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quarta-feira, 8 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — TERCEIRA PARTE



Peguemos nossa máquina do tempo e teletransportemo-nos do século XVI — quando os lusitanos botaram as patas na terra do pau-brasil, até o ano de 1808 — quando a Família Real Portuguesa, ameaçada pelo Tratado de Fontainebleau, mudou-se de mala e cuia para sua colônia, que então foi promovida de a Reino Unido. Feita essa breve escala, avancemos até o final de agosto de 1822, semanas antes do célebre “Grito do Independência” — que Pedro Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, cuja reprodução ilustra esta postagem, e que Evaristo da Veiga poetizou, no Hino da Independência, aludindo à ruptura dos grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil.

Em agosto de 1822, o príncipe regente D. Pedro deslocou-se à província de São Paulo para acalmar a situação, depois de uma rebelião contra José Bonifácio. No dia 7 de setembro, voltando de Santos (SP), sua alteza recebeu três cartas. Uma, com ordens de seu pai para que retornasse a Portugal e se submetesse ao rei e às Cortes. Outra, do próprio Bonifácio, que o aconselhava a romper com Portugal, e a terceira, de sua esposa, Maria Leopoldina de Áustria, apoiando a decisão do ministro e advertindo: "O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece." 

Impelido pelas circunstâncias, D. Pedro teria desembainhado a espada e rompido os laços de união política com Portugal com a célebre frase "Independência ou Morte!" (menos de 1 mês depois ele foi aclamado imperador do Brasil, com o título de D. Pedro I, e coroado em 1 de dezembro na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, no Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, mas isso não vem ao caso para o escopo desta abordagem).

A representação dos intrépidos viajantes na obra do ilustre pintor — que poderia ser apreciada ao vivo e em cores se o Museu do Ipiranga não estivesse fechado ao público desde 2013 (para obras de restauro e modernização que certamente estarão datadas quando e se forem concluídas e o museu, reaberto um dia) —, trajando vistoso uniformes de gala e montados em garbosos puros-sangues, não condiz com a realidade. Talvez porque o quadro foi encomendado para retratar a independência do Brasil como um ato heroico, como se a iniciativa tivesse surgido da necessidade de se construir uma nação. Não foi bem isso, mas esses detalhes não vêm ao caso para os efeitos desta análise.

D. Pedro e distinta comitiva (não mais que uma dezena de pessoas) montavam mulas, e não os cavalos, já que a viagem era longa e boa parte dela era feita pela Serra do Mar, o que demandava montarias fortes e resistentes, e não simplesmente elegantes. Também por isso sua alteza e companhia estavam suados, sujos e amarfanhados. O rio Ipiranga não passava de um córrego, e “grito” não se deu exatamente às suas margens, mas numa colina que ficava nas imediações. E o local não foi escolhido por ser bucólico e servir de pano de fundo para a efeméride — o préstito imperial só parou ali para que D. Pedro, acometido de poderosa caganeira, pudesse aliviar os intestinos. E já que estava “soltando um barro”, sua alteza soltou também o histórico grito da independência.

A proclamação da República é outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar que pôs fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apeou do trono D. Pedro II e implementou o presidencialismo republicano como forma de governo. Vejamos isso em detalhes.

Meses após o Marechal Deodoro da Fonseca proclamar a República, o Brasil já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder: o livro Fastos da Ditadura Militar no Brasil, escrito em 1890 pelo advogado paulistano Eduardo Prado, que foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.

Na visão do empresário Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tataraneto de D. Pedro II e militante do movimento de direita Acorda Brasil "a proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo". Sua tese é esposada pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).

O jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do “golpe”, mas pondera que o debate sobre a legitimidade da República é sobre "quem legitima o quê", o que está ligado ao processo de consolidação de qualquer regime político. Segundo ele, a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe". "O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.

Já o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade da USP, assevera que é possível, sim, falar em golpe na fundação da República, mas questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um revisionismo histórico incabível. "Se pensarmos que a monarquia era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.

Resumo da ópera:

Com o fim do governo provisório e a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o Congresso Nacional guindou o marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República Velha — ou República das Oligarquias. Ou seja: a primeira república tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar, foi eleito indiretamente e “convidado” a deixar o cargo pelas Forças Armadas cerca de 2 anos depois. 

Ao longo de 130 anos de história republicana, o Brasil teve até hoje 35 presidentes, que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro da Fonseca, foram de alguma maneira apeados do poder. E como o que começa mal tende a piorar, a possibilidade de o atual inquilino do Palácio do Planalto sofrer uma ação de despejo são reais. E, cá entre nós, já está mais que na hora.

Continua...

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

MORO LÁ — SERÁ? (PARTE 2)

 

Comemora-se hoje o 132º aniversário de outro episódio da nossa história que, devidamente despido do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, não passou de um golpe de Estado político-militar desfechado com o fito de pôr fim à monarquia constitucional parlamentarista do Império, apear do trono D. Pedro II e implementar o presidencialismo republicano como forma de governo. 

Meses depois de o Marechal Deodoro da Fonseca proclamar a República, o Brasil já conhecia a primeira crítica articulada sobre o processo que havia removido a monarquia do poder: o livro Fatos da Ditadura Militar no Brasil, escrito em 1890 pelo advogado paulistano Eduardo Prado, que foi o primeiro autor a considerar a Proclamação da República um "golpe de Estado ilegítimo" aplicado pelos militares.

Na visão do empresário Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tataraneto de D. Pedro II e militante do movimento de direita Acorda Brasil, "a proclamação foi um golpe de uma minoria escravocrata aliada aos grandes latifundiários, aos militares, a segmentos da Igreja e da maçonaria. O que é fato notório é que foi um golpe ilegítimo". Sua tese é esposada pelo historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro O Pecado Original da República (editora Bazar do Tempo).

O jornalista e historiador José Laurentino Gomes, autor da trilogia 1808, 1822 e 1889, concorda com a leitura do “golpe”, mas pondera que a questão envolve a luta pelo direito de nomear os acontecimentos históricos que, no caso dos republicanos, conseguiram emplacar a ideia de "proclamação" e não de "golpe". "O que aconteceu em 1889, em 1930 e em 1964 é a mesma coisa: exército na rua fazendo política. Depende de quem legitima o quê. O movimento de 1964 não foi legitimado pela sociedade, mas a revolução de 1930 o foi tanto pelos sindicatos quanto pelas mudanças promovidas por Getúlio Vargas. A proclamação é contada hoje por quem venceu", argumenta.

Já o historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade da USP, assevera que é possível, sim, falar em golpe na fundação da República, mas questionar sua legitimidade, como faz Orleans e Bragança, seria um revisionismo histórico incabível. "Se pensarmos que a monarquia era um regime historicamente vinculado à escravidão (esta sim, uma instituição ilegítima, sob quaisquer aspectos), acho pessoalmente que a fundação da República foi um processo político legítimo que, infelizmente, não veio acompanhado de reformas democratizantes e inclusivas", explica.

Resumo da ópera: Com o fim do governo provisório e a promulgação da Constituição Republicana de 1891, o Congresso Nacional guindou o Marechal Deodoro da Fonseca à presidência da República Velha — ou República das Oligarquias. Dito de outra maneira, a primeira república tupiniquim começou com um golpe militar, e o primeiro presidente, também militar, foi eleito indiretamente e “convidado” a deixar o cargo pelas Forças Armadas. Ao longo de 132 anos de história republicana, o Brasil teve até hoje 35 presidentes, que chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro, foram de alguma maneira apeados do poder. E como o que começa mal tende a piorar, o atual inquilino do Palácio do Planalto só continua no Palácio do Planalto (quando não está passeando ou promovendo motociatas, naturalmente), porque o povo brasileiro não tem vergonha na cara. Está na hora de mudar. E de aprender a votar.

