facções.

 

Mesmo estando inelegível e contando os dias que faltam para sua mais que provável condenação, Bolsonaro continua fazendo pose de candidato. Ao pressionar a banda podre da Câmara a aprovar uma insana proposta de anistia, o golpista confessa por vias tortas os crimes que jura não ter cometido. Como se não bastasse, seu filho Eduardo atua como articulador das sanções impostas pela Casa Branca ao país que, como deputado por São Paulo (que também elegeu Tiririca para quatro mandatos consecutivos), é pago para defender. 

 

Dias atrás, o filho do pai estendeu sua abjeta chantagem aos presidentes da Câmara e do Senado: se Motta não levar à pauta de votações da Câmara o projeto que anistia aos golpistas e Alcolumbre engavetar o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes — renovado dias atrás pelo senador das rachadinhas, panetones e mansões milionárias Eduardo Bolsonaro —, poderão ter seus vistos de entrada nos EUA cassados, a exemplo do que aconteceu com oito dos onze ministros do STF.

 

O ex-ministro Sepúlveda Pertence definiu o Supremo como "um arquipélago de 11 ilhas", mas a politização ficou mais evidente em 2019, quando seis dos onze membros da Corte mudaram a jurisprudência sobre a prisão em segunda instancia, ensejando a "volta do criminoso à cena do crime” — como bem observou o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin quando ainda era tucano. 

 

Gilmar Mendes — a verdadeira "herança maldita" de FHC — defendia a Lava-Jato com unhas e dentes, mas virou a casaca depois que a Vaza-Jato denegriu a imagem do ex-juiz Sergio Moro, do ex-procurador Deltan Dallagnol e de outros integrantes do braço paranaense da força-tarefa, embora seu "crime hediondo" tenha sido combater corrupção sistêmica e pôr na cadeia bandidos travestidos de executivos das maiores empreiteiras do país e políticos ímprobos de altíssimo coturno. 

 

Dias Toffoli — que ganhou a suprema toga graças aos "bons serviços prestados" como advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), assessor jurídico do PT e do ex-ministro José Dirceu e subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil sob Lula, a despeito de ter sido reprovado em dois concursos para juiz de primeira instância em São Paulo —, vem fazendo das tripas coração para reconquistar as boas graças de Lula com decisões teratológicas que visam claramente favorecer os "amigos do rei". 

 

Indicado por Lula para o Supremo a pedido da então primeira-dama, Ricardo Lewandowski retribuiu a gentileza durante o julgamento do Mensalão, no qual atuou mais como defensor dos réus do que como julgador. No impeachment de Dilma, ele e o senador Renan Calheiros urdiram uma tramoia para evitar que a mulher sapiens tivesse seus direitos político suspensos.

 

E por aí segue a procissão.

 

Em seu artigo 1º, a Constituição Cidadã anota que "a República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito" e tem como primeiro fundamento "a soberania". O parágrafo único desse mesmo artigo estabelece que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Já no primeiro inciso do artigo 3º, o Regimento Interno da Câmara explicita que é dever do deputado federal "promover a defesa do interesse público e da soberania nacional". Na prática, porém, a teoria costuma ser outra.

 

Morando nos EUA e exercendo em tempo integral a atividade de traidor da pátria, Eduardo Bolsonaro rasga a Carta Magna, sapateia sobre o regimento da Câmara e desonra os 741 mil votos que obteve do eleitorado paulista em 2022. Mas não é só: a falta de posicionamento dos dirigentes do Congresso sobre o pedido de cassação do traíra injeta na conjuntura brasiliense uma vergonha convulsiva: quando alguém precisa tomar uma decisão e não toma, está decidindo não fazer nada, e nada, no caso do deputado, é uma palavra que já ultrapassa tudo. Ou Congresso expurga o personagem dos seus quadros, tornando-o inelegível, ou se desmoraliza junto com ele.

 

A coação exercida sobre o STF por Trump em parceria com a Famiglia Bolsonaro já justificaria a prisão preventiva do chefe do clã, mas Moraes "morde e assopra", evitando confundir o necessário com o excessivo, sobretudo depois que seu colega Luiz Fux votou contra as medidas cautelares impostas ao capetão (dizem que o fez para não ter seus visto de entrada nos EUA cassado, como já aconteceu com oito de seus pares). Vale destacar que não foi a primeira vez que ele divergiu do relator e de seus colegas da Primeira Turma. Durante a análise da denúncia da PGR, o ministro levantou dúvidas sobre a delação de Mauro Cid e a competência da Turma para julgar Bolsonaro e seus cúmplices (que, segundo ele, seria da primeira instancia do Judiciário ou, na pior das hipóteses, dos 11 ministros da Corte). 

