Na cerimônia de posse de certo governador de São Paulo (não
me lembro se Quércia ou Fleury), o fundador da construtora
Camargo Corrêa
foi saudado por um ex-governador: "Dr. Camargo, o senhor por aqui?"
Sebastião
Camargo respondeu: "Eu estou sempre por aqui, governador.
Vocês é que mudam".
Governo probo, nunca houve no Brasil. Se o nepotismo é uma
das muitas facetas da corrupção, então "essa senhora" desembarcou na Terra de Vera Cruz
com Cabral (falo do Pedro Álvares, não do ex-governador
do Rio). No epílogo da epístola em que deu conta do "descobrimento"
a D. Manuel, o escriba Pero Vaz de Caminha anotou:
“E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que
nesta terra vi. E se a um pouco me alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que
tinha de Vos tudo dizer, mo fez proceder assim pelo miúdo. E pois que, Senhor,
é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de
Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço
que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de
Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.”
Observação: o escriba estava preocupado com sua filha única, Isabel de Caminha, cujo marido, um certo Jorge de Osório, preso por roubo, fora degredado para a ilha de São Tomé, na África.
Como reza a sabedoria popular, o que começa mal tende a ficar pior.
No início
do século XIX, a iminente invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas forçou
a família real lusitana a vir de mala e cuia para o Rio de Janeiro. Com isso, o Brasil, que até 1815 foi mera colônia portuguesa, passou à condição de
Reino
Unido a Portugal e Algarves. E assim permaneceu até o célebre “Grito
da Independência” — o tal brado heroico retumbante ouvido pelas
margens plácidas do Ipiranga, que Osório Duque Estrada poetizou
na letra do Hino Nacional Brasileiro, o pintor Pedro
Américo imortalizou em seu tão célebre quanto fantasioso quadro, e os livros
didáticos transformaram numa obra
de ficção.
A Proclamação da República, também cantada em
verso e prosa com pompa e circunstância, foi o primeiro dos muitos golpes de
Estado que estavam por vir. Entre o apagar das luzes imperiais, em 1889, e
a posse de Prudente de Morais, em 1894, somente militares ocuparam o
assento mais cobiçado do palácio presidencial — daí esse período ser chamado de República
da Espada.
O Marechal Deodoro da Fonseca — a quem
coube desfechar o golpe de misericórdia no regime monárquico e entrar para a
história como o primeiro presidente do Brasil — governou interinamente por
cerca de dois anos. Promulgada a Constituição
de 1891 e realizada uma eleição indireta, o fardado derrotou o
candidato civil Prudente de Morais por 129 votos a 97. Mas sua gestão,
marcada pelo autoritarismo, foi encerrada prematuramente por
um levante da Marinha que ficou conhecido como Revolta da Armada.
Tão logo passou de vice a titular, o também marechal Floriano
Peixoto demitiu todos os governadores que apoiaram seu antecessor (e que
defendiam a realização de nova eleição, à luz do previsto no art.
42 da Carta Magna). Graças a sua postura ditatorial — que se tornaria
moda entre os mandatários tupiniquins — o "Marechal
de Ferro" teve de debelar sucessivas rebeliões — como a Revolução
Federalista e a Segunda
Revolta da Armada — para se manter no poder.
Observação: Em abril de 1892, diante de
protestos de opositores e divulgação de manifestos na capital federal, Peixoto
decretou estado de sítio, prendeu e desterrou desafetos para a Amazônia.
Quando Rui Barbosa ingressou com habeas corpus no Supremo
Tribunal Federal em favor dos detidos, Peixoto ameaçou os
magistrados: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu
não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão".
O Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um.
Em novembro de 1894, muito a contragosto, o marechal passou
o bastão para o paulista Prudente de Morais —
que obteve 90% dos votos na primeira eleição direta da nossa história.
A exemplo do que faria
o General Figueiredo quase um século depois, Peixoto se
recusou a transmitir pessoalmente o cargo a seu sucessor.
Ao longo de 131 anos de história republicana (completados em
novembro do ano passado), 38 presidentes chegaram ao poder pela via do voto
popular, eleição indireta, linha sucessória ou golpe de Estado (como até o
passado é incerto neste país, esse número varia de 35 a 44). Destes, oito
foram de alguma forma apeados antes do fim do mandato. Dos cinco
eleitos pelo voto direto desde o fim da ditadura, Collor e Dilma foram
expulsos de campo antes do final do jogo.
O caçador de marajás de festim — que inaugurou a lista dos
chefes do Executivo Federal depostos por crime de responsabilidade —
colecionou 29 pedidos de impeachment, mas nunca foi chamado de genocida.
Itamar, FHC, Lula e Temer foram
agraciados, respectivamente, com 4, 27, 37 e 33 pedidos de impeachment, mas
concluíram seus mandatos sem jamais serem chamados de genocidas.
A
gerentona de araque, que foi expelida da Presidência porque
estava quebrando o país, foi alvo de 68 pedidos de
impeachment, mas ninguém jamais a acusou de genocídio.