 Dito isso, passemos à postagem do dia:

Ainda sobre Sérgio Moro, diz Dora Kramer que o discurso de candidato a Presidente na cerimônia de filiação ao Podemos não significa que será esse o destino do ex-juiz na vida política que agora inaugura; que todos os pretendentes ao Planalto nessa altura entram no jogo desse modo e que ele prometeu mundos e fundos — como erradicar a pobreza no Brasil. Diz ainda que sua fala, típica de um "cristão-novo", não contribuiu para reduzir desconfianças e desaprovações — dada a atitude de candidato a justiceiro dotado de capacidade de resolver todas as mazelas, muitas delas decorrentes “da degeneração da classe política”, e que Moro pareceu apostar excessivamente na credulidade das pessoas nesse tipo de pretendente a herói, mostrando-se verde na política e ainda completamente referido na figura do magistrado cujo único fator de direção é o próprio juízo a respeito do certo e do errado. Será?

Conforme eu ponderei no post anterior, Moro jamais foi o candidato dos meus sonhos. Por outro lado, em vista do que está colocado no tabuleiro, talvez ele seja a peça mais importante do jogo. Sua filiação ao Podemos, partido que se posicionou o tempo todo para recebê-lo como candidato a Presidente, mira o espectro eleitoral das forças de centro-direita do país, frustradas pelo mau desempenho administrativo de Bolsonaro e as alianças com os partidos do chamado Centrão, sobretudo o PP, o PL e o Republicanos. Seu discurso na cerimônia de filiação deixou isso muito claro e tende a galvanizar apoios dos eleitores decepcionados com o capitão-negação e certos setores da sociedade que apoiavam incondicionalmente a Lava-Jato, como os militares. 

A pré-candidatura de Moro cria mais problemas para Bolsonaro do que para os partidos de oposição, no primeiro turno — caso chegue ao segundo, aí a história será outra. O ex-juiz não esconde as mágoas com Bolsonaro. Desde sua saída do governo, ele vem tendo a sua imagem de juiz competente e íntegro desconstruída — a primeira por sucessivas decisões do STF, e a segunda pelos adversários políticos da operação anticorrupção da qual foi artífice e é o principal símbolo, que o acusam de parcialidade.

A entrada de Moro no Podemos, partido que tem 10 deputados federais e nove senadores, mexe com a tabuleiro eleitoral de 2022 porque ocupa um quadrante à direita que seria fundamental para a reeleição de Bolsonaro. Trata-se de uma legenda independente em relação ao governo no Senado, mas nem tanto na Câmara — Moro é ligado ao senador Álvaro Dias (PR), ex-candidato à Presidência pela legenda, que articulou sua filiação. Sua candidatura é contingenciada por Bolsonaro, que supostamente conta com o apoio de 25% do eleitorado, e também pelos pré-candidatos da chamada "terceira via", Henrique Mandetta (DEM), Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Simone Tebet (MDB-MS) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE), além dos tucanos João Doria (SP) e Eduardo leite (RS), todos mirando o chamado centro democrático, e do pedetista Ciro Gomes, mais à esquerda.

A filiação de Moro encerra um ciclo político antissistema, que surgiu nas manifestações contra o funesto governo de Dilma, prosperou com a campanha por seu impeachment, mandou recados para todos os partidos nas eleições municipais de 2016 e culminou com a não menos funesta eleição de Bolsonaro, em 2018. A anunciada filiação do capetão ao partido de Valdemar Costa Neto e a articulação de sua federação governista com o PP e o Republicanos consolidam um bloco político de direita no poder, no âmbito do sistema partidário existente, que ganha até mais nitidez programática.

Moro seria o herdeiro natural desse sentimento antissistema, que procurou capitalizar com seu discurso, mas o Podemos, o Novo e o MBL já estão no leito natural da política eleitoral: o Congresso e o seu sistema partidário. A consolidação de sua candidatura vai depender muito mais do poder de alavancagem do apoio popular à Lava-Jato do que de alianças, que serão restritas devido aos ressentimentos dos políticos tradicionais com sua atuação naquela operação.

A conferir.

Com Ricardo Rangel Luiz Carlos Azedo

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A SUPREMA UNIÃO


O país do futuro que nunca chega e tem um imenso passado pela frente nunca passou de uma republiqueta de bananas. Sua independência — proclamada quando o então príncipe regente esvaziava os intestinos — foi comprada, a Proclamação da República foi um golpe militar (o primeiro de muitos) e a redemocratização deu no que deu. Nossa corte suprema, que era para ser um tribunal constitucional, tornou-se a 4ª instância da justiça criminal, e seus membros, "onze ilhas incomunicáveis" (noves fora quando se trata de aumentar os próprios salários e se autoconceder toda sorte de mordomias).
 
Esse arquipélago de monocracias — que ficou evidente durante o apogeu da Lava-Jato — deixou clara a necessidade de modificar o modo como os semideuses togados são indicados. Os candidatos a ocupar assentos no Olimpo do Judiciário são indicados presidente da República e referendados pelo Senado. O art. 101 da Constituição determina que os candidatos sejam brasileiros natos, tenham entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e "notável saber jurídico", mas não exige formação jurídica nem registro na OAB. Em outras palavras, mesmo quem não pode exercer atividades típicas dos advogados está apto a ocupar uma cadeira no STF caso seja amigo do presidente da República e consiga o aval de pelo menos 41 dos 81 senadores numa sabatina meramente formal. Desde a Proclamação da República, apenas cinco indicados foram vetados — todos durante a gestão de Floriano Peixoto.
 
Numa guinada impressionante de comportamento — e determinante para os destinos do país nos últimos anos —, nossa corte suprema, que havia virado vidraça quando as togas derrubaram a prisão em segunda instância e libertando da cadeia o hoje presidente eleito, assumiu de forma corajosa a defesa da ciência (e das vidas) e funcionou como anteparo aos constantes arroubos antidemocráticos de Bolsonaro. Por conta disso, o "mito" dos apatetados elegeu o Judiciário como seu principal inimigo político e atiçou seus seguidores mais radicais contra o STF e o TSE. 
 
Para fazer frente a esses ataques, as togas utilizaram sabiamente o princípio de que a união faz a força, atuando de forma sincronizada pela preservação da instituição em meio a críticas ferozes e com inimigos que continuam à espreita, em vigília permanente. O movimento pela suprema união teve uma espécie de marco zero com a abertura do inquérito das fake news em 2019 — medida controversa tomada de ofício (sem provocação de outro órgão) por Dias Toffoli, então presidente do STF, que àquela altura só tinha o apoio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes — ao segundo foi entregue, sem sorteio, a relatoria do inquérito, num procedimento incomum que gerou reação dos demais ministros, do Ministério Público e do mundo jurídico. Com o passar do tempo e o avanço das apurações, contudo, as resistências internas foram sendo superadas e o plenário legitimou a investigação em andamento.
 
O processo de união se solidificou ao longo das eleições, diante dos frequentes ataques infundados dos bolsonaristas contra as urnas eletrônicas e o resultado do pleito. Um exemplo recente foi a decisão dos ministros, tomada em plenário virtual, ratificando a decisão de Moraes que determinou à PRF o desbloqueio de centenas de trechos de rodovias obstruídos por bolsonaristas radicais. Vale destacar que os dois ministros indicados pelo chefe do Executivo não se somaram aos esforços da maioria, mas a discordância da dupla não chegou a prejudicar o espírito de corpo que tomou conta do Supremo.
 
