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sexta-feira, 1 de maio de 2020

A IGNORÂNCIA ELEVADA À ENÉSIMA POTÊNCIA



O Brasil, também chamado de Gigante Adormecido e País dos Contrastes, é uma república federativa formada por 26 estados e um Distrito Federal. Devido a suas dimensões — são 5.570 municípios espalhados por 8.511.000 km², área que ultrapassa a da Austrália e fica próxima das da China e EUA —, não seria de esperar que seus 211,4 milhões de habitantes falassem todos do mesmo jeito e se comportassem da mesma maneira.

Mesmo que estejamos longe de ter 11 mil dialetos — como na Itália, cujo território é quase 30 vezes menor que o nosso, e a população, de 60 milhões de almas —, dificilmente algum dos 30 mil habitantes do município gaúcho de Santa Vitória do Palmar, na divisa com o Uruguai, conseguirá entabular uma conversa fluente com um baiano de Ibó, na divisa com Pernambuco (para ter uma ideia melhor do ponto que quero ressaltar, assista ao vídeo abaixo).


Herdamos nosso idioma dos colonizadores, mas ele se modifica conforme a localização geográfica do falante. Aliás, chamamos língua a um instrumento de comunicação dos falantes — posto que essa é sua principal finalidade —, mas usamos o termo idioma para designar a língua própria de um povo (como o português, que é o idioma oficial aqui pelas nossas bandas). Há, ainda, os dialetos — variações linguísticas próprias de uma região ou território —, as gírias, jargões etc., mas isso é outra conversa.

Também como não poderia deixar de ser, a visão que as pessoas têm do mundo varia ao sabor de um conjunto de fatores, dentre os quais o grau de escolaridade de cada indivíduo, a maneira como ele foi criado e educado, seu nível socioeconômico, e por aí vai. Embora haja desigualdade social no mundo inteiro (fala-se que 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta), no Brasil, os números são assustadores.

Segundo dados do IBGE de 2018, o rendimento médio de 1% da população de maior renda é 33,8 vezes maior que o da parcela com menor rendimento. Mas a coisa não se limita ao aspecto puramente financeiro. A Suíça está no topo da lista de nações com melhor qualidade devido a itens como segurança, assistência médica, qualidade do ar, relação entre tráfego e o tempo de viagem, entre outros. Já o Brasil...

O saudoso Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para definir o sentimento de inferioridade que supostamente acomete os brasileiros, e não raro é atribuído à miscigenação, à falta de cultura, à educação precária e até ao clima tropical, que estimularia a preguiça e levaria à busca irresponsável do prazer pelo prazer.

Do outro lado dessa inequação está o chauvinismo — termo que remete a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em favor de um país, grupo ou ideia. In medio stat virtus, como diziam os antigos romanos, ou nem tanto ao mar, nem tanto à terra, como dizia minha finada avó. Segundo uma velha (e filosófica) anedota, Deus estava criando o mundo quando um anjo disse:

— Senhor, a Terra é tão perfeita, um verdadeiro paraíso para a humanidade.

E o Senhor das Esferas respondeu:

— Não, anjo, a Terra não é um paraíso, veja só.

Então o anjo viu que para cada continente Deus reservava grandes catástrofes naturais, como desertos, geleiras, terremotos, vulcões e furacões. Mas chamou-lhe a atenção uma grande porção de terra no hemisfério sul.

— Mas Senhor, se estás semeando catástrofes por todo o mundo porque é que aquele grande pedaço de terra ali ao sul é tão perfeito? Veja, lá o clima é tão agradável, há lindas florestas e praias, grandes e belos rios e não desertos, geleiras, terremotos, vulcões ou furacões. Por quê, Senhor?

Deus respondeu:

— Ah, meu caro anjo, espera só pra ver o povinho filho da puta que eu vou colocar ali.

E com efeito. Basta ver o nível dos políticos que nos representam e o chefe do Executivo que supostamente preside toda esta mixórdia, e lembrar que nenhum deles brotou na confortável poltrona de seu igualmente confortável gabinete por geração espontânea. Se ocupam cargos eletivos, é porque alguém votou neles.

Nos anos 1970, durante a ditadura militar, Pelé, então no auge da fama, afirmou que os brasileiros não sabiam votar — na verdade, suas palavras não foram bem essas; consta que ele teria dito algo como “o povo brasileiro não está preparado para votar”. E foi muito criticado por isso, ainda que razão lhe assistisse naquela época — e lhe assistiria ainda hoje, tivesse o eterno Rei do Futebol peito para verbalizar novamente essa opinião.

Mudaram as moscas, mas a merda é exatamente a mesma.

