DEBATES ENTRE PESSOAS RAZOÁVEIS NÃO GERAM CONFLITOS, GERAM NOVAS IDEIAS.
Depois que um golpe de Estado (o primeiro de muitos) substituiu a monarquia parlamentarista do Império pelo presidencialismo republicano, em 1889, mais de três dúzias de brasileiros ocuparam a Presidência. Fernando Henrique foi o mais próximo de um estadista que tivemos desde a "redemocratização" — lembrando que a renúncia de Jânio, em 1961, pavimentou o caminho para o golpe de 1964 e os subsequentes 21 anos de ditadura. Mas Lord Acton ensinou que o poder corrompe, e FHC, que ninguém resiste à picadura da mosca azul.
Em 1997, o tucano de plumas vistosas comprou a PEC da reeleição e, rezando pelo catecismo de Geraldo Vandré — segundo o qual "quem sabe faz a hora, não espera acontecer" —, derrotou Lula já no primeiro turno do pleito de 1998. Mas faltaram-lhe novos coelhos para tirar da velha cartola e, quatro anos depois, o petista venceu José Serra, levando o PT ao poder. A partir de então, o Brasil passou a ser governado como uma usina de processamento de esgoto: a merda entra pela porta das urnas e muda de aparência, mas o que sai na posse do novo governante continua sendo merda — reciclada, mas ainda merda.
Não que a coisa fosse melhor em outro momento da nossa história. A sementinha da corrupção foi plantada em Pindorama nos idos 1500, quando, em sua famosa carta, Pero Vaz de Caminha pediu ao rei D. Manuel que intercedesse por seu genro. Trezentos anos depois, o país passou de colônia a reino-unido, mas somente porque a família real portuguesa se desabalou para o Rio de Janeiro para fugir de Napoleão Bonaparte. Nossa independência — paga a peso de ouro — foi proclamada por D. Pedro I enquanto esvaziava os intestinos, e a Proclamação da República, despida do glamour que lhe atribuem os livros de História, não passou de um golpe de Estado político-militar (o primeiro de muitos, como dito anteriormente).
Até o início do século XIX, nosso país não tinha uma corte constitucional. A "Casa da Suplicação do Brasil" foi criada em 1808, mas a função de corte suprema só se solidificaria 1829, com a criação do "Supremo Tribunal de Justiça" — que passou a se chamar "Supremo Tribunal Federal" com a proclamação da República. Hoje, além do papel de corte composicional, cabe ao Supremo processar agentes públicos com foro especial por prerrogativa de função e julgar recursos extraordinários contra decisões de outros tribunais. Mas aquela conversa de que juízes são isentos, apolíticos e apartidários não passa de cantilena para dormitar bovinos. Os magistrados não só tomaram gosto pela política — e quem conquista poder político não abre mão dele facilmente — como também sucumbiram à nefasta polarização, que dividiu o país em duas abjetas facções.
Mesmo estando inelegível e contando os dias que faltam para sua mais que provável condenação, Bolsonaro continua fazendo pose de candidato. Ao pressionar a banda podre da Câmara a aprovar uma insana proposta de anistia, o golpista confessa por vias tortas os crimes que jura não ter cometido. Como se não bastasse, seu filho Eduardo atua como articulador das sanções impostas pela Casa Branca ao país que, como deputado por São Paulo (que também elegeu Tiririca para quatro mandatos consecutivos), é pago para defender.
Dias atrás, o filho do pai estendeu sua abjeta chantagem aos presidentes da Câmara e do Senado: se Motta não levar à pauta de votações da Câmara o projeto que anistia aos golpistas e Alcolumbre engavetar o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes — renovado dias atrás pelo senador das rachadinhas, panetones e mansões milionárias Eduardo Bolsonaro —, poderão ter seus vistos de entrada nos EUA cassados, a exemplo do que aconteceu com oito dos onze ministros do STF.
O ex-ministro Sepúlveda Pertence definiu o Supremo como "um arquipélago de 11 ilhas", mas a politização ficou mais evidente em 2019, quando seis dos onze membros da Corte mudaram a jurisprudência sobre a prisão em segunda instancia, ensejando a "volta do criminoso à cena do crime” — como bem observou o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin quando ainda era tucano.
Gilmar Mendes — a verdadeira "herança maldita" de FHC — defendia a Lava-Jato com unhas e dentes, mas virou a casaca depois que a Vaza-Jato denegriu a imagem do ex-juiz Sergio Moro, do ex-procurador Deltan Dallagnol e de outros integrantes do braço paranaense da força-tarefa, embora seu "crime hediondo" tenha sido combater corrupção sistêmica e pôr na cadeia bandidos travestidos de executivos das maiores empreiteiras do país e políticos ímprobos de altíssimo coturno.
Dias Toffoli — que ganhou a suprema toga graças aos "bons serviços prestados" como advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, consultor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT), assessor jurídico do PT e do ex-ministro José Dirceu e subchefe para assuntos jurídicos da Casa Civil sob Lula, a despeito de ter sido reprovado em dois concursos para juiz de primeira instância em São Paulo —, vem fazendo das tripas coração para reconquistar as boas graças de Lula com decisões teratológicas que visam claramente favorecer os "amigos do rei".
Indicado por Lula para o Supremo a pedido da então primeira-dama, Ricardo Lewandowski retribuiu a gentileza durante o julgamento do Mensalão, no qual atuou mais como defensor dos réus do que como julgador. No impeachment de Dilma, ele e o senador Renan Calheiros urdiram uma tramoia para evitar que a mulher sapiens tivesse seus direitos político suspensos.
E por aí segue a procissão.