 

Diz um ditado que "só não muda de opinião quem já morreu", mas causa espécie que o ministro "punitivista" que apoiou o relator (Joaquim Barbosa) na condenação da maioria dos réus da ação penal 470 (vulgo "Processo do Mensalão") e se tornou um dos principais defensores da Lava-Jato tenha dado um "cavalo de pau" digno dos melhores filmes de ação, aliando-se à corrente "garantista", que prioriza a proteção dos direitos fundamentais dos réus. 

 

Embora concorde com as condenações pela trama golpista, Fux tem acatado alguns argumentos dos acusados, e comenta-se à boca pequena que ele continuará nessa linha, como forma de "garantir a moderação no STF". No julgamento da cabeleireira Débora dos Santos, que ficou conhecida por pichar com batom a frase "Perdeu, mané" na estátua da Justiça, Moraes propôs 14 anos de prisão, mas Fux sugeriu um ano e seis meses, arrancando elogios de Michelle Bolsonaro.

 

No fim de março, durante o julgamento da denúncia da PGR contra o grupo principal da trama golpista — encabeçado por Bolsonaro —, Fux foi o único a abraçar o argumento da defesa no sentido de que o foro indicado para conduzir as investigações seria primeira instância do Judiciário, e não no STF. Derrotado por seus pares, ele acabou votando pelo recebimento da denúncia, que foi aceita por unanimidade. No mesmo julgamento, afirmou ser contrário à ideia de punir a tentativa de golpe como se fosse um crime consumado. Defendeu a necessidade de diferenciar os atos preparatórios da execução do crime e levantou dúvidas sobre a legalidade da delação de Mauro Cid. As observações renderam elogios da defesa de Bolsonaro.

 

No depoimento de Cid ao STF, Fux fez perguntas que foram elogiadas por Eduardo Bolsonaro — em suas redes sociais, o filho do pai escreveu: "Urgente! Fux desmontou o castelo de areia com duas perguntas." Nos depoimentos de testemunhas do chamado núcleo crucial, foi o único —além do relator — a comparecer às sessões e fazer questionamentos nas oitivas. E a expectativa é que ele continue apresentando contrapontos às discussões, assumindo de maneira informal o papel de "ministro revisor", personificado por Lewandowski no julgamento do Mensalão, mas extinto em 2023 por uma alteração no Regimento Interno da Corte. 

 

As ideias que Fux defende atualmente contrastam com julgamentos penais do passado. Após sua brilhante atuação no Mensalão, o ministro defendeu a Lava-Jato mesmo depois que a Vaza-Jato expôs uma "suposta relação espúria" de Sergio Moro com os procuradores de Curitiba. Em abril de 2021, Fux se posicionou contra a anulação das condenações impostas a Lula pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Em junho de 2022, quando presidia o STF, disse que a anulação foi resultado da análise de questões formais: "Ninguém pode esquecer que ocorreu no Brasil, no Mensalão, na Lava-Jato."

 

Fux intensificou sua relação com Bolsonaro a partir de setembro de 2020, quando assumiu a presidência do STF. No mês seguinte, recebeu o então mandatário para uma "visita de cortesia" que durou cerca de 45 minutos. Bolsonaro elogiou a decisão de Fux de manter preso um dos líderes do PCC, solto por determinação do (hoje aposentado) ministro Marco Aurélio. Sua atitude provocou irritação do colega — até porque não é praxe um ministro suspender a decisão de outro.

No dia seguinte ao encontro, Bolsonaro concedeu a Fux a Ordem de Rio Branco em seu mais alto nível, o grau de Grã-Cruz.

 

Coincidência ou não, os únicos ministros do STF que não tiveram seus vistos revogados pelo secretário de Estado dos EUA foram os bolsonaristas André Mendonça e Nunes Marques... e Luiz Fux — indicado para o tribunal por Dilma em 2011.