Falando em genocídio, o relatório final da CPI
já está sendo escrito e deverá ser concluído no mês que vem. O texto-base já
possui mais de mil páginas — e pode crescer, a depender dos fatos e dados a
serem obtidos pela Comissão. O grosso do material está nos anexos, que
incluem documentos e os principais pontos de destaque dos depoimentos.
O relator deve sugerir a continuidade da investigação pelo Ministério
Público por meio de inquéritos específicos para cada assunto trazido em
destaque. Vários dos capítulos já elaborados dizem respeito ao chamado "gabinete
paralelo da saúde" e incluem a transcrição e links de vídeos,
áudios, declarações e documentos que, segundo Renan Calheiros, comprovam a atuação
do órgão extraoficial. Um dos tópicos do relatório trará a afirmação de que
quem se opôs ao gabinete paralelo — como Luiz Henrique
Mandetta e Nelson
Teich — acabou deixando o Ministério.
Já o general e ex-ministro Eduardo
Pazuello será apontado por não se opor à atuação de médicos do suposto
gabinete na elaboração de políticas públicas e por "colocar em prática"
as orientações extraoficiais. Segundo o senador Randolfe Rodrigues, o
documento deve imputar o estrelado crimes como "charlatanismo,
prevaricação, advocacia administrativa e por atuar contra a ordem sanitária".
Os parlamentares ainda discutem se incluem na lista corrupção passiva.
Haverá um destaque no relatório também com relação ao
aplicativo "TrateCov",
que, segundo Pazuello teria sofrido um ataque hacker — fato
desmentido por uma auditoria técnica do TCU. Na redação, o aplicativo
está sendo tratado como uma das políticas falhas do Ministério da Saúde que
teriam utilizado a capital do Amazonas como "experimento"
para as teorias do gabinete paralelo. Nesse contexto, a minuta de um decreto
presidencial que pretendia
alterar a bula da cloroquina sem o aval da Anvisa também deverá ser
anexada ao texto. Todos esses fatos, envolvendo principalmente o general Pazuello,
aparecerão como aspectos que prejudicaram o país na aquisição de vacinas contra
a doença.
Com encerramento programado para setembro, a CPI
convive com um paradoxo. Tomada pelo relatório final, a investigação
parlamentar terá a aparência de uma iniciativa de sucesso. Considerando-se as
consequências a serem produzidas pelas conclusões do documento, resultará em
frustração. As pessoas que acompanharam os depoimentos pela televisão terão a
impressão de que desperdiçaram seu tempo quando as conclusões da Comissão
morrerem no arquivo de Augusto Aras — que, como Procurador-Geral da
República, é
responsável pela análise dos crimes comuns atribuídos a Bolsonaro — e
no gavetão
do deputado Arthur Lira — a quem, como presidente da Câmara, cabe
lidar com a acusação da prática
de crimes de responsabilidade, que, em tese, levariam ao impeachment.
Dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou
numa única conjuntura política. Dividido entre um e outro, o público tende a se
dispersar. Antes do recesso parlamentar de julho, estava em cartaz a novela da CPI
do Genocídio. Ao farejar o cheiro de queimado, Bolsonaro aproveitou
o retiro dos senadores para intensificar as críticas
às urnas eletrônicas e os insultos
a ministros do STF, impondo a mudança do cartaz neste mês de agosto. Ao
voltar do recesso, o G7, como ficou conhecido o grupo majoritário que
controla os rumos da CPI, percebeu que a pior coisa do sucesso é ter que
continuar fazendo sucesso.
Às voltas com um déficit de atenção da plateia, os senadores
começaram a planejar o fechamento das cortinas. Enxugam a pauta de depoimentos.
Esperam encerrar as oitivas em três semanas. Para evitar marolas, cancelaram
a acareação que seria feita nesta semana entre o ministro Onyx Lorenzoni e o
deputado Luís Miranda e relutam em aprovar novas convocações. No
papel, a Comissão poderia funcionar até o início de novembro, mas tudo indica que o relatório final será entregue em meados de setembro.
Pretende-se indiciar Bolsonaro e outros investigados
por transformar em política pública o tratamento da Covid com remédios
ineficazes, apostar na imunização coletiva pelo contágio, negligenciar o
colapso hospitalar de Manaus, retardar a compra de vacinas da Pfizer e
do Butantan, firmar contrato irregular para a compra da vacina indiana Covaxin,
abrir as portas do Ministério da Saúde para picaretas que ofereciam vacinas
inexistentes (ou seja, a Comissão pretende acusá-lo de crimes
comuns e crimes de responsabilidade).
O presidente continua cagando
e andando para a CPI. Considera-se invulnerável. Para os crimes
comuns, conta com a blindagem do procurador-geral. Para os crimes de
responsabilidade, tem a proteção do deputado-réu que preside a Câmara e já
mandou para o gavetão 133
pedidos de impeachment. Mantida a blindagem, Bolsonaro poderá
repetir que não teve nada a ver com o caos sanitário.
Não há nada que a cúpula da CPI possa fazer para
dissolver a cumplicidade de Lira com Bolsonaro. Mas, com honrosas
exceções, é espantosa a inércia dos senadores em relação ao procurador-geral. A
recondução
de Aras ao cargo está pendente de votação no Senado. Em vez de
articular a reprovação do dito-cujo, parte
dos integrantes da Comissão se reuniram, na última terça-feira, com o
procurador que Bolsonaro escolheu para lavar a sua louça por mais dois anos.