Bom feriadão a todos.

sábado, 13 de março de 2021

A FOME E A VONTADE DE COMER — OU: SEM O LULOPETISMO CORRUPTO O BOLSONARISMO BOÇAL NÃO EXISTIRIA


Só o ministro Fachin e o Senhor das Esferas sabem ao certo se a decisão da última segunda-feira visava salvar o legado da Lava-Jato a despeito de favorecer Lula ou favorecer Lula e, en passant, esvaziar o pedido de suspeição de Moro. Mas ficou evidente que a estratégia do relator dos processos da força-tarefa no STF foi sopa no mel para o ex-presidente ficha-lavada e serviu de sinal de alerta para o ex-juiz pôr as barbichas de molho.

Observação: A decisão do ministro não transformou Lula na “alma viva mais honesta do Brasil”; apenas transferiu os processos da 13ª Vara Federal de Curitiba para a Justiça Federal do DF, para que sejam refeitos. Mas concedeu ao petista tempo precioso para evitar o restabelecimento das condenações, sem mencionar que a tramitação das ações manterá suas culpas sob os holofotes da mídia.

Num contragolpe veloz, o todo-poderoso Gilmar Mendes levou a julgamento na 2ª Turma um trunfo que mantinha na gaveta havia mais de dois anos: o pedido de suspeição de Sergio Moro. Em 2018, depois que Fachin e Cármen Lúcia rejeitaram a tese esposada pela defesa de Lula, o semideus togado, receando que o fiel da balança (na época, o decano Celso de Mello) pendesse para o “lado errado” e atrapalhasse seus planos, valeu-se de um pedido de “vista obstrutiva” para suspender o julgamento do processo. Agora, com Mello aposentado, o “peixe” de Bolsonaro ocupando o lugar do ex-decano na 2ª Turma e a mudança dos ventos produzida pela “vaza-jato de Verdevaldo das Couves”, a encarnação de Amon-Rá decidiu que o dia do ajuste de contas finalmente chegou.

ObservaçãoEm teoria, um juiz pede vista (e não “vistas”, como muita gente diz) quando precisa de mais tempo para estudar o processo. Na prática, esses pedidos têm por objetivo interromper o julgamento da ação. Essa prática espúria veio do Legislativo, de carona com o deputado Nelson Jobim — que FHC nomeou ministro da Justiça em 1995 e promoveu a ministro do STF em 1997. Pelo regimento interno do Supremo, a devolução dos autos deve ser feita até a segunda sessão subsequente à do pedido de vista, mas ninguém se atém a isso, e o autor do pedido pode devolver o processo somente quando vislumbrar a possibilidade de um ou mais magistrados mudarem o voto, ou quando a maioria formada já não fizer mais diferença. 

Deu-se início a uma nova fase do esquartejamento da Lava-Jato. Na decisão da véspera, Fachin anotara que a anulação dos processos contra Lula tornara desnecessária a conclusão do julgamento sobre a alegada parcialidade de Moro. Abespinhado, Gilmar decidiu atropelar o colega. Em ofício enviado ao presidente da Corte, Fachin pediu a retirada do processo da pauta. Aliado tradicional da Lava-Jato, Fux se fingiu de morto.

Iniciada a sessão, Fachin reiterou o ponto de vista segundo o qual o veredicto sobre o comportamento de Moro tornara-se inútil depois que as condenações de Lula foram anuladas por ele. Dos cinco membros da 2ª Turma, quatro votaram contra sua posição, promovendo-o de uma posição minoritária para o total isolamento. Nem mesmo Cármen Lúcia, tida e havida como aliada da força-tarefa de Curitiba, acompanhou o voto do relator. Coube a Nunes Marques, ministro de estimação de Bolsonaro, esclarecer que “não se trata de anular o processo, mas de saber se as provas que foram colhidas pelo então juiz Sergio Moro são válidas ou não".

Ao promover a ressurreição eleitoral do sumo pontífice da Petelândia, Fachin favoreceu por linhas tortas os interesses eleitorais de Bolsonaro, reforçando a dicotomia político-ideológica que as forças de centro tentavam desmontar. Lula e Bolsonaro tornaram-se cabos eleitorais um do outro, já que interessa a ambos repetir em 2022 a polarização de 2018. Mas com duas diferenças: a primeira é que se abre agora a perspectiva de Bolsonaro enfrentar o próprio Lula, não o poste indicado por ele; a segunda é que o ainda presidente, beneficiário do antipetismo, maior força eleitoral da sucessão passada, passou a fornecer material para o surgimento de uma segunda onda: o antibolsonarismo.

