A corrupção desembarcou em terras tupiniquins antes mesmo que nossa caricatura de país ganhasse o nome que tem hoje, como comprova a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manuel. Na missiva, o escriba oficial da esquadra de Cabral — falo de Pedro Álvares, o suposto descobridor destas paragens, e não do ex-governador do Rio, condenado a 100 anos prisão — acrescentou às boas novas um pedido de clemência para seu genro degredado.
A exemplo do nepotismo, o pedágio também é uma forma de corrupção, mas tem presença garantida em boa parte dos gabinetes de parlamentares tupiniquins. Só na Assembleia Legislativa fluminense, ao menos 28 servidores tiveram movimentações atípicas em suas contas bancárias com o mesmo padrão das supostamente realizadas por Fabrício Queiroz entre 2016 e 2017.
Observação: O pedágio é uma prática mediante a qual os políticos engordam os próprios salários garfando parte da remuneração dos assessores. Ainda que o catecismo político o tenha na conta dos pecados veniais, isso não faz dele menos lícito nem moralmente aceitável.
Não há relatos de pedágio na esquadra de Cabral, mas não faltam suspeitas dessa ilicitude
no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. O imbróglio veio à tona em dezembro, depois que o Estado revelou
que um relatório do Coaf havia identificado diversas movimentações
atípicas de R$ 1,2 milhão, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, na conta do ex-assessor, motorista e policial aposentado Fabrício
Queiroz, que é amigo de velha data do clã Bolsonaro (e que foi exonerado no dia 15 de outubro do ano passado). Entre as “movimentações suspeitas”, havia também um depósito de R$ 24 mil em favor Michelle Bolsonaro.
Bolsonaro pai disse tratar-se do pagamento
de parte de um empréstimo de R$ 40 mil que ele havia feito a Queiroz, e que, "se algo estiver errado, seja comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos a conta desse erro". Bolsonaro filho afirmou que caberia ao ex-assessor prestar os esclarecimentos, e que já tinha ouvido
dele “uma
explicação plausível”, que poderia ter encerrado o assunto se tivesse sido apresentada logo de início.
Mas não foi. E quando há justificativa, os fatos falam; quando não há, as
versões sussurram e as suspeitas prosperam.
Cerca de uma semana depois da primeira reportagem sobre o caso, o MPRJ abriu 22 procedimentos de investigação criminal com base no relatório do Coaf, com Queiroz entre os investigados, e com isso, foram marcados os primeiros depoimentos. Em vez compartilhar com o MPRJ a tal explicação plausível, Queiroz, primeiro, afirmou nada saber sobre o assunto; depois, alegou motivos de saúde e falta de tempo para analisar as acusações, e faltou aos depoimentos marcados para 19 e 21 de dezembro. Entre uma coisa e outra, em entrevista ao SBT, explicou que estava tratando um câncer no intestino, que nunca foi laranja e que a movimentação em sua conta foi produto da compra e venda de carros. No final de dezembro, foi internado para a retirada do tumor. Três dias depois, um vídeo no qual ele aparece dançando no hospital viralizou nas redes sociais, e ele se mostrou revoltado com a circulação do vídeo. Foi operado e recebeu alta no último dia 8. No dia seguinte, disse que pagou a conta com recursos próprios, mas não revelou o valor. Disse também que esclareceria em breve as movimentações atípicas, mas não especificou quando isso ocorreria. E não compareceu ao depoimento marcado para o dia 10 de janeiro.
Flávio Bolsonaro também faltou ao depoimento. Em nota, disse que não é investigado e que não teve acesso aos autos do procedimento
aberto pelo MPRJ, mas prometeu
marcar uma nova data para depor. Mais adiante, alegando que o MPRJ pediu informações ao Coaf que não têm relação com Queiroz — o que configuraria uma
apuração sobre sua conduta —, o senador questionou
a competência do MP e reivindicou
foro privilegiado no STF. Em
entrevista à Record, disse que
não poderia ser investigado sem autorização do Supremo em razão da prerrogativa de foro a que tem direito como
senador diplomado, que é o maior interessado em esclarecer tudo e que não quer
privilégio nenhum, apenas ser “tratado dentro da lei e da Constituição”.