Depois da derrota de Bolsonaro, emissários palacianos convidaram Gilmar Mendes, Luiz Fux e Nunes Marques para conversas com o presidente no Alvorada. Mendes, atual decano da corte, convocou uma reunião com seus pares, para que a decisão sobre o encontro fosse coletiva. Moraes ponderou que, antes de o tribunal conversar com o mandatário, era oportuno que ele reconhecesse o resultado das urnas. Ele ainda não o fez, mas, em seu primeiro pronunciamento público, autorizou seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, a anunciar o início da transição. Foi a senha para que os magistrados decidissem, coletivamente, divulgar uma nota enfatizando esse aspecto. Diante disso, Bolsonaro foi recebido no Supremo, e a reunião aconteceu em clima amistoso. 
 
A corte está tão coesa que mesmo ministros que tinham desavenças públicas fizeram as pazes no último mês. A partir da definição sobre o futuro de Ricardo Lewandowski, que terá de se aposentar por idade em maio próximo, mas pode antecipar sua saída para assumir o Ministério da Defesa no próximo governo, Lula deve dar início ao processo de escolha de seu sucessor no STF. Há consenso de que a segunda cadeira a ficar vaga em 2023, com a aposentadoria da ministra Rosa, deverá ser ocupada por uma mulher. Isso tem feito com que os candidatos homens já estejam em plena campanha para a primeira vaga. 
 
Lula tem dado sinais de que quer pacificação e diálogo institucional, mas os atos golpistas na porta dos quartéis e a escalada recente da violência fizeram a corte se manter mobilizada. A princípio, nada muda, pois os ministros enxergam riscos no horizonte e entendem que só a suprema união pode seguir garantindo a normalidade institucional no país.

Com Veja 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

A CONFEITARIA DA REPÚBLICA


 

Em uma passagem de “Esaú e Jacó”, Machado de Assis anota que o fato mais relevante da transição do Império para a República foi a faixa da confeitaria do centro da cidade do Rio de Janeiro, que passou a exibir os dizeres “Confeitaria da República” onde antes se lia “Confeitaria do Império”.

 

O Brasil é realmente um país sui generis. Sua independência não foi conquistada, mas comprada a peso de ouro (literalmente). Mais adiante, o país foi tomado das elites do Império e entregue às elites da República. Com a Proclamação da República, vieram a eleições democráticas, e com elas o direito ao voto, que os brasileiros devem exercer compulsoriamente. Para piorar, a plebe ignara cultiva uma curiosa predileção por eleger quem lhe diga o que fazer e se habituou a manter no poder quem sempre lá esteve — e os poderosos, a manter na sarjeta quem com ela já se acostumou. 

 

Falar em democracia num país em que o voto é obrigatório para quem tem entre 18 e 70 anos de idade é uma piada. A eleição de nossos “representantes” deveria ser vista como uma ação de eleitores racionais e interessados, mas tudo se faz para conquistar o voto de indivíduos politicamente despreparados e desqualificados. Inclusive levar as urnas até tribos indígenas perdidas nos confins da floresta amazônica, onde silvícolas que sequer falam português e conhecem apenas o cacique da tribo exercem seu “sagrado direito de votar para Presidente”.

 

No período eleitoral, essa postura se traduz num mantra destinado sobretudo aos jovens. Jovens que não sabem escolher as próprias cuecas, mas são bombardeados com “vote, vote, vote, tire o título de eleitor e vote”, como se a democracia realmente dependesse deles. Às vésperas de completar 18 anos, minha prioridade era tirar a carteira de habilitação. Alistamento militar e título eleitoral eram meras consequências (e não necessariamente bem-vistas) da maioridade. Votei pela primeira em 1978, durante a “abertura lenta, gradual e segura” do governo Geisel — não havia então eleições para Presidente da República, e os governadores dos Estados eram indicados, e não eleitos pelo povo.

 

Há ainda os que pregam que não se deve votar nem branco nem nulo, pois o povo precisa ser responsável pela escolha dos eleitos. Ora, votar branco ou nulo não é também uma escolha? Não figuram essas opções entre as oferecidas pelas urnas eleitorais? Se a escolha do eleitor for por nenhum dos candidatos disponíveis, por que ser obrigado a optar por um candidato “menos pior”, que a cada eleição cava ainda mais fundo o buraco daquilo que entendemos por pior?

 

O mantra para que os jovens votem e os demais não anulem o voto ou votem em branco nada tem a ver com o “aperfeiçoamento” do processo democrático. Forçar alguém a participar da democracia é tudo, menos uma atitude democrática. O que há é o de sempre: uma ânsia por  nos conduzir a manter no poder quem nele sempre esteve. Ao final, trocarão a plaquinha de uma confeitaria qualquer do centro de qualquer cidade e nos manterão na sarjeta, aguardando por mais quatro anos o momento de lembrar como nosso voto é relevante para a democracia.

 

Com André Marsiglia.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

... SEMPRE TEM ESPAÇO PARA PIORAR!


Assim como o “Descobrimento”, a “Inconfidência Mineira”, o “Grito do Independência” e um sem-número de episódios que os compêndios didáticos romancearam, glamourizaram e ornamentaram com requififes chauvinistas, a “Proclamação da República” entrou para a História como um “bravo ato patriótico”, mas na verdade foi um golpe de Estado político-militar (o primeiro de muitos, diga-se) que tinha tudo para dar errado, inclusive falta de apoio do povo, que assistiu bestializado aos acontecimentos, sem entender o que se passava.

A ideia de transformar o Brasil numa República já era manifesta em muitas revoltas. Os militares, vitoriosos da Guerra do Paraguai, aproximaram-se dos republicanos, a exemplo da Igreja Católica, depois que D. Pedro II anulou suas medidas contra a maçonaria, e os fazendeiros, descontentes com a abolição da escravatura, que os privou da mão de obra gratuita do negros. 

O marechal Deodoro da Fonseca — idoso, enfermo e monarquista — relutava em protagonizar a troca do regime demandada por lideranças civis e fardados liderados por Benjamin Constant, mas a falsa notícia de que sua prisão havia sido decretada acabou por convencê-lo a insurgir-se contra o Império.

Substituída a monarquia constitucional parlamentarista pelo presidencialismo republicano, D. Pedro II e família foram exilados. Deodoro, que não só era amigo pessoal do Imperador, mas também lhe devia favores, ofereceu 5 mil contos de réis para ajudar na mudança. D. Pedro recusou, mas disse que levaria de bom grado um travesseiro com terra do Brasil (para repousar sua cabeça quando fosse sepultado). 

Observação: A quem interessar possa, sugiro a leitura de A História das Constituições Brasileiras, do historiador e professor Marco Antonio Villa.

Deodoro comandou o Governo Republicano Provisório (1889 a 1891) e foi escolhido presidente pelo colégio eleitoral formado por senadores e deputados da Assembleia Constituinte. Mas sua relação tensa com as oligarquias e os muitos desafetos que colecionou durante a gestão renderam-lhe um vice da oposição (o também marechal Floriano Peixoto).

Deodoro substituiu todos os governadores por políticos de sua confiança, mas nem assim conseguiu evitar que as bancadas estaduais do Congresso articulassem um projeto de lei que lhe reduziria os poderes. Em represália, dissolveu o Congresso e decretou estado de sítio. O vice-presidente recorreu ao comandante do Encouraçado Riachuelo, que ameaçou bombardear a capital federal se o presidente não capitulasse. Sua excelência não pensou duas vezes.  

