Acusado de protecionismo pelos anjos de oposição, Deus escalou uma gentalha medíocre para povoar o país abençoado por Ele e bonito por natureza — que viria a ser "descoberto" pelos portugueses, promovido a reino unido pelo príncipe que estava esvaziando os intestinos na hora do famoso grito e transformado em república pelo primeiro dos inúmeros golpes de estado que se sucederiam a partir de então.
A renúncia de Jânio e aversão dos militares a Jango deram azo ao golpe de 1964, que ensejou os 21 anos de ditadura e pavimentou o caminho para o lulopetismo corrupto e o bolsonarismo boçal. (Mais detalhes na sequência O desempregado que deu certo). Acabou que o país do futuro que nunca chega e tem um imenso passado pela frente nunca passou de uma republica de bananas.
Nossa corte suprema, que era para ser um tribunal constitucional, virou a 4ª instância da justiça criminal, e seus membros, "onze ilhas incomunicáveis" (menos quando se trata de seus vencimentos e das nababescas mordomias que eles concedem a si mesmos). O comportamento desse arquipélago de monocracias durante o apogeu da Lava-Jato deixou clara a necessidade de alterar a forma como os ministros são nomeados.
Os ilustres candidatos a uma cadeira no Olimpo do Judiciário são indicados presidente da República da vez, e referendados pelo Senado. O art. 101 da Constituição dispõe que os indicados devam ser brasileiros natos, ter entre 35 e 65 anos, reputação ilibada e "notável saber jurídico", mas não exige formação jurídica nem registro na OAB. Destarte, mesmo sem estar habilitado a exercer atividades típicas dos advogados o felizardo pode ter os ombros cobertos com a suprema toga se for amigo do presidente da República e consegui o aval de pelo menos 41 dos 81 senadores numa sabatina meramente formal — desde a Proclamação da República, apenas cinco indicados foram vetados, todos durante a gestão de Floriano Peixoto.
Numa guinada impressionante — e determinante para os destinos do país —, o STF derrubou a prisão em segunda instância e tirou da cadeia um ex-presidente condenado por 10 magistrados de três instâncias do Judiciário. Como se não bastasse, sob o pretexto de incompetência territorial da 13ª Vara Federal de Curitiba, anulou duas condenações (uma das quais havia transitado em julgado no STJ) e as demais ações que estavam em fase de instrução. E voilà!: "ói Lula aí traveiz".
O Lula de 20 anos atrás era um personagem a quem quase tudo era permitido. Hoje, não mais. Sinal de que o Lula eleito em 2022 estava com a cabeça em 2002 foi aquele voo em jatinho de empresário amigo para participar da COP27, no Egito, ainda durante a transição. Pertence à mesma série de descompassos entre o pretendido e o resultado obtido o lugar dado a João Pedro Stedile na comitiva da viagem à China, em abril, enquanto o convidado anunciava ofensiva de invasões de terra pelo MST. Ambos os casos provocaram críticas e desconcerto; em vários outros houve bem mais que isso.
O Congresso reagiu na forma de derrotas impostas a uma agenda que não se adequa ao perfil do Parlamento, diverso daquele de 2003, em que o Senado era presidido por um José Sarney aliado incondicional, e a Câmara, pelo petista João Paulo Cunha. Os repetidos reveses são atribuídos ao conservadorismo do Congresso — o que é verdade, mas não causa surpresa alguma.
Esse perfil emergiu das urnas em outubro passado, e o chefe do Executivo eleito no final daquele mês sabia que deveria compatibilizar sua pauta à da representação congressual escolhida pela maioria do eleitorado. Goste-se ou não, foi o pacto proposto e deveria ser observado.
De ilusionismos eleitorais também padecem as democracias. Sob o jugo do populismo definham de modo sutil e vagaroso, diferentemente do desmonte explícito provocado pelos arroubos de aspirantes a tiranos. A venda de utopias na corrida por conquista de votos faz parte do jogo, mas dentro de limites.
Quando se ultrapassam as fronteiras do razoável e as ilusões vendidas se desfazem por completo no confronto com a realidade, tem-se o chamado estelionato eleitoral sob a égide do qual se contrata o descrédito da política, mortal para a democracia.
Com Dora Kramer