Na visão
de diversos analistas — e até de alguns ministros do Supremo —, a Reclamação de Flávio foi “um tiro no pé”, pois poderá resultar
na ampliação do escopo da investigação e envolver o próprio Presidente, o que
não aconteceria se o imbróglio ficasse restrito à primeira instância. Na avaliação da ala militar do governo, o caso ganhou uma
dimensão maior e mais preocupante depois que o Jornal Nacional revelou o relatório sobre os depósitos em dinheiro
realizados na conta bancária do filho do Presidente. Antes, quem devia explicações era Queiroz; agora, seu ex-chefe também está em
palpos de aranha. No Planalto, a estratégia é afastar Bolsonaro pai do caso e fritar Bolsonaro filho, lembrando que o pai não é investigado e que
explicou satisfatoriamente os depósitos feitos na conta da primeira-dama.
Observação: Segundo o Coaf, Flávio
Bolsonaro recebeu em sua conta bancária 48 depósitos em dinheiro
considerados suspeitos. No total, foram R$
96 mil, depositados em cinco dias. Em 9 de junho de 2017 foram 10 depósitos
no intervalo de 5 minutos, entre 11h02 e 11h07. No dia 15 de junho, mais 5
depósitos, feitos em 2 minutos, das 16h58 às 17h. Em 27 de junho outros 10
depósitos, em 3 minutos, das 12h21 às 12h24. No seguinte mais 8 depósitos, em 4
minutos, entre 10h52 e 10h56. E no dia 13 de julho 15 depósitos, em 6 minutos.
O ministro Luiz Fux,
responsável pelo plantão durante o recesso do Supremo, determinou em caráter liminar a suspensão do procedimento investigatório criminal até que o ministro Marco Aurélio, relator
da Reclamação, decida em qual instância ela deverá tramitar. Mello já sinalizou que seguirá
aplicando o entendimento de que o foro privilegiado para senadores e deputados
vale apenas para fatos ocorridos durante o mandato e em decorrência dele: “Já na sexta-feira, pela manhã, assinarei a decisão — sexta, dia primeiro
de fevereiro […]. O Supremo não pode variar, dando um no cravo outro na
ferradura. Processo não tem capa, tem conteúdo. Tenho negado seguimento a reclamações
assim, remetendo ao lixo.”
O MPRJ nega ter havido quebra do
sigilo, afirma que as investigações decorrentes de movimentações financeiras
atípicas de agentes políticos e servidores podem se desdobrar em procedimentos
cíveis pra apurar a prática de atos de improbidade administrativa e procedimentos
criminais e reitera que Flávio Bolsonaro não
é investigado. Mas acatou a decisão de Fux e suspendeu o procedimento, provocando uma avalanche de críticas nas redes sociais, tanto de detratores de Bolsonaro, como o PT, quanto de apoiadores, como o MBL.
Gleisi
Hoffmann, presidente nacional da ORCRIM,
afirmou que a suspensão é grave e que mostra “pesos e medidas” diferentes: “Para Lula,
basta convicção, para os Bolsonaros,
nem documento público é considerado”, postou a lunática no Twitter. Fernando Holiday, vereador em São Paulo pelo DEM e coordenador do MBL,
afirmou que “quem não deve, não teme, ainda mais uma simples investigação”. O coordenador
da Lava-Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, também criticou a decisão
de Fux: "Com todo o respeito ao ministro, não há como
concordar com a decisão, que contraria o precedente do próprio STF. Tratando-se
de fato prévio ao mandato, não há foro privilegiado perante o Supremo. É de se
esperar que o ministro Marco Aurélio reverta a liminar", postou Deltan em
seu perfil no Twitter.