Com a renuncia de Deodoro (em 23 de novembro de 1891), Floriano Peixoto assumiu a presidência e a exerceu até 15 de novembro de 1894, quando, meio que a contragosto, deu posse a Prudente de Moraes, que entrou para a História como primeiro presidente civil e eleito pelo voto direto. Sua gestão foi marcada turbulências e dificuldades, mas isso é conversa para outra hora.

Esse breve relato resume o primeiro e o segundo dos muitos golpes de Estado ocorridos desde a proclamação da República. Oficialmente, Bolsonaro é o 38º presidente desta banânia, e, também oficialmente (segundo dados da plataforma de monitoramento do ministério da Saúde) o Brasil ultrapassou a marca de 190 mil mortes pela Covid. Mas um levantamento realizado pela organização Vital Strategies, formada por pesquisadores e especialistas independentes, dá conta de que esse número pode ser superior a 220 mil. Mas isso também é outra conversa.

Observação: De 1549 a 1763, a capital do Brasil foi Salvador (BA). No Rio, o Palácio do Itamaraty sediou o Executivo até 1897, quando Prudente de Moraes e seu staff passaram a ocupar o Palácio do Catete. A ideia de transferir a capital para o interior era antiga; em 1761, o Marques de Pombal fez essa sugestão, que José Bonifácio ressuscitou em 1823, mas foi no final dos anos 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que Brasília foi construída do nada — e no meio do nada — para ser o novo DF, e o Palácio do Planalto, inaugurado em 21 de abril de 1960 para ser a nova sede do Executivo Federal. O que pouca gente sabe é que Curitiba foi capital federal por três dias, de 24 e 27 de março de 1969.   

Desde 1945, o Brasil teve nove presidentes eleitos de forma direta. Desses, apenas quatro completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, vencedor daquela que é considerada a primeira eleição verdadeiramente democrática do Brasil, em 1945; Juscelino Kubitschek, eleito em 1955; Fernando Henrique Cardoso, vencedor do segundo pleito pós-ditadura militar, em 1994; e Lula, eleito em 2002 e reeleito em 2006. Integrante dos cinco restantes, Getúlio Vargas “foi suicidado” com um tiro no peito, digo, foi encontrado morto com um tiro no peito em 24 de agosto de 1954, após ter sido acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda e de 27 generais exigirem publicamente sua renúncia. O político gaúcho deixou uma "carta-testamento" que se notabilizou pelas palavras finais (“saio da vida para entrar na História”).

Em outubro de 1955, quando Juscelino Kubitschek se elegeu presidente, a ala conservadora e os militares, com o apoio de Café Filho  que passou de vice a titular com o “suicídio” de Vargas  e do presidente da Câmara, Carlos Luz — que assumiu interinamente a presidência da República quando do afastamento de Café  urdiram um golpe de Estado para impedir a posse de JKAssim que subiu de posto, Luz substituiu o general Henrique Lott pelo também general Álvaro Fiúza de Castro no comando do Ministério da Guerra. Sentindo o cheiro do golpe, Lott depôs Luz (que ficou apenas 4 dias no cargo e foi impichado em 11 de novembro) e empossou Nereu Ramos, então presidente do Senado. Assim, pela primeira vez na história, o Brasil teve três presidentes numa única semana.

O resto fica para o próximo capítulo.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — QUARTA PARTE



Como vimos no capítulo anterior, o Brasil viveu um regime monárquico — entre a proclamação da independência, em 1822, e a da república, em 1889. O processo histórico em que se desenvolveu o fim da monarquia e a ascensão da república perpassa por uma série de transformações que levou à tomada do poder pelos militares. Em outras palavras, o país iniciou sua fase republicana a partir de um golpe militar — com a devida venia de quem possa pensar diferente, eu entendo que não há que falar em “revolução” quando não existe participação popular.

A assim chamada Velha República teve início com a proclamação, em 1889, e terminou com a chamada “Revolução de 1930”. Entre o fim do Império e a posse de Prudente de Morais, em 1894, apenas militares ocuparam a presidência, donde esse período ficou conhecido como República da Espada.

Morais foi o primeiro presidente civil do Brasil, e sua posse deu início a alternância entre representantes das oligarquias rurais do sudeste brasileiro (conhecida como política do café com leite em da aliança nas indicações para presidentes entre São Paulo e Minas Gerais), que durou até 1930, mas já vinha dando sinais de enfraquecimento desde 1914. As revoltas tenentistas no RS, em 1923, e em SP, em 1924, somadas à insatisfação das oligarquias com a eleição de Júlio Prestes, em 1930, resultaram no impedimento do presidente eleito. Assim, outro golpe militar empurrou a Velha República para a cova.

Uma “junta governista” assumiu o poder em 24 de outubro de 1930 e passou o bastão a Getúlio Vargas em 03 de novembro daquele ano, dando início ao “governo provisório” que durou até julho de 1934, quando o mesmo Vargas foi eleito indiretamente (conforme os ditames da Constituição de 1934). Iniciava-se então o assim chamado “governo constitucional”. 

No dia 10 de novembro de 1937, mediante mais um golpe de estado, Vargas instituiu o Estado Novo e assim manteve-se no poder até outubro de 1945, quando outro golpe o apeou da presidência.

Observação: Os primeiros anos da Era Vargas foram marcados pelo clima de tensão entre as oligarquias e os militares — principalmente no estado de São Paulo —, o que levou à Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1935, a Aliança Nacional Libertadora promoveu a Intentona Comunistamais uma tentativa de golpe. Vargas aproveitou o episódio para declarar estado de sítio e ampliar seus poderes políticos.

Com a queda de Vargas, o general Eurico Gaspar Dutra assumiu a presidência, e uma Assembleia Constituinte criou nossa quinta Constituição, que estabeleceu os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

 Em 1950, Vargas voltou ao cenário político e, graças a sua “postura nacionalista” venceu as eleições presidenciais com o apoio de empresários, das Forças Armadas, de grupos políticos do Congresso e da União Nacional dos Estudantes, entre outros. Mas a oposição a seu governo cresceu, e em 23 de agosto de 1954, após ser acusado de tramar um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda — e de 27 generais exigirem publicamente a renúncia — Vargas foi suicidado, digo, encontrado morto, com um tiro no peito, na manhã do dia 24. deixando uma "carta de despedida" que será reproduzida em outra postagem, ao final desta sequência.

Após o breve governo de Café Filho (de 24.08.1954 a 11.11.1955), de Carlos Luz (que durou apenas 3 dias) e de Nereu Ramos (de 11.11.1955 a 31.01.1956), Juscelino Kubitschek de Oliveira assumiu a presidência em janeiro de 1955, prometendo realizar “cinquenta anos de progresso em cinco de governo”. E, mui mineiramente, mudou a capital federal do Rio de Janeiro para o meio do nada, digo, para o centro do país. E assim, em 21 de abril 1960 “nascia” nossa querida Brasília.

Observação: A transferência da capital federal para o interior do país era defendida desde o período colonial e passou por vontades políticas distintas e muitas mudanças de governo até se transformar em realidade. Não obstante, como em tudo mais neste país, havia objetivos escusos na mudança da sede do governo federal, mas uma análise mais detalhada terá de ficar para uma próxima oportunidade.

Mais detalhes sobre esses governos virão nas próximas postagens. No final desta novela, relembraremos as gestões abortadas, ou seja, os governos em que, por alguma razão, os mandatários deixaram o campo antes que o apito do árbitro marcasse o final da partida.