A pandemia levou Lula a intensificar os ataques ao capitão, numa demonstração de que joga o mesmo jogo do rival. No momento, os dois operam para evitar o surgimento de uma terceira via capaz de representar o centro político na disputa de 2022. Na outra ponta, aquele Bolsonaro eleito por mais de 57 milhões de brasileiros lida com o seu encolhimento. Em dois anos de mandato, o capitão perdeu parte do eleitorado que votou nele para evitar a volta do PT ao poder, e agora espanta a plateia fabricando crises desnecessárias em meio a uma pandemia mortal. Nesse pôquer polarizado entre dois extremos há espaço para o surgimento de uma carta nova. O que não existe, pelo menos por enquanto, é capacidade de articulação do centro político para produzir a novidade. O país ainda não sabe como se chega ao centro.

Caso seja reconhecida a parcialidade de Moro, o juiz federal de Brasília não poderá aproveitar as provas, e os processos contra Lula retornarão ao zero absoluto, abrindo-se a perspectiva de prescrição dos crimes atribuídos ao ex-presidente petista no caso do tríplex. A defesa, naturalmente, pedirá a extensão da nulidade para os outros casos. Em seu voto, Gilmar atirou contra a reputação de Moro o material que o próprio ex-juiz e os procuradores da Lava-Jato forneceram nas mensagens hackeadas dos seus celulares. Como previsto, avalizou a posição dos advogados de Lula, declarando a suspeição de Moro. A hipótese de o ex-juiz sair do julgamento com a reputação preservada é virtualmente inexistente. A dúvida é quanto ao placar. Se Nunes Marques se juntar a Gilmar e Lewandowski e Cármen Lúcia mudar de ideia, Fachin amargará outra derrota por 1 a 4. 

Gilmar não disse, mas Fachin acabou facilitando a vida dos advogados de Lula, pois o que está em julgamento na 2ª Turma é a imparcialidade de Moro no caso do tríplex. Confirmando-se o veredicto de suspeição, Lula continuaria ficha suja, pois foi condenado em segunda instância também no caso do sítio de Atibaia, que teve a participação de Moro. Ao anular todas as condenações, Fachin poupou o trabalho dos advogados, que não precisarão ralar um novo habeas corpus.

A Lava-Jato já havia perdido uma perna quando o STF reverteu a regra que permitia a prisão de larápios condenados em segunda instância. A operação movia-se pela conjuntura como um saci, pulando entre uma amputação e outra. Graças à manobra de Fachin, a força-tarefa perdeu os anéis e os dedos. Logo será decepada a última perna da operação, que descerá à cova junto com as provas vivas que o Supremo enterra sem uma análise de mérito.

Com Josias de Souza

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

DE VOLTA ÀS BENDITAS SENHAS

ENQUANTO A VERDADE CALÇA OS SAPATOS, A MENTIRA DÁ A VOLTA AO MUNDO.

Segundo o Gênesis (do grego Γένεσις, que significa "origem", "criação", "início"), “no princípio era o Caos, e do Caos Deus criou o Céu e a Terra (...)

Em apenas 6 dias o Criador transformou o Caos em ordem. Criou a luz e separou-a em duas (uma, grande, para governar o dia, e outra, menor, para governar a noite). Criou as águas e separou-as em duas (e juntou as da porção inferior num só lugar, para que ali emergisse parte seca). Cobriu a terra de plantas, povoou-a com todo tipo de seres vivos e no sexto dia, disse o Senhor das Esferas: “Agora vamos fazer os seres humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco. Eles terão poder sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais domésticos e selvagens e sobre os animais que se arrastam pelo chão”. E após concluir Sua obra e ver que tudo era bom (?!), abençoou e santificou o sétimo dia, quando então descansou.

ObservaçãoA primeira versão escrita do Antigo Testamento remonta ao século 10 a.C. Desde então, seus relatos foram copiados, editados e reescritos um sem-número de vezes, até que alguém teve a ideia de juntar a essa compilação o Novo Testamento. E assim formou-se a síntese da mitologia cristã, composta por 66 livros, sendo 39 do A.T. e 27 do N.T., que ficou conhecida mundialmente como Bíblia(do grego "biblion", que significa "livro", "rolo").

Do Gênesis bíblico à teoria do Big Bang, diversos povos construíram versões próprias da origem do universo. Na maioria delas, o Caos seria uma matéria sem forma definida. Mas nenhuma trouxe a lume o detalhe que ora lhes revelo: Antes do Caos, já havia políticos, pois certamente foram eles que criaram o Caos!