 

Aguardemos, pois, os próximos capítulos de mais esse emocionante folhetim tupiniquim.

domingo, 4 de junho de 2023

QUEM NÃO APRENDE COM OS ERROS DO PASSADO...

 

Acusado de protecionismo pelos anjos de oposição, Deus escalou uma gentalha medíocre para povoar o país abençoado por Ele e bonito por natureza — que viria a ser "descoberto" pelos portugueses, promovido a reino unido pelo príncipe que estava esvaziando os intestinos na hora do famoso grito e transformado em república pelo primeiro dos inúmeros golpes de estado que se sucederiam a partir de então.
 
renúncia de  Jânioaversão dos militares a Jango deram azo ao golpe de 1964, que ensejou os 21 anos de ditadura e pavimentou o caminho para o lulopetismo corrupto e o bolsonarismo boçal. (Mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). Acabou que o país do futuro que nunca chega e tem um imenso passado pela frente nunca passou de uma republica de bananas. 

Nossa corte suprema, que era para ser um tribunal constitucional, virou a 4ª instância da justiça criminal, e seus membros, "onze ilhas incomunicáveis" (menos quando se trata de seus vencimentos e das nababescas mordomias que eles concedem a si mesmos). O comportamento desse arquipélago de monocracias durante o apogeu da Lava-Jato deixou clara a necessidade de alterar a forma como os ministros são nomeados. 

Os ilustres candidatos a uma cadeira no Olimpo do Judiciário são indicados presidente da República da vez, e referendados pelo Senado. art. 101 da Constituição dispõe que os indicados devam ser brasileiros natos, ter entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e "notável saber jurídico", mas não exige formação jurídica nem registro na OAB. Destarte, mesmo sem estar habilitado a exercer atividades típicas dos advogados o felizardo pode ter os ombros cobertos com a suprema toga se for amigo do presidente da República e consegui o aval de pelo menos 41 dos 81 senadores numa sabatina meramente formal — desde a Proclamação da República, apenas cinco indicados foram vetados, todos durante a gestão de Floriano Peixoto.
 
Numa guinada impressionante — e determinante para os destinos do país —, o STF derrubou a prisão em segunda instância e tirou da cadeia um ex-presidente condenado por 10 magistrados de três instâncias do Judiciário. Como se não bastasse, sob o pretexto de incompetência territorial da 
13ª Vara Federal de Curitiba, anulou duas condenações (uma das quais havia transitado em julgado no STJ) e as demais ações que estavam em fase de instrução. E voilà!: "ói Lula aí traveiz".
 
O Lula de 20 anos atrás era um personagem a quem quase tudo era permitido. Hoje, não mais. Sinal de que o Lula eleito em 2022 estava com a cabeça em 2002 foi aquele voo em jatinho de empresário amigo para participar da COP27, no Egito, ainda durante a transição. Pertence à mesma série de descompassos entre o pretendido e o resultado obtido o lugar dado a João Pedro Stedile na comitiva da viagem à China, em abril, enquanto o convidado anunciava ofensiva de invasões de terra pelo MST. Ambos os casos provocaram críticas e desconcerto; em vários outros houve bem mais que isso. 
 
O Congresso reagiu na forma de derrotas impostas a uma agenda que não se adequa ao perfil do Parlamento, diverso daquele de 2003, em que o Senado era presidido por um  José Sarney aliado incondicional, e a Câmara, pelo petista João Paulo Cunha. Os repetidos reveses são atribuídos ao conservadorismo do Congresso — o que é verdade, mas não causa surpresa alguma.
 
Esse perfil emergiu das urnas em outubro passado, e o chefe do Executivo eleito no final daquele mês sabia que deveria compatibilizar sua pauta à da representação congressual escolhida pela maioria do eleitorado. Goste-se ou não, foi o pacto proposto e deveria ser observado.
 
De ilusionismos eleitorais também padecem as democracias. Sob o jugo do populismo definham de modo sutil e vagaroso, diferentemente do desmonte explícito provocado pelos arroubos de aspirantes a tiranos. A venda de utopias na corrida por conquista de votos faz parte do jogo, mas dentro de limites.
 
Quando se ultrapassam as fronteiras do razoável e as ilusões vendidas se desfazem por completo no confronto com a realidade, tem-se o chamado estelionato eleitoral sob a égide do qual se contrata o descrédito da política, mortal para a democracia.
 
Com Dora Kramer