OBSERVAÇÃO: Hoje, 9 de julho, comemora-se no estado de São Paulo a Revolução Constitucionalista de 1932, que será comentada, em algum momento, ao longo das próximas postagens. Dada a situação atípica que atravessamos neste ano de 2020, o governo paulista antecipou o feriado, visando reforçar o isolamento social e conter o avanço do coronavírus. Como eu postei sobre informática no "feriado" antecipado, não o farei hoje. Amanhã tudo volta a ser como antes no Quartel de Abrantes. Pelo menos no que concerne à minha pauta de postagens.

Continua no próximo capítulo...

domingo, 4 de junho de 2023

QUEM NÃO APRENDE COM OS ERROS DO PASSADO...

 

Acusado de protecionismo pelos anjos de oposição, Deus escalou uma gentalha medíocre para povoar o país abençoado por Ele e bonito por natureza — que viria a ser "descoberto" pelos portugueses, promovido a reino unido pelo príncipe que estava esvaziando os intestinos na hora do famoso grito e transformado em república pelo primeiro dos inúmeros golpes de estado que se sucederiam a partir de então.
 
renúncia de  Jânioaversão dos militares a Jango deram azo ao golpe de 1964, que ensejou os 21 anos de ditadura e pavimentou o caminho para o lulopetismo corrupto e o bolsonarismo boçal. (Mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). Acabou que o país do futuro que nunca chega e tem um imenso passado pela frente nunca passou de uma republica de bananas. 

Nossa corte suprema, que era para ser um tribunal constitucional, virou a 4ª instância da justiça criminal, e seus membros, "onze ilhas incomunicáveis" (menos quando se trata de seus vencimentos e das nababescas mordomias que eles concedem a si mesmos). O comportamento desse arquipélago de monocracias durante o apogeu da Lava-Jato deixou clara a necessidade de alterar a forma como os ministros são nomeados. 

Os ilustres candidatos a uma cadeira no Olimpo do Judiciário são indicados presidente da República da vez, e referendados pelo Senado. art. 101 da Constituição dispõe que os indicados devam ser brasileiros natos, ter entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e "notável saber jurídico", mas não exige formação jurídica nem registro na OAB. Destarte, mesmo sem estar habilitado a exercer atividades típicas dos advogados o felizardo pode ter os ombros cobertos com a suprema toga se for amigo do presidente da República e consegui o aval de pelo menos 41 dos 81 senadores numa sabatina meramente formal — desde a Proclamação da República, apenas cinco indicados foram vetados, todos durante a gestão de Floriano Peixoto.
 
Numa guinada impressionante — e determinante para os destinos do país —, o STF derrubou a prisão em segunda instância e tirou da cadeia um ex-presidente condenado por 10 magistrados de três instâncias do Judiciário. Como se não bastasse, sob o pretexto de incompetência territorial da 
13ª Vara Federal de Curitiba, anulou duas condenações (uma das quais havia transitado em julgado no STJ) e as demais ações que estavam em fase de instrução. E voilà!: "ói Lula aí traveiz".
 
O Lula de 20 anos atrás era um personagem a quem quase tudo era permitido. Hoje, não mais. Sinal de que o Lula eleito em 2022 estava com a cabeça em 2002 foi aquele voo em jatinho de empresário amigo para participar da COP27, no Egito, ainda durante a transição. Pertence à mesma série de descompassos entre o pretendido e o resultado obtido o lugar dado a João Pedro Stedile na comitiva da viagem à China, em abril, enquanto o convidado anunciava ofensiva de invasões de terra pelo MST. Ambos os casos provocaram críticas e desconcerto; em vários outros houve bem mais que isso. 
 
O Congresso reagiu na forma de derrotas impostas a uma agenda que não se adequa ao perfil do Parlamento, diverso daquele de 2003, em que o Senado era presidido por um  José Sarney aliado incondicional, e a Câmara, pelo petista João Paulo Cunha. Os repetidos reveses são atribuídos ao conservadorismo do Congresso — o que é verdade, mas não causa surpresa alguma.
 
Esse perfil emergiu das urnas em outubro passado, e o chefe do Executivo eleito no final daquele mês sabia que deveria compatibilizar sua pauta à da representação congressual escolhida pela maioria do eleitorado. Goste-se ou não, foi o pacto proposto e deveria ser observado.
 
De ilusionismos eleitorais também padecem as democracias. Sob o jugo do populismo definham de modo sutil e vagaroso, diferentemente do desmonte explícito provocado pelos arroubos de aspirantes a tiranos. A venda de utopias na corrida por conquista de votos faz parte do jogo, mas dentro de limites.
 
Quando se ultrapassam as fronteiras do razoável e as ilusões vendidas se desfazem por completo no confronto com a realidade, tem-se o chamado estelionato eleitoral sob a égide do qual se contrata o descrédito da política, mortal para a democracia.
 
Com Dora Kramer

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O PAÍS DO GOLPE


Despida do glamour fantasioso atribuído pelos livros didáticos, a Proclamação da República foi apenas o primeiro dos muitos golpe de Estado político-militar que aconteceram nos últimos 132 anos (entre os quais vale citar a revolução de 1930, a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1937, a deposição de Getúlio em 1945, o golpe de 1964, e assim por diante). 


Ao longo da nossa história republicana, 35 presidentes chegaram ao poder pelo voto popular, por eleição indireta, via linha sucessória ou por golpe de Estado. Oito deles, a começar por Deodoro da Fonseca — o tal que "proclamou" a república — foram de alguma maneira apeados do poder. 

 

Da redemocratização até os dias atuais, amargamos um presidente eleito indiretamente, um literato meia-boca, um caçador de marajás de mentirinha, um baianeiro namorador, um tucano de plumagem vistosa, um retirante pobre e semianalfabeto, uma aberração travestida de "gerentona", um vampiro escalafobético e um dublê de mau militar e parlamentar medíocre


Da feita que quem não aprende com os erros passados está fadado a repeti-los indefinidamente, duas dessas tragédias são os franco-favoritos para disputar o Planalto agora em outubro. E ainda tem gente que diz que Deus é brasileiro!

 

A política tupiniquim sempre foi um esgoto a céu aberto. Os candidatos se elegem para roubar e roubam para se reeleger. No Executivo, a fé se perdeu (se é que ainda restava alguma) antes mesmo da renúncia de Jânio, que pavimentou o caminho para o golpe de 1964 e os subsequentes 21 anos de ditadura militar. 


A morte do primeiro presidente civil do período "pós-redemocratização" — que foi eleito indiretamente, mas representava a esperança dos brasileiros num futuro melhor — resultou no governo do eterno donatário da capitania do Maranhão — um dos mais notórios ícones da abominável política coronelista nordestina. Ao final do mandato-tampão, a impopularidade do dito-cujo era tamanha que ele se viu obrigado disputar uma cadeira no Senado pelo recém-criado estado do Amapá. 

 

As esperanças se renovaram quando o pseudo caçador de marajás derrotou o desempregado que deu certo (ou que daria certo em 2002, quando seria eleito presidente pela primeira vez). Mas logo se percebeu que o santarrão de pau oco tinha pés de barro e não passava de um populista tão descarado quanto o adversário derrotado. 


Do impeachment dessa figura desprezível — o primeiro da Nova República — resultou a gestão do tal baianeiro, que se notabilizou por posar para fotos ao lado da modelo sem calcinha Lilian Ramos e ressuscitar o Fusca, mas que também promulgou o Plano Real, cujo sucesso levou ao Planalto, por duas vezes consecutiva, ambas no primeiro turno, seu ministro da Fazenda. 