Com os políticos, surgiu a vigarice. Em Juízes 12: 1-15, o Antigo Testamento registra que a palavra “xibolete” (do hebraico שבולת, que significa “espiga”) funcionava como “senha linguística” para identificar um grupo de indivíduos. Séculos depois, durante o massacre das Vésperas Sicilianas (1282 d.C.), os franceses eram reconhecidos pela forma como pronunciavam “cìciri” (grão de bico, no dialeto siciliano). Assim, engana-se quem imagina que as senhas surgiram com a popularização da Internet, embora a popularização da Internet as tenha popularizado e multiplicado.

Em 1961, para evitar que alguns estudantes monopolizassem o computador, o MIT desenvolveu o Compatible Time-Sharing System, mas os nerds logo descobriram como burlar a exigência da senha e se livrar da incomodativa limitação de tempo. No âmbito das transações financeiras, a autenticação por senha foi implementada no Brasil no início dos anos 1980, com o advento dos caixas eletrônicos ― a primeira máquina foi instalada pelo Itaú no município paulista de Campinas, em 1983. O cartão de crédito surgiu muito antes, inicialmente como alternativa para clientes de redes de hotéis e petroleiras comprarem a crédito nos próprios estabelecimentos (a primeira versão para uso no comércio em geral foi o Diners Club Card, que desembarcou no Brasil em meados dos anos 1950).

No início dos anos 1980, os fraudadores recuperavam os dados do papel-carbono dos formulários usados nas maquininhas manuais para lesar as operadoras, que contra-atacaram com mídias providas de tarjas magnéticas. Quando os vigaristas responderam com os “chupa-cabras”, a tarja deu lagar ao microchip e a autenticação por assinatura foi substituída pela senha. E o resto é história recente. 

Quando os PCs se tornaram populares (embora inicialmente não passassem de caríssimos substitutos das máquinas de escreve e de calcular e do console de videogame), era comum a mesma máquina ser compartilhada por todos os membros da família ― uma solução economicamente interessante, mas desastrosa do ponto de vista da privacidade. Sensível ao problema, a Microsoft tornou o Windows “multiusuário” e implementou uma política de contas e senhas de acesso. Com isso, cada membro da família se logava no sistema e meio que “tinha um Windows só para ele”. 

Embora essa solução não pusesse fim à disputa pelo uso da máquina, ao impedia o acesso a pastas e arquivos alheios, o que já não era pouco. Mas os usuários do Windows ME — edição lançada pela Microsoft a toque de caixa para aproveitar o apelo mercadológico da “virada do milênio” — logo descobriram que bastava pressionar a tecla Esc para "pular" a tela de logon (essa falha foi sanada no XP, que foi desenvolvido a partir do kernel do WinNT).

Reminiscências à parte, interessa dizer (de novo) que segurança absoluta no âmbito digital é conversa para boi dormir. E da feita que comodidade e segurança são como água e azeite, senhas difíceis de quebrar costumam ser virtualmente impossíveis de memorizar. E como usamos dezenas delas no dia a dia, tendemos a padronizar os acessos, ou seja, recorrer à mesma password para desbloquear a tela do smartphone, fazer logon no Windows, acessar redes sociais e contas de email, fazer compras online, transações financeiras via netbanking e por aí vai.

É possível criar senhas complexas e, ao mesmo tempo, fáceis de memorizar, como veremos na próxima postagem.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

ALI BABÁ E OS 40 LADRÕES



Depois que Alexandre de Moraes colocou Anderson Torres em liberdadeMauro Cid, que mandou dizer a Bolsonaro que não pretendia enredá-lo em seus futuros depoimentos à PF,  troca o advogado Rodrigo Roca, avesso a delações, pelo criminalista Bernardo Fenelon, especialista em delações.
 
A senha que conduziu a PF às nuvens conectadas ao celular do ex-ajudante de ordens do capetão abriu a caverna do ex-primeiro casal. Em meio a cartões de vacina falsificados e diálogos golpistas, os investigadores esbarraram na caixa registradora de Michelle Bolsonaro. Aos pouquinhos, vai sendo exposto o lado Ali Babá dos ex-inquilinos do Alvorada.
 
Numa das mensagens, Cid compara as transações à rachadinha de Zero Um. Micheque fazia compras com um cartão de crédito da amiga Rosemary Cardoso Cordeiro, e ele, Cid, pagava as faturas em dinheiro vivo, sacado em uma agência do Banco do Brasil dentro do Planalto. Para piorar, uma empresa com contratos firmados com a estatal Codevasf fez pelo menos 12 depósitos na conta do sargento Luis Marcos dos Reis (coisa de R$ 25.360), subordinado a Cid, e que, segundo a PF, o realizou pagamentos de despesas atribuídas à ex-primeira dama.