Renan
Calheiros tornou-se a personificação do paradoxo vivido pela CPI.
Há dois anos, quando o Senado aprovou a nomeação de Aras para comandar a
PGR, o ora relator da Comissão não conseguiu conter o entusiasmo. Naquela época, o senador alagoano estava ao lado do primogênito do capitão,
outro entusiasta da escolha de Aras. Freguês de caderneta da Lava-Jato,
o Cangaceiro das Alagoas queria acertar as contas com a força-tarefa de
Curitiba; denunciado pelo MP-RJ por peculato e lavagem de dinheiro, Flávio "Rachadinha"
Bolsonaro estava à procura de blindagem.
A PGR — e, por extensão, o Ministério Público
Federal — vive um apagão mental. Já se sabia que Aras trata Bolsonaro
como um ser inviolável e imune (eufemismos para intocável e impune). Descobre-se
agora que, para livrar o presidente-suserano de incômodos judiciais, o procurador-vassalo
e sua equipe decidiram enquadrá-lo na categoria dos seres inimputáveis.
Bolsonaro obteve da PGR um salvo-conduto para
delinquir. Pode tudo, inclusive arrancar máscara da cara de criancinha. PT
e PSOL pediram no STF a abertura de inquéritos para apurar o
desrespeito a leis estaduais e federal em aglomerações promovidas pelo mandatário
durante passeios de moto com seus devotos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do
Norte. A subprocuradora-geral Lindôra Araújo (braço direito de Aras), a quem coube formular a manifestação da PGR, sustentou que Bolsonaro
não infringiu medidas sanitárias nem colocou a vida de ninguém em risco.
Numa evidência de que a PGR opera em "modo
Talibã", a subprocuradora aderiu ao negacionismo científico para
dispensar Bolsonaro do mais comezinho cuidado sanitário. Anotou que,
"em
relação ao uso de máscara de proteção, inexistem trabalhos científicos com alto
grau de confiabilidade em torno do nível de efetividade da medida de prevenção".
No Rio Grande do Norte, Bolsonaro
pediu a uma menina para retirar a máscara e arrancou
o apetrecho da face de um menino. Para Lindôra, o presidente não
teve a intenção de "constranger aquelas crianças". Segundo ela, "os
infantes também não demonstraram, com atitudes ou gestos, terem ficado
constrangidos, humilhados ou envergonhados na presença do presidente".
Na avaliação da doutora, o presidente apenas interagiu com as crianças "de
forma descontraída."
Como se sabe, Bolsonaro fez uma opção preferencial
por exercer o cargo de presidente à margem da lei. Transgride até leis que
sancionou. Como há males que vêm para pior, Aras e sua equipe promovem
uma junção da ilegalidade com a impunidade.
Em seus deslocamentos eleitorais, Bolsonaro promove
aglomerações proibidas por Estados e municípios. Ignora os poderes conferidos a
governadores e prefeitos pela Constituição e reafirmados pelo STF. Por
onde passa, discursa contra medidas sanitárias restritivas. Finge ignorar o
fato de que sancionou em fevereiro do ano passado a "lei
da pandemia", que prevê a adoção de providências excepcionais, como o isolamento e a quarentena. Em julho de 2020, Bolsonaro assinou a lei
14.019, que torna obrigatório o uso de máscaras de proteção individual
em espaços públicos e privados. Em suma: além de cagar e andar para sua própria
decisão, o capitão constrange o ministro Marcelo Queiroga com a cobrança
de estudos
para flexibilizar o uso da máscara. Agora, recebe salvo-conduto da
Procuradoria para descumprir até a lei que avalizou.
Nos passeios de moto, Bolsonaro não percorre apenas o
asfalto, mas o Código Penal, cujo artigo
268 estabelece pena de detenção de um mês a um ano para quem "infringir
determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de
doença contagiosa". No artigo
132, o diploma legal retrocitado sujeita a uma pena de detenção de três meses
a um ano as pessoas que expõem a vida ou a saúde de terceiros a perigo direto e
iminente.
Nesse contexto, não parece razoável que um país inteiro tenha
que passar vergonha para que um procurador-geral e sua equipe ofereçam
blindagem a um presidente da República que se converteu num infrator serial.
Não resta aos relatores dos dois processos no STF — Rosa Weber e
Ricardo Lewandowski — senão ignorar a manifestação de Lindôra e
ordenar a abertura dos inquéritos.
Vivo, Darwin diria que a
atuação da PGR não é apenas uma prova de que o ser humano parou de
evoluir. Trata-se de uma evidência de que ele já faz o caminho de volta. No
momento, o melhor lugar para se proteger de Bolsonaro é uma caverna nas
montanhas do Afeganistão. Aliás, se o homem de Neandertal
desconfiasse que o resultado da evolução seria bolsonaros, talvez não
tivesse saído da caverna. Teria optado por uma versão pré-histórica do
isolamento social.
Com Josias de Souza