Observação: Lamentavelmente, o grão-duque tucano resolveu comprar a PEC da reeleição, mas aí já não lhe restavam coelhos para tirar da cartola.

 

A reboque da vitória de Lula vieram o Mensalão, o Petrolão e a indicação de oito ministros do STF, cujas decisões teratológicas (não só deles nem de todos eles, vale ressaltar) fulminaram a esperança que os brasileiros depositavam no Judiciário quando nada que prestasse se podia se esperar do Executivo e do Legislativo. 


Em 2012, assistimos estarrecidos — mas esperançosos — a condenação da alta cúpula do Mensalão. Em 2016, comemoramos impeachment da "gerentona de festim" e os avanços da Lava-Jato — que refrearam em alguma medida e por algum tempo o apetite pantagruélico da seleta confraria de políticos corruptos pelo dinheiro dos contribuintes. 

 

A morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes da abertura da cova. Percorre um lento processo. No caso da Lava-Jato, a operação morreu sem colher os devidos louros. Foi graças a ela que, pela primeira vez desde a chegada das caravelas, o braço do Estado investigou, enjaulou e puniu poderosos da oligarquia política e econômica do Brasil. 


O velório reuniu gente importante: seguravam a alça do caixão Jair Bolsonaro, o Centrão e o PT. O STF enviou uma sequência de coroas de flores enquanto preparava a última pá de cal. E ela não demorou a chegar. Ironicamente, o sepultamento da força tarefa se deu sob a batuta do mandatário que, quando candidato, prometeu combater implacavelmente a corrupção e os corruptos. 

 

A morte às vezes funciona como um grande despertar. Mas a sociedade brasileira emite sinais de cansaço. Um cansaço que se parece com saudade de quem não teve a oportunidade de dizer adeus.

domingo, 9 de dezembro de 2018

O BRASIL E A SUPREMA ESCULHAMBAÇÃO


Às vésperas do primeiro turno das eleições, o ministro-cumpanhêro Ricardo Lewandowski — que dias atrás mandou a PF deter um passageiro que o afrontou durante um voo para Brasília — autorizou a colunista mais petista da Folha a entrevistar o presidiário Lula em sua cela na Superintendência da Polícia Federal. O ministro Luiz Fux suspendeu a autorização, mas Lewandowski a reiterou e, de quebra, criticou o vice-presidente do Supremo: "A decisão proferida pelo ministro Luiz Fux [...] não possui forma ou figura jurídica admissível no Direito vigente, cumprindo-se salientar que o seu conteúdo é absolutamente inapto a produzir qualquer efeito no ordenamento legal”. O imbróglio foi parar na presidência da Corte, que manteve a suspensão da entrevista até posterior deliberação. Na semana passada, Lewandowski voltou à carga, e Fux, de novo, bateu o pé, sustentando que a competência de autorizar ou não a entrevista é da juíza Carolina Moura Lebbos, da 12ª Vara Federal do Paraná. Pelo visto, a colunista vermelha terá de conter seu furor uterino por mais algum tempo.

Voltando ao incidente ocorrido no último dia 4, a vestal ofendida, em entrevista à mesmíssima colunista vermelha que quer entrevistar o criminoso de Garanhuns, afirmou ter reagido à crítica porque era uma afronta à Corte, e que se sentiu na obrigação de defender seus pares, pois “a ofensa às instituições é um perigo para o Estado Democrático de Direito”. 

Fato é que o Supremo vem dando motivos para críticas desde que os brasileiros passaram a conhecer seus membros “mais de perto”, durante o impeachment da anta vermelha (embora eu não descarte a possibilidade de o tribunal envergonhar a nação desde sua criação, 470 dias depois da proclamação da República). O Movimento Brasil Livre (MBL), que no último dia 6 projetou mensagem "O STF é uma vergonha" na fachada do prédio, elenca uma dezena de motivos que levariam os brasileiros de bem a concordar com o passageiro insurgente — que, “by the way”, é filho da subprocuradora-geral da República aposentada Helenita Amélia Gonçalves Caiado de Acioli. Até porque a nossa mais alta corte é a “guardiã da Constituição”, conforme dispõe o artigo 102 da própria Carta Magna, só que...

Lewandowski rasgou a Constituição, durante o julgamento do impeachment de Dilma, ao se mancomunar com Renan Calheiros para fatiar a votação. Segundo nossa Lei Maior, o presidente da República deposto por impeachment não só perde o cargo como também tem seus direitos políticos suspensos por 8 anos. Realizar a votação em duas etapas, como se deposição e inabilitação política fossem duas penas separadas, foi mais uma “jabuticaba jurídica” da lavra de nossa mais alta corte (detalhes na minha postagem de 31/08/2016). Aliás, 4 meses depois o STF pariu outra “pérola” ao apear o senador Renan Calheiros da presidência do Congresso sem cassar seu mandato parlamentar — uma decisão meia-boca que serviu para remover o cangaceiro das Alagoas da linha sucessória presidencial depois que ele se tornou réu por peculato.  

STF derrubou voto impresso, que havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, a quem legislar sobre o tema. O ministro Luiz Fux garantiu o auxílio-moradia para os juízes federais, independentemente de eles residirem em imóvel próprio, causando um rombo anual bilionário a ser coberto pelos contribuintes — o benefício compensaria a falta de reajuste salarial dos magistrados, cujo teto era de R$ 33 mil e, com o auxílio, chegava de R$ 37 mil. No mês passado, os ministros supremos se autoconcederam um reajuste de 16%, que foi aprovado a toque de caixa pelo Senado e sancionado pelo pato-manco em fim de mandato. A título de “compensação”, Fux cortou o auxílio-moradia, que custava cerca de R$ 2 bi por ano, mas os efeitos-cascata do reajuste podem aumentar em até R$ 6 bi o rombo nas contas públicas.

A pretexto da plausibilidade dos recursos contra a condenação de José Dirceu a mais de 30 anos de reclusão, o STF decidiu permitir que o mensaleiro-petroleiro aguarde em liberdade a decisão das instâncias superiores. E fez o mesmo com o ex-deputado ladrão Paulo Maluf, condenado a 7 anos, 9 meses e 10 dias de prisão por desvio e ocultação de dinheiro num processo que se arrastou por décadas. Embora a decisão tenha transitado em julgado — ou seja, não existe mais possibilidade de recurso —, o turco lalau foi agraciado com um habeas corpus de ofício, supostamente por “motivos humanitários”. Na visão do ministro Dias Toffoli, o criminoso estaria à beira do desencarne, mas ainda não morreu — Maluf passa muito bem, obrigado, em sua luxuosa mansão nos Jardins (bairro nobre da capital paulista).

Devido à malemolência dos ministros supremos, um terço das ações contra políticos com prerrogativa de foro prescreve antes da decisão final. Para quem não está familiarizado com o jargão jurídico, o termo prescrição designa a perda de uma pretensão pelo decurso do tempo, como é o caso da perda da pretensão punitiva estatal em razão do decurso do lapso temporal previsto em lei. Criminalistas chicaneiros são useiros e vezeiros em retardar o andamento processual mediante a interposição de recursos e embargos meramente protelatórios, já que, uma vez operada a prescrição, seus clientes, ainda que reconhecidamente culpados, escaparão da punição. E como se não bastasse, apenas 1% dos réus com foro privilegiado são condenados no Supremo (volto a esse assunto numa próxima postagem).