Preso numa unidade militar e cercado por indícios de fraude, Cid depôs no inquérito sobre a fraude nos cartões de vacina, reconhecendo em privado que se encontra num local bastante parecido com um buraco. E a vida ensina que a primeira regra dos buracos é singela: quando se cai dentro de um, deve-se parar de cavar. Se contar aos investigadores que apenas cumpria ordens quando entrou no sistema do Ministério da Saúde para injetar vacinas falsas nos cartões de Bolsonaro e da filha do ex-chefe, o coronel abandona a picareta e reduz o tamanho de sua pena. Se endossar a versão segundo a qual agiu por conta própria, sem o conhecimento do ex-chefe, jogará terra sobre si mesmo. Na dúvida, ele preferiu ficar em silêncio.


Observação: Até bem pouco, Cid era festejado como avis rara do bolsonarismo, um eficiente faz-tudo do então presidente. Hoje, está abandonado à própria sorte. Ao interrogar Bolsonaro 48 horas antes da inquirição de Cid, a PF ofereceu ao coronel uma oportunidade para refletir sobre o próprio futuro. Em quase três horas de interrogatório, Bolsonaro limitou-se a entoar o bordão "eu não sabia". Acomodou todas as culpas sobre os ombros de CidLançando mão dos melhores estratagemas para atingir os piores subterfúgios, o ex-mito negou a própria fama. De presidente mandão, converteu-se num coadjuvante nato.

Ficou mais difícil sustentar a tese de que Cid agiu sozinho. Notícia do Globo informa que a PF descobriu que a senha de acesso de Bolsonaro ao aplicativo ConecteSUS, que estava associado ao email de Cid, foi transferida para o coronel Marcelo Costa Câmara, que integra a equipe de oito assessores a que o ex-mandatário tem direito, mas tornou-se inviável para esse estrupício reeditar o bordão "eu não sabia." 

Por baixo das narrativas falaciosas do verdugo do Planalto, seus protetores precisam acomodar outras camadas de mentiras — como a declaração categórica do ex-mandatário feita após a batida policial em sua casa: "Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina. Ponto final" e a sinalização de que o Cid se dispõe a assumir as culpas sozinho, isentando o ex-chefe.

No tempo em que Brasília ainda tentava fazer sentido, os valores pareciam mais nítidos. Bolsonaro se considerava um deus onipresente e Cid, pau mandado do capetão, um militar cioso da hierarquia. Subitamente, a nitidez perdeu a função. Nada é o que parece. Bolsonaro virou um antilíder e o coronel puxa-saco foi brindado com a alternativa de se reposicionar em cena, de se comportar como o sujeito que reclama do barulho quando a oportunidade bate à porta.


Pintou um clima entre o bolsonarismo e a picaretagem financeira. Tornou-se difícil ouvir falar em Deus, pátria e família sem reprimir um sorriso interior. Doravante, sempre que o ex-primeiro casal escorar suas atitudes na tríade predileta do fascismo, uma voz no fundo da consciência dos brasileiros avisará: "Farsantes!" Mal comparando, o convívio com Bolsonaro é mais ou menos como o sarampo, cuja falta de cuidado deixa marcas indeléveis. 
 
Michelle já convivia com as erupções dos R$ 89 mil que Fabrício Queiroz borrifara em sua conta bancária. Surgem agora em sua biografia imaculada infecções que potencializam o caráter criminal da moléstia. São sete os pecados capitais: soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça. Madame se enroscou no oitavo, ainda não catalogado: o pecado do capital propriamente dito. Sua pose de cristã limpinha perdeu o prazo de validade. Virou um inquérito policial esperando na fila para acontecer. Os dados extraídos do celular de Cid transformam-na de coadjuvante de uma rachadinha do enteado a estrela do seu próprio escândalo financeiro. 
 
No despacho em que autorizou a extensão das quebras de sigilos de Cid a funcionários da Presidência e pessoas ligadas à ex-primeira-dama, o ministro Alexandre anotou que os dados colecionados pela PF revelaram "fortes indícios de desvio de dinheiro público, por meio da Ajudância de Ordens da Presidência da República" para pessoas indicadas pelas duas assessoras da ex-primeira-dama. Aos pouquinhos, os indícios vão se convertendo em provas duras de roer. Vêm à luz coisas que deixariam Ali Babá e os 40 ladrões ruborizados.
 
Deus, como se sabe, está em toda parte. Mas, ao sentir os odores que exalam das finanças de Michelle, o Senhor das Esferas achou melhor cuidar de outras coisas.

Com Josias de Souza