Resumo da ópera:
Esse imbróglio deveria ter sido esclarecido assim que o
relatório do Coaf veio a público,
mas para isso seria preciso que Queiroz
tivesse realmente uma explicação plausível — ou que seu chefe assumisse o pedágio, desse a cara a tapa e arcasse
com as consequências. Há entendimento generalizado — que poderia ou não ser confirmado
nessa investigação — de que parlamentares, seja em que nível for, com raras e
honrosas exceções, financiam suas campanhas e suas vidas pessoais garfando uma
parte do salário de seus funcionários ou nomeando funcionários-fantasmas. Dizer que fez o que todo mundo faz não é desculpa, mas tratar fratura exposta com band-aid
é ainda pior. O Presidente Jair Bolsonaro se elegeu
com o bordão do combate à corrupção, e essa merdeira é tudo que a oposição
precisava para cair de pau.
É louvável que até os bolsomínions
critiquem a postura de Bolsonaro filho e a decisão do ministro Fux. Isso demonstra que apoiam as apurações porque
querem saber a verdade. Fosse o PT, o
discurso de vitimização já estaria a todo vapor. Aliás, os militontos já estão
postando nas redes que, se o investigado fosse um político de esquerda, ele e
seus assessores já teriam sido presos preventivamente o levados coercitivamente
para depor. Particularmente, acho ridículo essa caterva usar Queiroz
como “prova de corrupção” do atual governo e "não enxergar" provas contra Lula e os demais petralhas presos,
classificar de golpe o impeachment que depôs Dilma, e por aí afora. O que me
causa espécie, no entanto, é Flávio Bolsonaro insistir
que é apenas testemunha no caso e mesmo assim pedir a suspensão da investigação contra si.
Além de afrontar a coerência, o pedido de Flávio desmente a alegação de que seria ele o maior interessado em esclarecer o episódio, desenha um alvo em sua própria testa e abre um flanco na atuação do clã — tanto é que nem o pai presidente, nem os irmãos políticos saíram em sua defesa. E tem mais: ao levar o caso para o STF, sua defesa propicia a inclusão do Planalto na investigação, ainda que a soma depositada na conta da primeira-dama tenha uma explicação plausível. E mesmo que assim não fosse, os fatos aconteceram antes de Jair Bolsonaro ser eleito e, portanto, não pode resultar em processo enquanto ele for Presidente. Mas investigações podem ser feitas.
Além de afrontar a coerência, o pedido de Flávio desmente a alegação de que seria ele o maior interessado em esclarecer o episódio, desenha um alvo em sua própria testa e abre um flanco na atuação do clã — tanto é que nem o pai presidente, nem os irmãos políticos saíram em sua defesa. E tem mais: ao levar o caso para o STF, sua defesa propicia a inclusão do Planalto na investigação, ainda que a soma depositada na conta da primeira-dama tenha uma explicação plausível. E mesmo que assim não fosse, os fatos aconteceram antes de Jair Bolsonaro ser eleito e, portanto, não pode resultar em processo enquanto ele for Presidente. Mas investigações podem ser feitas.
Para encerrar, a cereja do bolo: De repente, toda a imprensa achou de tratar o pedágio no gabinete de um parlamentar como se fosse o maior escândalo desde Cabral (com o petrolão, sempre relativizado pela mídia, fresquinho
na memória). E viva o povo brasileiro!
ATUALIZAÇÃO:
Ontem à noite, em
entrevista à TV Record, Flávio atribuiu o pagamento no valor de pouco mais de R$ 1 milhão à quitação, feita pela
Caixa, de um apartamento que ele havia comprado na planta. A posterior venda do imóvel explicaria outras movimentações consideradas “suspeitas” pelo Coaf, mas os depósitos fracionados continuam
sendo questionados pela mídia. Disse ainda que tinha a documentação comprobatória e que a entregaria à instância da Justiça que fosse determinada pelo STF. Logo depois, em entrevista à Rede TV, afirmou
que ele e o pai estão sendo vítimas de perseguição, que estão tentando criminalizar o dinheiro que ganhava
como empresário (segundo ele, mais que seu salário de deputado), que não lhe deram oportunidade de se explicar e que quebraram
seu sigilo de forma ilegal. Sobre o pedágio (que ele chamou de “rachadinha”) em
seu gabinete na Alerj, afirmou que, se tivesse
conhecimento dessa prática, teria sido o primeiro a denunciar.