Com ou sem motivos para termos vergonha do STF, assiste-nos o direito à liberdade de expressão. Mandar prender e investigar cidadãos que expressão sua opinião é uma forma de censura e, portanto, mais um motivo para termos vergonha do Supremo.



quarta-feira, 12 de agosto de 2020

DA PRAGA DA CASERNA AO CAPITÃO CAVERNA — DÉCIMA PARTE



Dos 38 presidentes que governaram o Brasil nos últimos 130 anos, alguns chegaram ao poder pelo voto popular, outros por eleição indireta e outros, ainda, por golpe de Estado ou linha sucessória. Entre todos eles, ao menos 9 deixaram o campo antes que o apito do árbitro sinalizasse o término da partida. E Bolsonaro pode ser o décimo.

A título de contextualização (a audiência do Blog é rotativa), relembro que a proclamação da República não foi propriamente um ato patriótico, mas sim um golpe militar que expeliu D. Pedro II do trono e pôs termo a quase 70 anos de monarquia — contados a partir o famoso “Grito da Independência” (falo, por óbvio, do tal brado heroico retumbante ouvido pelas margens plácidas da Ipiranga, como Osório Duque Estrada poetizou na letra do Hino Nacional Brasileiro). E também carregou nas tintas romanescas o pintor Pedro Américo, no célebre “Independência ou Morte”, que retrata D. Pedro no dorso de venusta montaria, com a espada em riste, no famoso “momento do grito”. 

Como se sabe (ou dever-se-ia saber), a História costuma ser menos poética à luz detergente dos fatos, que expõe quão romanceadas são as versões criadas a partir deles. No que concerne ao "grito do Ipiranga", retornavam da cidade de Santos, no litoral paulista, naquele fatídico 7 de setembro, o então príncipe regente e sua distintíssima comitiva. Para vencer a Serra do Mar, os viajantes não cavalgavam garbosos corcéis, mas montavam prosaicas mulas — animais mais fortes e resistentes que seus primos mais nobres. E tampouco trajavam as vistosas roupas de gala com que foram retratados: sob o forte calor, vinham eles suados, fedidos e com as vestes sujas e amarfanhadas.

Se as margens do córrego do Ipiranga serviram de pano de fundo para o "heróico brado", isso deveu-se a mero acaso: passava por lá a comitiva quando D. Pedro, acometido de poderosa caganeira, apeou e saiu em busca de uma moita que lhe permitisse esvaziar os intestinos com alguma privacidade. Foi então que se juntou ao grupo um mensageiro vindo de São Paulo, com três missivas endereçadas a sua alteza. 

A primeira epístola, assinada por D. João VI, ordenava ao nobre rebento que regressasse imediatamente a Portugal e se submetesse ao Rei e às Cortes. A segunda, de José Bonifácio, aconselhava-o a romper com Portugal. A terceira, da Imperatriz Leopoldina, dileta esposa do príncipe-regente (noves fora Domitila de Castro Canto e Mello, mais conhecida como Marquesa de Santos), transmitia ao marido o seguinte recado: “O pomo está maduro; colhe-o já, antes que apodreça”. 

Impelido pelas circunstâncias, o príncipe, que já estava mesmo fazendo merda, aproveitou o ensejo para romper os laços de união política com Portugal e declarar a independência do Brasil.

Dali a 67 anos, a não menos romanceada “Proclamação da República” — sobre a qual o livros de história se referem como um ato patriótico protagonizado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que estava longe de ser um republicano convicto — foi, isso sim, um golpe de Estado que expeliu do trono o imperador D. Pedro II em prol da “unidade militar”.  

Deodoro tornou-se o primeiro presidente do Brasil — cargo que exerceu interinamente até ser efetivado por uma eleição indireta (como se vê, começamos bem), e do qual foi deposto, 9 meses depois, por iniciativa de seu vice, o também marechal Floriano Peixoto, que ficaria conhecido como "Marechal de Ferro".

A despeito de a Constituição de 1891 determinar a convocação de novas eleições no caso de vacância na Presidência, Floriano decidiu completar o quadriênio para o qual seu predecessor havia sido “eleito”. E começou sua gestão demitindo todos todos os governadores que apoiavam Deodoro. Houve reação, naturalmente, sobretudo no sul do país, onde uma grave crise política se instalou, em razão da disputa pelo poder. Ainda assim, o Marechal de Ferro conseguiu se manter no poder até 1894, quando passou o bastão ao republicano Prudente de Morais, que entrou para a história como o primeiro presidente civil — e eleito pelo voto direto — do novo regime.

Continua no próximo capítulo.

sábado, 10 de setembro de 2022

O VOTO E A DEMOCRACIA

Vivemos numa democracia representativa, onde os 3 Poderes da República são instituições independentes e cada qual tem funções especificas. Segundo nossa constituição, todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, e a população interfere no funcionamento do governo através do voto. Pois bem. Numa passagem do livro “Esaú e Jacó”, o escritor Machado de Assis anotou que o fato mais relevante da transição do Império para a República foi a faixa da confeitaria do centro da cidade do Rio de Janeiro passar a exibir os dizeres “Confeitaria da República” onde antes se lia “Confeitaria do Império”. 
 
O Brasil é realmente um país sui generis. Nossa independência não foi conquistada, mas comprada a peso de ouro (literalmente). O golpe militar de 1889 — pomposamente chamado de Proclamação da República — deu azo a eleições democráticas e ao direito de voto, cujo exercício se tornou compulsório. Para piorar, nosso "esclarecidíssimo" eleitorado mantém no poder quem sempre lá esteve, enquanto os poderosos mantêm na sarjeta quem com ela já se acostumou. 
 
A eleição de seus "representantes" deveria ser vista como uma ação de brasileiros racionais e interessados. Mas tudo se faz para conquistar o voto de uma récua de muares politicamente despreparados e desqualificados — o que inclui transportar as urnas até tribos perdidas no meio do nada, onde os indígenas sequer falam português.
 
Fala-se que "o povo precisa ser responsável pela escolha dos eleitos", e que votar em branco ou anular o voto não é democrático. Mas forçar alguém a participar da democracia é tudo, menos um aprimoramento da democracia. 
 
O que há é o de sempre: uma ânsia por conduzir uma maioria desinformada e despreparada a manter no poder quem nele sempre esteve. Ao final, troca-se a plaquinha de uma confeitaria qualquer do centro de qualquer cidade e se mantém o povo na sarjeta, aguardando, por mais quatro anos, o momento de lembrar aos eleitores como seu voto é relevante para a democracia.
 
Triste Brasil.

sábado, 10 de abril de 2021

BRASIL: MUITAS LEIS E POUCA VERGONHA NA CARA

Apenas 177 dos 594 congressistas conquistaram o mandato parlamentar através do voto direto. Grosso modo, um terço dos 513 deputados federais e 81 senadores têm contas a acertar com a justiça criminal (daí o empenho em sepultar a Lava-Jato). E mais: enquanto cerca de 100 milhões de brasileiros sobrevivem com apenas R$ 413 por mês, os nobres deputados recebem cerca de 80 vezes mais: R$ 33,7 mil mensais. Sem mencionar que a Câmara reembolsa (e nós pagamos) gastos com restaurante, motorista, aluguel de carro, combustível, táxi, segurança particular, passagens aéreas, hospedagem, conta de telefone, correios, cursos e até fretamento de jatinhos — além de R$ 4.253 mensais para despesas com moradia.