Em seu artigo 1º, a Constituição Cidadã anota que "a República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito" e tem como primeiro fundamento "a soberania". O parágrafo único desse mesmo artigo estabelece que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente". Já no primeiro inciso do artigo 3º, o Regimento Interno da Câmara explicita que é dever do deputado federal "promover a defesa do interesse público e da soberania nacional". Na prática, porém, a teoria costuma ser outra.
Morando nos EUA e exercendo em tempo integral a atividade de traidor da pátria, Eduardo Bolsonaro rasga a Carta Magna, sapateia sobre o regimento da Câmara e desonra os 741 mil votos que obteve do eleitorado paulista em 2022. Mas não é só: a falta de posicionamento dos dirigentes do Congresso sobre o pedido de cassação do traíra injeta na conjuntura brasiliense uma vergonha convulsiva: quando alguém precisa tomar uma decisão e não toma, está decidindo não fazer nada, e nada, no caso do deputado, é uma palavra que já ultrapassa tudo. Ou Congresso expurga o personagem dos seus quadros, tornando-o inelegível, ou se desmoraliza junto com ele.
A coação exercida sobre o STF por Trump em parceria com a Famiglia Bolsonaro já justificaria a prisão preventiva do chefe do clã, mas Moraes "morde e assopra", evitando confundir o necessário com o excessivo, sobretudo depois que seu colega Luiz Fux votou contra as medidas cautelares impostas ao capetão (dizem que o fez para não ter seus visto de entrada nos EUA cassado, como já aconteceu com oito de seus pares). Vale destacar que não foi a primeira vez que ele divergiu do relator e de seus colegas da Primeira Turma. Durante a análise da denúncia da PGR, o ministro levantou dúvidas sobre a delação de Mauro Cid e a competência da Turma para julgar Bolsonaro e seus cúmplices (que, segundo ele, seria da primeira instancia do Judiciário ou, na pior das hipóteses, dos 11 ministros da Corte).
Diz um ditado que "só não muda de opinião quem já morreu", mas causa espécie que o ministro "punitivista" que apoiou o relator (Joaquim Barbosa) na condenação da maioria dos réus da ação penal 470 (vulgo "Processo do Mensalão") e se tornou um dos principais defensores da Lava-Jato tenha dado um "cavalo de pau" digno dos melhores filmes de ação, aliando-se à corrente "garantista", que prioriza a proteção dos direitos fundamentais dos réus.
Embora concorde com as condenações pela trama golpista, Fux tem acatado alguns argumentos dos acusados, e comenta-se à boca pequena que ele continuará nessa linha, como forma de "garantir a moderação no STF". No julgamento da cabeleireira Débora dos Santos, que ficou conhecida por pichar com batom a frase "Perdeu, mané" na estátua da Justiça, Moraes propôs 14 anos de prisão, mas Fux sugeriu um ano e seis meses, arrancando elogios de Michelle Bolsonaro.
No fim de março, durante o julgamento da denúncia da PGR contra o grupo principal da trama golpista — encabeçado por Bolsonaro —, Fux foi o único a abraçar o argumento da defesa no sentido de que o foro indicado para conduzir as investigações seria primeira instância do Judiciário, e não no STF. Derrotado por seus pares, ele acabou votando pelo recebimento da denúncia, que foi aceita por unanimidade. No mesmo julgamento, afirmou ser contrário à ideia de punir a tentativa de golpe como se fosse um crime consumado. Defendeu a necessidade de diferenciar os atos preparatórios da execução do crime e levantou dúvidas sobre a legalidade da delação de Mauro Cid. As observações renderam elogios da defesa de Bolsonaro.
No depoimento de Cid ao STF, Fux fez perguntas que foram elogiadas por Eduardo Bolsonaro — em suas redes sociais, o filho do pai escreveu: "Urgente! Fux desmontou o castelo de areia com duas perguntas." Nos depoimentos de testemunhas do chamado núcleo crucial, foi o único —além do relator — a comparecer às sessões e fazer questionamentos nas oitivas. E a expectativa é que ele continue apresentando contrapontos às discussões, assumindo de maneira informal o papel de "ministro revisor", personificado por Lewandowski no julgamento do Mensalão, mas extinto em 2023 por uma alteração no Regimento Interno da Corte.
As ideias que Fux defende atualmente contrastam com julgamentos penais do passado. Após sua brilhante atuação no Mensalão, o ministro defendeu a Lava-Jato mesmo depois que a Vaza-Jato expôs uma "suposta relação espúria" de Sergio Moro com os procuradores de Curitiba. Em abril de 2021, Fux se posicionou contra a anulação das condenações impostas a Lula pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Em junho de 2022, quando presidia o STF, disse que a anulação foi resultado da análise de questões formais: "Ninguém pode esquecer que ocorreu no Brasil, no Mensalão, na Lava-Jato."
Fux intensificou sua relação com Bolsonaro a partir de setembro de 2020, quando assumiu a presidência do STF. No mês seguinte, recebeu o então mandatário para uma "visita de cortesia" que durou cerca de 45 minutos. Bolsonaro elogiou a decisão de Fux de manter preso um dos líderes do PCC, solto por determinação do (hoje aposentado) ministro Marco Aurélio. Sua atitude provocou irritação do colega — até porque não é praxe um ministro suspender a decisão de outro.
No dia seguinte ao encontro, Bolsonaro concedeu a Fux a Ordem de Rio Branco em seu mais alto nível, o grau de Grã-Cruz.
Coincidência ou não, os únicos ministros do STF que não tiveram seus vistos revogados pelo secretário de Estado dos EUA foram os bolsonaristas André Mendonça e Nunes Marques... e Luiz Fux — indicado para o tribunal por Dilma em 2011.
Aguardemos, pois, os próximos capítulos de mais esse emocionante folhetim tupiniquim.