Segundo matéria da jornalista Helena Mader, “Mesmo com a pandemia e com a suspensão temporária das sessões presenciais na casa, as despesas com a cota parlamentar não tiveram uma queda condizente com o cenário de quarentena. Entre janeiro e agosto deste ano, a despesa mensal média foi de 10 milhões de reais. No ano passado, os deputados gastaram cerca de R$ 16 milhões por mês – um total de R$ 192,4 milhões de janeiro a dezembro de 2019. [...] Em tese, a crise da Covid impôs o isolamento social a boa parte dos parlamentares, mas os valores de reembolso pela compra de gasolina e de querosene para jatinhos colocam essa teoria em xeque – ou indicam que pode haver algo de errado por trás das prestações de contas. Os deputados federais gastaram este ano R$ 14,9 milhões com aluguel de carros, principalmente modelos de luxo, além de 6,2 milhões de reais com combustível. Com esse dinheiro, é possível comprar 1,3 milhão de litros de gasolina e percorrer até 24,8 milhões de quilômetros, o equivalente a 618 voltas em torno da Terra [...]

No Senado, o custo por parlamentar é ainda maior: por volta de R$ 294 mil por mês. Esse valor inclui o salário de R$ 33,7 mil, o auxílio-moradia de R$ 4.253 e a cota para exercício da atividade de até R$ 15 mil mensais. Soma-se a esse montante a verba para contratação de servidores comissionados, que, para a maioria, pode alcançar R$ 227,1 mil. São oferecidos aos senadores ainda serviços médico-hospitalares, odontológicos e laboratoriais de ponta. Essa despesa cresceu vertiginosamente nos últimos anos e praticamente dobrou entre 2016 e 2019, quando saltou de R$ 7,1 milhões para R$ 13,9 milhões — até agosto de 2020, o Senado já havia desembolsado R$ 7,9 milhões de com a assistência à saúde…

O Supremo Tribunal Federal ocupa uma área de 14.000 metros quadrados — espaço que dá e sobra para abrigar confortavelmente o Plenário (salão de debates dos 11 togados), a sala do presidente da Corte (com respeitáveis 100 m2) e as duas Turmas (cada qual com cinco integrantes). Até o início do século XIX, não havia uma corte suprema nesta banânia. Com a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, o príncipe regente criou a Casa da Suplicação do Brasil, que é considerada a versão 1.0 do STF, mas a função de corte constitucional se solidificou após a declaração da independência, com a criação  do Supremo Tribunal de Justiça e sua posterior promoção a Supremo Tribunal Federal (noves fora um curto período em que o tribunal foi efetivamente chamado de Corte Suprema).

Os ministros — como são intitulados os membros do supremo e dos tribunais superiores — são indicados pelo presidente da República, referendados pelo Senado. Uma vez empossados e devidamente togados, acomodam seus buzanfãs em confortáveis poltronas de couro caramelo, de onde passam a julgar e condenar os pobres, absolver os ricos, soltar traficantes e chefes de organizações criminosas e fazer malabarismos de hermenêutica criativa para enquadrar na moldura dos ditames constitucionais as conveniências de ex-presidentes corruptos e outros criminosos de estimação.

Para ser ministro do STF o art. 104 da CF exige que o candidato seja brasileiro, tenha entre 35 e 65 anos, goze de reputação ilibada e detenha notável saber jurídico. Não é preciso sequer ser bacharel em Direito. Na prática, importa mesmo é o Q.I. (de “Quem Indica”). Dito de outra maneira, importa mesmo é cair nas boas graças do presidente da República de turno, ser aprovado por menos 14 dos 28 integrantes da CCJ do Senado e conquistar a simpatia (e o voto) de pelo menos 41 dos 81 senadores na sessão plenária subsequente. Para isso, o candidato da vez faz um périplo pelos gabinetes dos nobres senadores (conhecido como “beija-mão”), como fazem os políticos em campanha eleitoral (a sabatina no Senado é meramente protocolar).

Uma vez aprovado, o candidato toma posse (numa cerimônia realizada no próprio Tribunal), tem os ombros recobertos pela suprema toga e acomoda o supremo buzanfã na confortável poltrona de couro cor de caramelo, de onde virá a julgar e condenar os pobres, absolver os ricos, soltar traficantes e chefes de organizações criminosas e amoldar a Constituição de maneira a favorecer ex-presidentes corruptos e outros criminosos de estimação. Cada ministro conta com um batalhão de auxiliares — dentre os quais os folclóricos “capinhas”, que ajeitam as poltronas para suas excelências se sentarem e se levantarem. Considerando os estagiários, terceirizados et al, o número de funcionários do Supremo varia conforme o mês, mas nunca fica abaixo de 2.450, o que dá uma média de 222 funcionários por ministro. Em 2016, segundo dados do site políticos.org.br, esse séquito faraônico consumiu mais de meio bilhão de reais.

É importante ressaltar que o mandato do presidente da República é de quatro anos (podendo ser prorrogado por outros quatro se o mandatário de turno não for impichado nem condenado criminalmente nesse entretempo), mas seu(s) apadrinhado(s) permanece(m) ministro(s) até completarem 75 anos de idade (quando a aposentadoria é compulsória), a menos que lhes dê na veneta  trocar a suprema toga pelo supremo pijama — como fez Joaquim Barbosa, que se aposentou aos 59 anos. Nesse meio tempo, suas excelências são inamovíveis. A Constituição prevê a possibilidade de eles serem em caso de crime de responsabilidade, mas na prática a teoria é outra: desde a proclamação da República, em 1889, apenas cinco indicados à Suprema Corte foram vetados (Barata Ribeiro, Innocêncio Galvão de QueirozEwerton QuadrosAntônio Sève Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo), todos durante o governo do Marechal Floriano Peixoto (1891-1894) — confira essa e outras curiosidades sobre o STF no estudo publicado pelo decano Celso de Mello em 2014.

Passados dois séculos, o STF rescende ao bolor dos tempos do Império, com seus paramentos, rapapés, salamaleques, linguagem empolada, votos repletos de citações em latim e outras papagaiadas. Os eminentes decisores trazem os votos prontos e raríssimas vezes mudam de opinião por conta das sustentações orais de advogados, amici curiae, membros da PGR e quem mais subir à tribuna e fizer solilóquios — enquanto aguardam sua vez de falar, suas excelências se entretêm com a montoeira de papéis que atulham suas bancadas, navegam na Web, jogam Solitaire ou tiram um cochilo — afinal, ninguém é de ferro. Após o voto do relator, os demais ministros se pronunciam na ordem inversa ao tempo de casa (ou seja, seja, do novato ao decano). Em havendo empate, cabe ao presidente da corte dar o voto de minerva. 

Ainda que os magistrados possam se limitar a dizer se acompanham ou não o voto do relator e, no caso de divergência, expor em poucas palavras o motivo que os levou a discordar, a leitura dos voto costuma levar horas. Há casos em que a leitura de um único voto preenche uma sessão inteira — tempo mais que suficiente para julgar dois ou mais processos, agilizando os trabalhos e aprimorando a performance do tribunal.

Manter essa máquina gigantesca funcionando custa aos contribuintes mais de R$ 1 bilhão por ano. Se somarmos a essa exorbitância os R$ 6 bilhões que custam o STJ e o TST, os salários e mordomias de senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores, bem como os bilhões tragados pelo ralo da corrupção, teremos um pisto do motivo pelo qual o país nunca tem recursos para investir na Saúde, na Educação, na Segurança etc., ainda que a arrecadação anual ultrapasse a casa dos R$ 3 trilhões.

ObservaçãoNo Brasil, cada contribuinte trabalha mais de 5 meses por ano só para fazer frente à carga tributária, que consome 41,80% da sua renda. Como disse certa vez o economista Delfin Netto, nosso país virou uma INGANA, com impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana